Enquanto a maioria de nós provavelmente gostaria de esquecer a pandemia o mais rápido possível, alguns optaram por um lembrete permanente da crise de saúde – na forma de uma tatuagem. Algumas dessas tatuagens servem como uma lembrança do ano passado, retratando motivos em torno da escassez de papel higiênico, distanciamento social e outras mensagens relacionadas à pandemia. Mas aqueles que perderam entes queridos para a doença também estão usando tatuagens como memoriais.

Este não é um fenômeno recente – as tatuagens sempre serviram como uma forma de as pessoas expressarem suas emoções.

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Como historiadora de tatuagens, sempre gosto de perguntar às pessoas de onde elas acham que as tatuagens se originaram. Ouço a menção de países como China, Japão, “algum lugar na África ou América do Sul” ou Polinésia. O interessante é que, nos últimos cinco anos em que mantenho essas conversas, ninguém até agora respondeu que as tatuagens poderiam ter se originado na Europa ou na América do Norte.

As áreas geográficas que essas respostas incluem, e o que elas deixam de fora, revelam uma verdade mais profunda sobre a história das tatuagens: o que sabemos e pensamos sobre tatuagens é fortemente influenciado pela opressão, pelo racismo e pelo colonialismo.

Homem maori tatuado. Crédito: Thomas Chambers a partir de arte original de Sydney Parkinson, século 18/Wikimedia Commons
Homem maori tatuado. Crédito: Thomas Chambers a partir de arte original de Sydney Parkinson, século 18/Wikimedia Commons
História das tatuagens

As práticas de tatuagem eram comuns em muitas partes do mundo antigo.

Havia tatuagens no antigo Japão e no Egito. Os maoris da Nova Zelândia têm praticado a tatuagem sagrada Ta Mōko por séculos como uma forma de indicar quem eles são como indivíduos e também quem é sua comunidade.

No entanto, nenhuma cultura pode reivindicar a primeira invenção da forma de arte. As práticas de tatuagem eram conhecidas na Europa e na América do Norte desde a antiguidade. Os gregos representavam seus tatuados vizinhos trácios, povos de língua indo-europeia, em suas cerâmicas. Os pictos, povos indígenas do que hoje é o norte da Escócia, foram documentados por historiadores romanos como possuidores de tatuagens complexas.

As tatuagens mais antigas preservadas vêm de Ötzi, o Homem de Gelo, um corpo mumificado de 5.300 anos congelado no gelo descoberto nas montanhas da Itália em 1991. Em 2019, os pesquisadores identificaram agulhas de tatuagem de 2 mil anos em sítios arqueológicos de Pueblo, no sudeste de Utah (EUA). Os espinhos dos cactos amarrados com folhas de iúca ainda tinham vestígios de tinta de tatuagem.

Giolo (nome verdadeiro: Jeoly) de Miangas (ilha no norte da atual Indonésia), que se tornou escravo em Mindanao (ilha das atuais Filipinas) e foi comprado, com sua mãe, pelo explorador inglês William Dampier. Jeoly foi exibido em Londres em 1691 para grandes multidões em um circo, até morrer de varíola três meses depois. Sua mãe faleceu ainda durante a viagem à Europa. Crédito: John Savage, Biblioteca Estadual de Nova Gales do Sul/Wikimedia Commons
Colonização e tatuagens

O historiador da tatuagem Steve Gilbert explica que a própria palavra “tatuagem” é uma combinação de palavras marquesanas e samoanas – tatau e tatu – para descrever essas práticas. Os marinheiros que exploraram essas ilhas polinésias combinaram as palavras enquanto trocavam histórias de suas experiências.

Surge então a questão: se as tatuagens existiam na Europa e na América do Norte desde a antiguidade, por que as culturas ocidentais se apropriaram e combinaram essas duas palavras em vez de usar palavras que já existiam em suas próprias?

Como descobri em minha pesquisa, por volta de 1400, as tatuagens se tornaram uma maneira fácil de traçar uma linha entre os colonizadores europeus e os colonizados, que eram vistos como “incivilizados”.

A tatuagem ainda era praticada na Europa e na América do Norte, mas muitas dessas práticas de tatuagem haviam se tornado clandestinas na época em que a colonização europeia estava em pleno andamento.

Isso foi em parte o resultado de tentativas de “cristianizar” partes da Europa purgando cidades e vilas de práticas “pagãs” não conformistas e não religiosas – incluindo a tatuagem. À medida que as igrejas católicas expandiram sua influência por meio de missionários e campanhas de assimilação começando em 391 d.C., as tatuagens foram consideradas “não cristãs”.

Prostituta japonesa da Era Kansei sofre enquanto tem seu braço tatuado. Crédito: Yoshitoshi, 1888/Wikimedia Commons
Não como nós

À medida que os colonizadores ocidentais invadiam lugares como a África, as ilhas do Pacífico e as Américas do Norte e do Sul nos anos 1400 e 1500, eles encontraram grupos inteiros de povos nativos que eram tatuados.

Esses indivíduos tatuados eram frequentemente apontados como prova de que os “nativos indomados” precisavam da ajuda de europeus “bons e tementes a Deus” para se tornarem totalmente humanos. Indivíduos tatuados dessas culturas foram até mesmo trazidos de volta e apresentados pela Europa com fins lucrativos.

Uma mãe e seu filho indígenas tatuados, sequestrados por exploradores no final dos anos 1600 em um local desconhecido no Canadá, foram duas dessas vítimas. Um folheto de anúncio da época dizia: “Agradeçamos a Deus Todo-Poderoso por esta beneficência, que se nos declarou pela sua Palavra, para que não sejamos como esses selvagens e devoradores de homens”.

As pessoas pagariam para ficar boquiabertas com esses seres humanos escravizados, fazendo de seus captores um lucro saudável e reafirmando na mente do público a necessidade de expansão europeia, qualquer que fosse o custo humano.

Esse sequestro de pessoas tatuadas teve efeitos destrutivos nas culturas das quais foram tiradas, já que frequentemente os indivíduos mais tatuados, e portanto os com maior probabilidade ​​de serem levados, eram os líderes e pessoas sagradas.

Tatuagens na senhora M. Stevens Wagner, em foto de livro de 1907. Crédito: Body Art/Wikimedia Commons
Shows de aberrações

É importante notar que a maioria dos cativos não viveu mais do que alguns meses depois de chegar à Europa, sucumbindo a doenças estrangeiras ou desnutrição quando seus escravizadores não os alimentavam.

Essa narrativa do “selvagem tatuado” foi levada ainda mais longe quando os indivíduos tatuados começaram a ser exibidos no carnaval e nos “shows de aberrações” de circos.

Esses artistas não só divulgaram a narrativa de tatuagens como “selvagens” ou “diferentes”, atuando como aberrações, mas também inventaram histórias de fundo trágicas. Os artistas alegavam que haviam sido atacados e tatuados à força por pessoas marginalizadas, como os nativos americanos, que o público em geral considerava “selvagens”.

Entre esse grupo de artistas foi a americana Nora Hildebrandt. Nora traçou um relato de que foi capturada por nativos americanos que a tatuaram à força.

Mulher ocidental recebe tatuagem em seu pé, em foto de 2017. Crédito: Tony Alter/Wikimedia Commons
Mulher ocidental recebe tatuagem em seu pé, em foto de 2017. Crédito: Tony Alter/Wikimedia Commons
Estigma

Essa era uma história mais angustiante do que a realidade de que seu parceiro de longa data, Martin Hildebrandt, tinha sido seu tatuador. Sua história era particularmente desconcertante, já que as tatuagens de Nora Hildebrandt eram principalmente de símbolos patrióticos, como a bandeira americana.

As vozes dos colonizadores ecoam até o presente. As tatuagens carregam um certo estigma nas sociedades ocidentais. Muitas vezes, elas podem acabar sendo chamadas de “escolha de vida ruim” ou “lixo”. Estudos recentes em 2014 discutem a persistência do estigma.

Vejo as tatuagens como arte e uma forma de comunicar identidade. Ao responder à pergunta “de onde vêm as tatuagens?”, eu diria que elas vêm de todos nós, independentemente do que os primeiros colonizadores quisessem que as pessoas acreditassem.

* Allison Hawn é professora na Universidade Estadual do Arizona (EUA).

** Este artigo foi republicado do site The Conversation sob uma licença Creative Commons. Leia o artigo original aqui.