A medicina ocidental muitas vezes considera a transição da vida para a morte como se um interruptor fosse de “liga” para “desliga” quando o coração de uma pessoa para de bater e ela para de respirar. No entanto, à medida que pesquisadores ao redor do mundo estudam o processo de morrer e ganham uma compreensão mais profunda do contexto cultural e religioso da morte, os rótulos de “vivo” ou “morto” não conseguem captar os processos complexos que muitas culturas e crenças acreditam que realmente existem em um continuum.

Especialistas do Center for Healthy Minds, da Universidade de Wisconsin-Madison (EUA), e líderes médicos tibetanos que trabalham em instituições médicas de renome na Índia publicaram o primeiro artigo revisado por pares sobre um fenômeno chamado tukdam. Com o artigo, eles pretendem iniciar um debate sobre o processo de morte e como pesquisas futuras podem compreender o bem-estar mental, espiritual e físico de uma pessoa durante esse processo. Tais debates também podem subsidiar com informações a ética de práticas como a extração de órgãos depois que um indivíduo foi declarado clinicamente morto e as condições de suporte para uma transição pacífica no processo de morte.

Decomposição atenuada

Publicado na revista Frontiers of Psychology, o artigo acompanhou monges budistas e praticantes de meditação de longa data que ficaram em tukdam indicados por especialistas da comunidade em locais em toda a Índia. O estado de tukdam ocorre quando os corpos dos indivíduos apresentam uma taxa de decomposição altamente atenuada após a morte, normalmente após um período de meditação prolongada durante o processo de morte e uma vida inteira de prática meditativa.

Em um contexto budista tibetano, um indivíduo que alcança o tukdam é considerado como tendo vivido uma vida moral e ética. O estado e a observação do tukdam são considerados sagrados pelos tibetanos e são especialmente impactantes para aqueles que estão próximos do indivíduo que os experimenta. Tukdam também indica um alto estado de realização espiritual.

O estudo é o primeiro a descrever o fenômeno na literatura científica, médica e forense ocidental que mede se os indivíduos em tukdam apresentam atividade cerebral que poderia ser medida durante o período pós-morte, nas horas após a ocorrência da morte médica.

“Em termos de importância para a sociedade tibetana, se os cientistas forem capazes de fornecer evidências daqueles que estão em tukdam, haverá maior atenção entre os jovens para o budismo e uma regeneração da confiança, fé e esforço alegre para a prática budista”, disse o dr. Tsewang Tamdin, presidente do Conselho Médico e Astrológico de Alto Nível do Instituto Men-Tsee-Khang (Sowa-Rigpa), o principal estabelecimento médico tibetano na Índia, que colaborou na pesquisa. “Espero que também forneça um exemplo ainda maior de como uma mente cheia de alegria e tranquilidade é para a nossa sociedade.”

Assinatura específica

Segundo Dylan Lott, antropólogo e primeiro autor do artigo, que conduziu a pesquisa como pós-doutorando no Center for Healthy Minds, estudos anteriores mostraram que a atividade cerebral medida por meio de ferramentas como eletroencefalografia (EEG) enquanto as pessoas meditam pode produzir uma assinatura única. Assim, a ideia é que se alguém está meditando por algum tempo até a morte, também pode haver uma assinatura neural única ou residual. Isso é corroborado por estudos em animais e humanos que relatam atividade cerebral residual mensurável nos primeiros minutos após a morte clínica, quando o coração para de bater e a respiração é interrompida. Isso sugere que pode haver algum nível de percepção ou consciência após a morte clínica.

Embora a equipe não tenha observado atividade de EEG mensurável nos 13 casos de tukdam apresentados no estudo, é importante notar que o registro mais antigo ocorreu 26 horas após a morte. Lott explicou que as descobertas não excluem necessariamente que a atividade cerebral não estava ocorrendo, mas que poderia ter acontecido antes e quando os pesquisadores a mediram, já era tarde demais. Ele afirma que as condições de campo na Índia e o tempo percorrido para chegar a cada localidade foram um fator limitante na coleta de dados.

“Também é importante construir confiança e relacionamento com os praticantes de tukdam e seus alunos, visto que o momento da morte é para eles uma oportunidade única de alcançar a iluminação e a libertação. Temos sido extremamente cuidadosos para não infringir essa oportunidade”, assinalou Lott.

Oportunidade única

“Pode ser que o equipamento que estamos usando não seja sensível o suficiente”, prosseguiu ele. “Também é importante construir confiança e relacionamento com os praticantes de tukdam e seus alunos, visto que o momento da morte é para eles uma oportunidade única de alcançar a iluminação e a libertação. Temos sido extremamente cuidadosos para não infringir essa oportunidade. Consequentemente, as permissões para estudar o indivíduo falecido são recebidas dias após a morte clínica em vez de minutos ou horas, o que seria o ideal.”

O projeto é o primeiro a relatar observações de tukdam de forma sistemática em uma publicação revisada por pares. O dr. Tsetan Dorji Sadutshang, médico chefe do Hospital Delek em Dharamsala (Índia), contribuiu para a pesquisa e aconselhou o grupo.

“Os indivíduos que eu acreditava de fato estarem em [um] estado de tukdam eram pessoas cujo corpo não mostrava absolutamente nenhum sinal de decomposição, mesmo depois de uma semana”, disse ele. “Este era o sinal mais confiável e há muito poucos casos assim (…). Aqueles que realmente estavam em tukdam mantinham o brilho em sua pele, principalmente do rosto. Essas pessoas, comparadas a pessoas que não estavam em tukdam, eram, sem dúvida, praticantes muito sérios do dharma e havia muitas pessoas para atestar isso.”

Desafio do dalai lama

As raízes do projeto vêm de colaborações de décadas com o dalai lama. O líder budista tibetano desafiou Richard Davidson, professor de psicologia e psiquiatria e diretor do Center for Healthy Minds, e outros cientistas a compreender a mente e aplicar os rigores da ciência ao fenômeno de tukdam.

“Na medicina ocidental, a morte é conceituada em um estado binário – ou você está vivo em um momento ou morto em outro”, afirmou Davidson. “No entanto, os processos biológicos não funcionam de uma maneira simples de ligar ou desligar. Eles são mais graduados. Esperamos que esta pesquisa catalise uma conversa sobre o processo de morrer e levante questões sobre a morte como um processo e não uma chave binária.”