Pão, azeite, alho, tomate e vinho inspiram técnicas de produção, maneiras à mesa, literatura e canções nos países mediterrâneos.

Em novembro de 2010, um comitê de 24 países-membros da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco) reuniuse em Nairóbi, no Quênia, e declarou a dieta mediterrânea um patrimônio imaterial da humanidade. Centenas de pequenos povoados, no sul da Europa e no norte da África, imediatamente comemoraram o fato. Várias nações pleiteavam que a alimentação fosse incluída entre os patrimônios da Unesco, junto com a arquitetura, os sítios históricos e as paisagens naturais. Logo na primeira lista três regiões foram contempladas: o México, com sua cozinha caliente; a França, com o ritual da mesa cuja liturgia influenciou todo o mundo ocidental; e o Mediterrâneo, com a dieta oriunda da Grécia, da Itália, da Espanha e do Marrocos.

Desde a candidatura, o ritual da mesa surgiu como poderoso argumento dos países mediterrâneos. Entre os documentos enviados à Unesco, dezenas de pequenos produtores locais afirmaram que a dieta mediterrânea é o que permite à comunidade se entender “sempre em volta da mesa”. Por meio da comida, da biodiversidade, da história, das festas e das celebrações, difunde-se um modo de vida que integra vários países na família dos povos do Mediterrâneo. “Com a dieta compartilhamos um patrimônio cultural que representa troca permanente, hospitalidade e harmonia”, afirma um dos requerimentos. Quatro comunidades foram escolhidas como sínteses da cultura alimentar mediterrânea: Soria, na Espanha; Cilento, na Itália; Koroni, na Grécia; e Chefchaouen, no Marrocos.

Segundo os antropólogos, historiadores e nutricionistas da Unesco, a dieta mediterrânea é muito mais do que uma receita: trata-se de uma variada gama de saberes e conhecimentos sobre o território e a biodiversidade, de acordo com as crenças de cada comunidade. Implica práticas e tradições que vão desde a agricultura até as maneiras à mesa, passando pelos modos de semear a terra, a colheita, a pesca, o processamento dos alimentos, a preparação e o consumo de comida. Sem contar que também inspira lendas, canções, literatura e filmes. Na base de tudo há um modelo nutricional, mais ou menos constante ao longo de séculos, cujos principais ingredientes são o azeite, os cereais (pão e massa), as frutas e legumes frescos ou secos, o peixe, os laticínios, a carne, os condimentos e temperos, o vinho e as infusões típicas de cada região.

Comida e saúde

Desde que a relação entre saúde e hábitos alimentares passou ao centro do debate nos Estados Unidos, a dieta mediterrânea vem sendo objeto de estudo e análise. Um trabalho pioneiro, coordenado pelo nutricionista norte-americano Ansel Keys, em 1958, intitulado Seven Countries, estudou 16 áreas em três continentes e sete países: Itália, Grécia, ex-Iugoslávia, Finlândia, Holanda, Japão e Estados Unidos. Keys demonstrou que na ilha de Creta, na Grécia, existia a menor incidência de doenças cardiovasculares e outras enfermidades crônicas não transmissíveis, alçando imediatamente a dieta local como exemplo para o mundo.

Em Creta não se come nada muito diferente do que em outros países banhados pelo Mediterrâneo: azeite extravirgem (rico em ácidos monossaturados que ajudam a reduzir o colesterol); cereais, verduras e hortaliças in natura, tomate (rico em licopeno, substância que combate os radicais livres que danificam as células); frutas e proteína de carne e peixe (com elevado teor de ácidos graxos da família ômega 3, com propriedades anti-inflamatórias e antioxidantes).

Frutas e verduras garantem suplementos minerais, vitaminas e fibras, enquanto a proteína dos peixes (na página seguinte) é rica em ácidos graxos. O conhecimento da biodiversidade pela comunidade é a base da dieta saudável.

Estudos realizados posteriormente chegaram a resultados similares. Um deles, feito na Europa, em 2003, reavaliou o Seven Countries quase 50 anos depois. Verificou-se que, embora os países mediterrâneos tenham aumentado consideravelmente o consumo de carne vermelha (que era raro no passado), ainda havia grande prevalência de frutas e verduras nas refeições, garantindo suplementos de minerais, vitaminas, fibras solúveis e insolúveis.

Dieta paulista

Intrigada com os bons resultados, a nutricionista Claudimar de Oliveira, do Laboratório de Lípides da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da USP, resolveu estabelecer uma comparação entre a dieta mediterrânea e a dieta paulista. Sua maior surpresa foi perceber que o tradicional arroz-feijão brasileiro é uma mistura proteica excelente, rica em minerais e vitaminas, que produz resultados similares para o organismo. Seu estudo virou tema de tese de mestrado, apresentada em 2008.

Para a nutricionista, seria positivo se os brasileiros tomassem a dieta mediterrânea como exemplo para cultivar e valorizar os seus próprios hábitos, nos quais o consumo de cereais e leguminosas sempre foi expressivo. “O que é grave, hoje, é que estamos abandonando nossos pratos saudáveis para ingerir alimentos de qualidade nutricional questionável”, diz Claudimar. “Enquanto os gregos consomem diariamente cerca de 600 gramas de frutas e hortaliças (cozidas ou cruas), nós consumimos apenas 200 gramas, em média, no Estado de São Paulo. A boa recomendação é de 400 gramas diárias”, nota.

Antes de virar moda, a culinária mediterrânea já era praticada nos restaurantes paulistanos. Um deles, o La Tambouille, combina o lado saboroso e saudável das culinárias francesa e italiana. Isso porque o dono, Giancarlo Bolla, nasceu em San Remo, na Ligúria, na divisa da Itália com o sudeste da França. “Comemos muito tomate, berinjela, legumes assados com azeite, sal e ervas (manjericão, tomilho e manjerona). Entre nós sempre houve gente mais pobre e gente mais rica. Os ricos misturam com um pouco de carne, e os mais pobres ficam com legumes, massa de grano duro e peixe”, conta.

Na grande colônia italiana de São Paulo dietas similares à mediterrânea sempre foram cultivadas pelas famílias de imigrantes, se estendendo para a primeira geração nascida no Brasil. “Nossa tradição veio do berço. O azeite, as verduras, os cogumelos, o peixe e o vinho são nossos ingredientes fundamentais”, diz Silvia Percussi, da Vinheria Percussi, de origem toscana. Ela lembra que a carne na Itália era muito cara e acessível a poucos. Se o consumo aumentou com o tempo, em compensação atualmente há uma volta ao passado alimentar. “A própria gastronomia, hoje em dia, coloca a saúde em primeiro lugar.”

 

Fast-food

Os países que criaram e exportaram o fast-food estão às voltas com uma epidemia de obesidade. Um motivo mais do que suficiente para os norteamericanos repensarem o que comem e avaliarem o custo social de seus hábitos. “Se formos olhar a história e as tradições, veremos que todos os povos do mundo adotavam um modelo de dieta muito mais sustentável do que aquele hoje vigente nos países mais ricos do mundo”, observa o italiano Carlo Petrini, criador do movimento Slow Food, que valoriza culturas alimentares regionais e sustentáveis em todo o mundo.

Num artigo publicado recentemente no jornal L’Expresso, Petrini contou que em fevereiro fez uma conferência no Center for Disease Control, em Atlanta, EUA, ouvindo de seus dirigentes que o esforço para orientar a dieta norte-americana, baseada numa pirâmide alimentar tendo a carne como complemento para frutas e vegetais, não deu certo. O fracasso foi total. “Acredito que, da mesma forma, não serviria impor a todos a dieta mediterrânea”, afirma Petrini. “Em princípio, a iniciativa poderia até ser válida, mas a imposição estaria destinada a falir no plano prático. Isso porque ela não teria uma forte conexão com o território, com a tradição do povo, com o seu modo de cultivar a terra, nem uma ligação com a realidade do sistema agroalimentar. A verdade é que, no fim das contas, as dietas tradicionais de cada região são a melhor solução para a saúde e a ecologia do planeta”, escreve.

O azeite virgem extraído das oliveiras (na página ao lado) é rico em ácidos monossaturados que reduzem o colesterol. O vinho tinto também diminui a incidência de doenças no coração.

Graças à dieta, na ilha de creta, na grécia, existe a menor incidência de doenças cardiovasculares e enfermidades crônicas não transmissíveis

Ainda que a dieta mediterrânea não deva ser imposta ou importada na totalidade, mas sim imitada por suas virtudes – sobretudo a de estimular os povos a valorizar suas raízes -, o mundo agradece pelos costumes alimentares herdados do sul da Europa. A música Fatte Una Pizza, do cantor e compositor napolitano Pino Daniele, não deixa de ter razão: “Faça uma pizza com molho de tomate/Verás que o mundo te sorrirá/Faça uma pizza e crescerás mais forte/Ninguém mais te deterá/Dieta mediterrânea te faz bem”.

“As dietas tradicionais de cada região são a melhor solução para a saúde e a ecologia do planeta” – Carlo petrini, do Slow food