Para um dos mais importantes teólogos do Brasil, a obra que o papa Francisco divulgou em junho inova ao se basear no paradigma ecológico, que não se restringe apenas à sua faceta ambiental

As informações que antecediam o lançamento da primeira encíclica (documento que o papa dirige aos bispos de todo o mundo e, por meio deles, a todos os fiéis) de autoria integral do papa Francisco já davam conta de que o texto tinha como tema a ecologia e poderia despertar polêmica. Dito e feito: lançada em 18 de junho, Laudato Si é um libelo a favor do meio ambiente e exorta a humanidade a defendê-lo. Diplomado em química e, portanto, não desconhecedor das informações científicas acumuladas sobre o aquecimento global, o cardeal argentino Jorge Mario Bergoglio traz ainda de sua vida em nosso continente a preocupação com o tema, e a aborda de forma serena, mas contundente, nesse trabalho cujo impacto já é sentido nos círculos científicos, governamentais e empresariais de todo o mundo. O brasileiro Leonardo Boff, um dos principais pensadores que influenciaram o pensamento de Francisco nessa área, fala a seguir sobre a encíclica e o seu poder transformador.

PLANETA – A Laudato Si é a primeira encíclica a abordar temas eminentemente ecológicos?
BOFF –
De forma sistemática, é a primeira vez que um papa aborda explicitamente a questão ecológica. Os anteriores fizeram apenas observações pontuais dentro de outros contextos.

PLANETA – Uma encíclica como essa só poderia vir de um papa latino-americano? Qual foi a influência da Teologia da Libertação na obra?
BOFF –
A partir da América Latina, fora do centro do sistema mundial, é mais fácil ver as devastações que ocorrem na natureza e o nível de exploração humana que o paradigma vigente de produção, consumo e forma de habitar a Terra deixa em clara luz. O papa vem de um caldo cultural e eclesial no qual a temática da libertação, sob suas várias formas e tendências, é viva e atuante na prática, em especial nos meios populares e pobres. Creio que a Teologia da Libertação tenha influenciado na elaboração do documento, especialmente articulando o grito do pobre com o grito da Terra. Essa encíclica é notável porque, pela primeira vez, um papa escreve a partir do novo paradigma ecológico, derivado das ciências da vida e da Terra. Abandonou o paradigma convencional ainda presente nas universidades e no modo dominante de ler o mundo. A partir disso, já não se pode restringir a ecologia à sua dimensão ambiental. A ecologia integral incorpora a ambiental, a social, a política, a mental e a espiritual. E o papa o faz com grande coerência interna, enfatizando o eixo estruturador do novo paradigma que é a interdependência de todos com todos e que tudo tem a ver com tudo em todos os pontos e circunstâncias. Tudo é relação e nada existe fora dela, ideia que lhe permite fazer outro tipo de leitura da teologia cristã.


Papa Francisco: ênfase ao conceito de interdependência da vida na Terra

PLANETA – Como se deu sua colaboração para o texto da obra?
BOFF –
Minha colaboração foi indireta. O papa me pediu materiais vários que enviei por meio do embaixador argentino junto à Santa Sé. Um dia antes da publicação da encíclica, dia 17 de junho, um assessor do papa falou com o embaixador e agradeceu-lhe os materiais que, por seu intermédio, eu fizera chegar ao papa. Penso que foram úteis, pois pessoas que conhecem meu pensamento sobre ecologia disseram-me que sentem temáticas e torneios linguísticos que eu comumente uso em meus escritos, especialmente o título de meu livro principal, Ecologia: Grito da Terra – Grito dos Pobres, expressão que o papa também usa, e o de “Casa Comum” para a Terra, além de outros temas, como o do cuidado, da ternura e da espiritualidade ecológica. Mas a encíclica é do papa e ele faz o uso dos materiais que lhe parecem mais afins ao seu próprio pensamento.

PLANETA – Também chama atenção na obra o uso de conceitos científicos. Francisco está enfim conciliando ciência e religião, como já tentara Teilhard de Chardin?
BOFF –
A preocupação do papa não é conciliar ciência e religião. Em sua exposição, ele seguiu rigorosamente o ritual metodológico da Teologia da Libertação e que estrutura também o Documento de Aparecida (2005) do episcopado latino-americano, que teve no cardeal Bergoglio seu principal redator. Sempre se cumprem esses passos: primeiro se parte do ver, depois do julgar e do agir e, por fim, do celebrar. Na parte do ver a realidade, o papa simplesmente se apropria dos dados mais seguros que nos vêm das várias ciências. E o faz com rigor, reconhecendo que outras leituras também são possíveis e que não há uma solução única para os problemas em pauta.

PLANETA – O conceito da ecologia integral supera o prisma ambiental e repercute em setores como economia e consumo individual. Adotá-lo pode significar, para a maioria das pessoas, mudar fortemente seu estilo de vida. Como a encíclica pode ajudar nessa transformação?
BOFF –
A encíclica é contemporânea e moderna porque se situa dentro do discurso ecológico como se dá hoje na comunidade científica e nos meios que tratam da ecologia. Eu me dedico ao tema já há 30 anos e tenho trabalhado as quatro ecologias – a ambiental, a social, a mental e a integral –, fazendo até um DVD de cunho pedagógico e popular para divulgar uma visão mais holística e completa dessa questão. Se nos restringimos apenas à ecologia ambiental, como é comum nos discursos oficiais e nos meios de comunicação, corremos o risco do antropocentrismo, ou seja, ver apenas a relação do ser humano com seu entorno, descurando as demais dimensões, como a social (as formas como socialmente nos relacionamos com a natureza), a mental (que tipo de ideias, sonhos, preconceitos e visões de mundo ocupam nossa mente) e a integral (que considera a Terra como parte do universo, entendido dentro da moderna cosmologia, em processo de cosmogênese e ligado e religado a todo tipo de relações que constituem nosso universo, também com aquela realidade poderosa e amorosa que muitos cosmólogos chamam de “abismo originador de todos os seres” ou “a fonte originária de onde tudo provém para onde tudo retorna”). A visão integral convida as pessoas a desenvolver uma relação mais benevolente com a natureza e a Casa Comum, relação de mutualidade, de inter-retro-relação, de encantamento pela beleza e complexidade de todo o universo e de respeito para com a Mãe Terra. Ecologia, aqui, não tem a ver apenas com a gestão de bens e serviços escassos, mas com uma nova forma de relacionamento com a realidade, sentindo-nos parte dela e responsáveis por seu destino.


A evolução da ciência criou máquinas de matar, como as armas nucleares. Ela deve estar subordinada a uma relação mais benevolente entre o ser humano e sua Casa Comum, na qual haja respeito com a Mãe Terra

PLANETA – Como a tecnociência, que colaborou com o progresso humano, mas deteriorou o ambiente, pode ser usada apenas em prol do ser humano e do mundo?
BOFF –
Não podemos dar conta das necessidades humanas hoje sem usar a tecnologia. Num sentido filosófico como foi visto por Martin Heidegger, ela pertence à nossa existência concreta de tal forma que não podemos mais entendê-la sem a inclusão da tecnologia. Ela prolonga nossa própria existência. Essa tecnociência trouxe inúmeras comodidades para a vida humana e mudou a face da Terra. Por outro lado, criou uma máquina de morte com armas nucleares, químicas e biológicas que nos podem fazer desaparecer definitivamente da face da Terra. O que predomina hoje não é a tecnociência, mas a tecnocracia, ou seja, o pensamento único de que somente podemos resolver nossos problemas mediante o recurso da técnica. Ela domina a sociedade, a natureza e os próprios ciclos da Terra. É o grande instrumento de poder, compreendido como forma de dominação sobre tudo e todos. A essa concepção o papa faz uma rigorosa crítica, dizendo que ela é a principal responsável pelo desequilíbrio da Terra e, no seu termo, pode ser até suicida.

PLANETA – A atuação de Francisco tem chamado atenção pelo impacto alcançado. Sua participação foi decisiva na reaproximação EUA-Cuba, e sua encíclica, somada à decisão do G7 de eliminar o uso de combustíveis fósseis até 2100, sugere que a COP21, em Paris, terá um fim mais produtivo do que se imaginaria há alguns meses. O papa está sacudindo velhas estruturas e incentivando-as a avançar. Até onde ele pode ir?
BOFF –
O papa tem clara consciência dos riscos que pesam sobre o sistema-vida e o sistema-Terra. Podemos conhecer o abismo e o caminho já percorrido pelos dinossauros há 65 milhões de anos. Essas ameaças não são projeções fantasmagóricas. Um importante documento, a Carta da Terra, começa referindo-se a essa ameaça: “Ou fazemos uma aliança global para cuidarmos uns dos outros e da Terra, ou então assistiremos à nossa autodestruição e a da diversidade da vida”. Daí o tom de urgência que assumem suas palavras. O tempo do relógio corre contra nós. Mas o papa Francisco confia na criatividade e na racionalidade dos seres humanos, que podem evitar um fim trágico e inaugurar um novo modo de relacionamento para com a vida e a Terra, mais benevolente e respeitador de tudo o que existe e vive. Finalmente, como homem religioso, acredita naquilo que a tradição judaico-cristã afirma no Livro da Sabedoria: “Deus é o soberano amante da vida”. Um Deus assim não permitirá um fim trágico à nossa vida que ele desde sempre amou.