Nos últimos anos, as cotações do trigo, do arroz, do milho e da soja dispararam, afetando a vida de bilhões de pessoas. Segundo Robert Zoellick, presidente do Banco Mundial (Bird), os preços dessas mercadorias subiram em média 83% desde 2005, com o arroz atingindo seu recorde de alta em 19 anos e o trigo, em 28 anos. Essa inflação de alimentos planetária – um “tsunami silencioso”, afirma a ONU – tem causado protestos em locais tão distantes quanto o Haiti e as Filipinas, a Itália e o Usbequistão, a Tailândia e o Egito, o Paquistão e a Indonésia.

A maioria desses países está na periferia econômica do mundo, mas o problema entrou de vez no radar dos organismos internacionais. O diretor-gerente do Fundo Monetário Internacional (FMI), Dominique Strauss- Kahn, considera que, se os preços continuarem a subir na velocidade atual, a fome atingirá centenas de milhares de pessoas e deflagrará guerras em nações ameaçadas pela situação. Segundo o Bird, 36 países correm risco de desestabilização política e conflitos internos por conta da crise, e os preços dos alimentos podem levar cerca de 100 milhões de pessoas da pobreza à miséria total.

Os ministros das Finanças dos países ricos afirmaram em abril que o Fundo e o Bird deveriam trabalhar juntos para oferecer uma “resposta integrada” ao problema. Paralelamente, o secretário-geral da ONU, Ban Ki-Moon, anunciou a criação de uma força-tarefa das agências do órgão para enfrentar a crise.

Na mesma época, a ONU divulgou um amplo relatório sobre a produção de alimentos no mundo, chamado International Assessment of Agricultural Science and Technology for Development (IAASTD). O texto resume o trabalho de 400 cientistas de todo o planeta realizado nos quatro últimos anos e serve como advertência à forma de negócio que hoje domina os campos.

O MUNDO PRODUZ alimento suficiente para seus habitantes? Sim, respondem os cientistas – mas, apesar disso, 800 milhões de pessoas passam fome. “A comida é mais barata e as dietas são melhores do que há 40 anos, mas a subnutrição e a insegurança alimentar ameaçam milhões”, diz o relatório. “A distribuição desigual de alimentos e o conflito sobre o controle dos minguantes recursos naturais do mundo apresentam um grande desafio social e político para os governos, próximo de alcançar o status de crise conforme a mudança climática avança e a população mundial cresce de 6,7 bilhões para 9,2 bilhões por volta de 2050.”

A polêmica dos biocombustíveis

Um brasileiro desavisado que desde o fim dos anos 1970 se habituou a ver carros movidos a álcool circulando nas ruas do País deve estar atônito com as condenações aos biocombustíveis no noticiário internacional. “Ué, mas eles não poluem menos?”, perguntaria nosso conterrâneo. Certíssimo: a emissão de CO2 originária do etanol é muito baixa. A polêmica não se localiza aí, mas em outros terrenos, nos quais se misturam ignorância, desinformação e má-fé.

Tudo tem início ao se colocar no mesmo barco o álcool brasileiro, extraído da cana-de-açúcar, e os outros biocombustíveis, como o etanol americano, obtido do milho. Cana, como se sabe, não é alimento básico. Já o milho é uma das mais importantes fontes de proteína para a alimentação humana e animal.

Os Estados Unidos lideram a produção mundial de etanol, mas a um custo perverso. De acordo com o ex-relator da ONU para o Direito à Alimentação, Jean Ziegler, 35% do milho colhido no país em 2007 foi destinado à indústria alcooleira, o que aumentou drasticamente seu preço. Como os EUA praticamente não têm mais espaços cultiváveis e subsidiam o etanol de milho, os milharais avançaram sobre áreas destinadas a outras culturas, como trigo e soja – razão adicional para a alta de preços. Na Europa, são as plantações de colza e girassol (de onde se extrai biodiesel) que tiram espaço das lavouras de alimentos básicos.

A situação brasileira é bem diferente. Segundo a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), os canaviais só ocupam 1% das terras cultiváveis do País e expandem-se principalmente em áreas de pastagens degradadas. Para ajudar, o cultivo da cana está associado ao de outros alimentos. “De 15% a 20% da área com cana precisa ser renovada anualmente, e nessa renovação os produtores estão plantando leguminosas”, explicou à agência noticiosa Reuters o ex-ministro da Agricultura Roberto Rodrigues, ele próprio um plantador de cana. “É uma rotação agronomicamente favorável: a leguminosa fixa nitrogênio no solo, que é um adubo natural para a cana. De modo que municípios canavieiros são hoje grandes produtores de soja, amendoim, feijão.”

Outro item relevante é a quantidade de petróleo exigida na produção de um determinado bem. A diferença, nesse aspecto, mostra-se abissal: com um barril de petróleo os americanos produzem etanol equivalente a apenas 1,3 barril, enquanto a proporção brasileira é de 1 para 11. “Nosso sistema de produção a partir da cana é quase dez vezes mais eficiente do que o sistema dos EUA”, afirma o biólogo Fernando Reinach em sua coluna no jornal O Estado de S. Paulo.

Reinach ressalva que nem tudo é elogiável no etanol brasileiro: “Em boa parte dos canaviais, ainda queimamos a cana antes de colher, as condições de trabalho dos cortadores são lamentáveis e temos de garantir que nossa expansão agrícola possa conviver com a preservação da Floresta Amazônica e do cerrado.” De fato, o risco de florestas darem lugar a lavouras para biocombustíveis existe, mas daí a envolver o etanol nacional numa condenação generalizada aos biocombustíveis vai uma distância galáctica. A explicação para tamanho equívoco teria, previsivelmente, motivação econômica, arriscou Roberto Rodrigues em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo: “Acho que é um argumento especulativo, de interesses empresariais, setoriais, de gente que está perdendo dinheiro e querendo desmanchar o processo.”

O problema tem diversas causas, todas inter-relacionadas. Conheça a seguir as principais:

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Aumento da demanda – A entrada de cerca de 400 milhões de pessoas no mercado nos últimos dez anos – a maioria originária de dois gigantes antes adormecidos, a China e a Índia – sacudiu vários setores da economia, entre os quais o de alimentos. A interferência não foi apenas no setor de grãos: como lembra o jornalista de economia Celso Ming, a dieta dos países asiáticos passou a incorporar mais proteínas, o que explica o aumento da procura de carne e de produtos derivados do leite (e bovinos, em geral, alimentam-se de rações à base de grãos como soja ou milho). Enquanto isso, fora o Brasil, há escassez de novas terras cultiváveis. Resultado: há uma enorme demanda alimentar ainda por ser atendida.

Petróleo em alta – Em junho, o preço do barril de petróleo chegou a US$ 138,54 – 116,47% acima do valor de abril de 2007. E pode subir bem mais: defendendo os interesses do cartel que lidera, Chakib Khelil, presidente da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep) e ministro de Minas e Energia da Argélia, diz que é “natural” o barril atingir US$ 200 (o preço, diz ele, está ligado à desvalorização internacional do dólar). Essa escalada afeta diretamente vários setores relacionados à agricultura, como a fabricação de fertilizantes e os fretes de transportes, e é especialmente danosa para produtores de países em desenvolvimento, mais vulneráveis aos altos preços.

Mudança climática – Para muitos cientistas, as secas que, por seis anos seguidos, têm arruinado as safras de arroz e trigo na Austrália são um dos sintomas mais visíveis dos efeitos do aquecimento global sobre a produção de alimentos. Outras regiões agrícolas também sofrem com o clima – em 2007, por exemplo, secas atingiram Ucrânia (o maior celeiro da Europa), China, Casaquistão e Argentina, enquanto chuvas intensas castigaram a América do Norte e países europeus.

“O aumento das temperaturas e o declínio das precipitações nas regiões semi-áridas vão reduzir os rendimentos de milho, trigo, arroz e outras culturas primárias”, afirmam os cientistas americanos David Lobell, Molly Brown e Christopher Funk na revista Science de 1º de fevereiro deste ano. Segundo eles, eventos naturais como o aquecimento do Oceano Índico e o agravamento do fenômeno El Niño deverão piorar a situação nas Américas, na África e na Ásia.

Segundo o relatório do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC), da ONU, divulgado em 2007, uma pequena elevação da temperatura média mundial já reduziria a produção agrícola nos países tropicais e subtropicais. Essa mudança favoreceria nações distantes do equador, como Rússia e Canadá, mas o custo econômico e ambiental de levar os alimentos desses produtores para os trópicos seria imenso. E se a temperatura subir ainda mais, o prejuízo agrícola será generalizado.

O alto custo e o potencial poluidor do barril de petróleo (alto) impulsionaram a produção de biocombustíveis (acima), que roubou espaço dos alimentos.

Mudanças no clima afetam regiões agrícolas em todo o mundo

Fracasso dos organismos geneticamente modificados – A tecnologia dos OGMs é promissora, mas, para o IAASTD, ela ainda não conseguiu ampliar a oferta mundial de produtos agrícolas. Algumas pesquisas reforçam essa conclusão. Um estudo da Universidade do Kansas, por exemplo, mostrou que a soja GM rendeu uma colheita 10% menor do que a versão tradicional. Outra pesquisa, da Universidade de Nebraska, revelou que a soja GM produziu uma safra 6% menor do que a versão natural mais próxima e 11% pior do que a melhor soja tradicional disponível no mercado. Resultados parecidos foram notados em algodoais nos EUA.

Biocombustíveis – Vistos como uma forma de reduzir a dependência do petróleo e as emissões de gases do efeito estufa, os biocombustíveis foram abraçados com entusiasmo pelas potências econômicas a partir de 2006. Eles substituiriam no mínimo 10% dos combustíveis fósseis usados em veículos da União Européia até 2020 e 20% da gasolina consumida nos EUA até 2017. Para atingir essas metas, porém, europeus e americanos recorreram a uma tradicional ferramenta de sua política agrícola – o subsídio – e, com isso, a área destinada à produção de alimentos caiu. O que tem ocorrido nesses países levou Jean Ziegler, ex-relator da ONU para o Direito à Alimentação, a definir os biocombustíveis como “crime contra a humanidade”.

Subsídios – A ajuda de US$ 6 bilhões por ano concedida pelo governo americano ao etanol, que levou muitos produtores de soja e trigo daquele país a migrar para o milho, é apenas o exemplo mais recente das terríveis distorções causadas pelos subsídios. O problema, originário do interesse dos governos de defender seus produtores da concorrência externa, causa um imenso desarranjo na economia mundial. Com ele, produtos como o algodão americano e o açúcar europeu são exportados a preços tão baixos que inviabilizam o cultivo em muitos países em desenvolvimento.

NA AGROPECUÁRIA do Primeiro Mundo, é comum cada país reclamar dos subsídios que os outros oferecem enquanto defende com unhas e dentes seus próprios incentivos, não raro cobrando taxas de eventuais importações. A atual crise poderia mudar esse quadro – segundo Pascal Lamy, secretáriogeral da Organização Mundial do Comércio (OMC), uma proposta em discussão na Rodada Doha de negociações reduz em 75% os subsídios domésticos com potencial para distorcer o comércio, e a comissária de Agricultura e Desenvolvimento Rural da União Européia, Mariann Fischer Boel, propôs em maio o fim dos incentivos para a produção de biocombustíveis no bloco. Nesse caso, porém, como diria São Tomé, só vendo para crer.

Cerca de 30% da inflação dos alimentos deriva da especulação

Especulação – A queda de cerca de 37% da cotação do dólar no mercado internacional nos últimos seis anos levou muitos investimentos para as bolsas de commodities (mercadorias cuja lista inclui alimentos básicos e petróleo). Essas operações envolvem tanto grandes aplicadores como pequenos investidores, todos atraídos pela alta dos produtos agrícolas. Segundo Jean Ziegler, a especulação responde, sozinha, por 30% do aumento de preço dos alimentos básicos.

A crise tem solução? Respostas imediatas baseadas em consenso internacional parecem ilusão: como esperar cooperação dos protagonistas mundiais se eles já não se entenderam em relação às mudanças climáticas, outro tema global? E o mercado, seguindo sua lógica interna, não tem interesse numa queda rápida de preços. As frágeis conclusões da Cúpula sobre Segurança Alimentar da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO), em junho, demonstram isso.

Secas e outras mudanças climáticas prejudicam o plantio (alto); malvistos por ONGs, os transgênicos (acima) ainda não confirmaram sua viabilidade.

“Não acredito numa solução de mercado nem na cooperação internacional”, afirma Celso Ming. “Organismos como a ONU e a FAO dão palpites, mas não têm poder coercitivo. E se os países desenvolvidos estivessem interessados em resolver o problema, reduziriam seus subsídios e os emergentes poderiam competir em outras condições.” Para Ming, só uma piora ainda maior da situação poderia mobilizar governantes, mercados e outras forças para tomar providências mais efetivas.

Mas o céu não está totalmente escuro. Em 1974 (um ano após o primeiro choque do petróleo), os alimentos custavam o equivalente ao dobro dos preços atuais e o quadro mudou radicalmente, graças sobretudo à evolução tecnológica. Preços altos, afinal, são um atrativo imperdível para qualquer agricultor, e a produtividade continua a ser impulsionada por inovações. Em entrevista à agência Reuters, o exministro da Agricultura Roberto Rodrigues disse confiar numa resolução da crise entre quatro e seis anos – via mecanismos de mercado. Seja qual for a duração desse intervalo, as populações mais pobres do planeta conviverão de forma mais intensa com o problema. Mas, infelizmente, isso não chega a ser novidade no atual estágio do mundo, não é mesmo?