Autazes, cidade de 41 mil habitantes a pouco mais de 100 quilômetros da capital Manaus (AM), pode ter entrado para o mapa informal da mineração da Amazônia. Às margens do rio Madeira, o município não tinha um histórico de exploração de ouro até que viu surgir, subitamente, uma cidade flutuante formada por balsas emparelhadas na última semana.

A corrida teria se iniciado a partir de um boato, após uma embarcação ter encontrado ouro na região. A notícia correu e atraiu centenas de balsas para o ponto, como conta à DW um morador das redondezas. Ele passou dois dias com os garimpeiros e prefere não ter o nome identificado na reportagem.

“Lá tem família, tem criança, adulto, jovens, adolescentes. Eu vi todo o processo de extração do minério lá dentro”, disse ele por telefone à DW nesta sexta-feira (26/11), após deixar uma das balsas.

Os garimpeiros começaram a se dispersar. A retirada ocorre depois das declarações do vice-presidente Hamilton Mourão no Palácio do Planalto, que disse que uma operação estava em “processo de planejamento” para fiscalizar a atividade no Madeira. Polícia Federal e Marinha participariam da ação.

No estado do Amazonas, garimpo de ouro no rio Madeira é ilegal.

Para Danicley de Aguiar, porta-voz da Campanha Amazônia do Greenpeace, o anúncio prévio de Mourão deu tempo suficiente para que os garimpeiros organizassem uma fuga. “O Estado não foi capaz de colocar de pé uma operação”, disse à DW.

Na última quarta-feira, um avião fretado pela organização sobrevoou o local e divulgou imagens que rodaram o mundo das centenas de embarcações garimpeiras. “A pergunta é essa: vai ficar o dito pelo não dito? Qual vai ser a posição das autoridades federais agora? Os garimpeiros saem do lugar e fica tudo bem?”, questiona Aguiar.

Procurado, o gabinete da vice-presidência não comentou o assunto até o fechamento desta reportagem.

Impacto ambiental da mineração

Segundo relatos de moradores, a presença dos garimpeiros dividiu opiniões na cidade. Alguns comerciantes relataram vendas recordes em poucos minutos para os forasteiros. Houve quem se aproximasse em pequenos barcos das balsas para oferecer produtos.

“A parte contra é por cauda da degradação do ambiente. Nessa parte, fica todo mundo ressabiado. Por que a balsa fica mexendo o solo debaixo da água rio”, disse um morador ouvido pela DW.

Dragas chegavam a trabalhar 48 horas na região ininterruptamente em busca do ouro. “Imagine 400 dragas fazendo isso ao mesmo tempo”, diz o morador que acompanhou os garimpeiros.

Movidas por motores a diesel, as dragas sugam um grande volume de sedimento acumulado no fundo do rio, que é despejado sobre um espécie de carpete. Os fragmentos de ouro sugados junto com a terra são recuperados com a ajuda do mercúrio, que tem a capacidade de se unir a outros metais e formar amálgamas.

Após essa etapa, basta o calor de um maçarico para separar os dois metais, já que o mercúrio se liquidifica e evapora numa temperatura inferior do que o ouro. No fim do processo, normalmente, as partes que não interessam, como os restos contaminados, são jogados de volta ao rio.

Um dos maiores problemas do uso mercúrio é o impacto causado no ambiente e na saúde: ele contamina peixes que podem virar alimento e se acumula no corpo humano. Os sistemas nervoso e imunológico podem ser afetados, assim como pulmões e rins, com sintomas que vão de tremores a perda de memória – e, em casos extremos, morte.

Histórico de degradação

Com mais de 3 mil quilômetros de extensão, o rio Madeira é um dos principais afluentes do rio Amazonas, e corta os estados de Rondônia e Amazonas. Ele é uma via de transporte hidroviário importante na região Norte, além de sua importância ambiental e na pesca.

Os relatos de presença de ouro no Madeira datam de 1826, com intensificação da atividade de garimpo registrada a partir da década de 1970. Um relatório publicado em 1982 pelo então Departamento Nacional de Produção Mineral estimava a presença de 1.200 garimpeiros no leito do rio com uma produção de 817 quilos do metal. Naquela época, a operação era semimecanizada, e as balsas dependiam de mergulhadores que posicionavam os tubos sucção.

Nas décadas seguintes, a corrida do ouro atraiu habitantes de outros estados a Rondônia. Com o passar dos anos, a extração do metal em toda a Amazônia passou a ser feita com maquinário pesado: balsas, dragas, pás-carregadeiras e escavadeiras hidráulicas que custam milhões de reais.

“Os índices de ilegalidade na atividade são alarmantes. O ouro, ativo financeiro de enorme importância estratégica para as finanças nacionais, esvai-se pelas fronteiras com pouco ou nenhum controle das agências públicas, ao mesmo tempo que recursos hídricos são contaminados por mercúrio e parcelas da floresta são postas abaixo na busca por novos veios, e o tão prometido desenvolvimento econômico não chega”, ressalta o documento publicado em 2020 produzido pelo Ministério Público Federal.

Em Rondônia, um decreto estadual de janeiro liberou o garimpo no rio Madeira. Segundo o texto, o licenciamento ambiental é feito pela Secretaria de Estado do Desenvolvimento Ambiental, e as embarcações devem ter cadastro na Capitania dos Portos ou na Marinha.

No curso do mesmo rio no estado do Amazonas, por outro lado, a atividade é proibida. Em 2017, o governo estadual chegou a liberar a exploração do ouro sem os estudos prévios, concedendo licenças de operação. Naquele mesmo ano, uma liminar caçou as licenças e, em agosto de 2021, a Justiça Federal condenou o Instituto de Proteção Ambiental do Estado do Amazonas (Ipaam) a anular as licenças dadas irregularmente.

“Licença política”

Para Danicley de Aguiar, do Greenpeace, a aglomeração das balsas onde elas são proibidas é um reflexo simbólico do momento que o país vive. “Os infratores ficam à vontade pra fazerem o que quiserem porque não serão punidos. Eles não têm licença ambiental, mas têm licença política”, afirma, mencionando o discurso pró-garimpo do presidente Jair Bolsonaro e dos governadores.

Na visão de Aguiar, operações de repressão não são suficientes para resolver a questão. “A crise econômica levou para pobreza milhares de pessoas. Precisamos de um debate sério que promova a reorientação do sistema econômico brasileiro, que considere a floresta e seus rios como um ativo, e não como problema”, argumenta.

Ao que tudo indica, diz Aguiar, as balsas de garimpo que estavam em Autazes e que agora se dispersam estão subindo o rio no sentido de Humaitá, considerada refúgio histórico dessas embarcações no estado. Foi lá que, em 2017, prédios do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, Icmbio, e Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis, Ibama, foram incendiados por garimpeiros.

“O que aconteceu em Autazes foi uma afronta ao Estado. Ninguém coloca 300 balsas num lugar sem organização. O Estado tem que entender o que está acontecendo”, finaliza Aguiar.