Você é capaz de voar num avião que aterrize de costas? Embarcar tendo só a certeza do destino, mas sem saber se vai chegar? É claro que não. Afinal, ninguém é tão insano a ponto de arriscar a própria vida, não é óbvio? Não, não é. Saiba que há pessoas – e muitas – que fizeram isso. Caso das tripulações das caravelas que partiam de Portugal para descobrir novas rotas marítimas e redesenhar o mapa do mundo, entre os séculos 15 e 17. Permeadas por dramas, subornos e intrigas, essas viagens eram verdadeiras aventuras, conforme descreve O ponto onde estamos, de Paulo Miceli, pesquisador da Unicamp.

São histórias que a gente não aprende na escola. Mesmo porque nelas muito se ensina sobre o espírito empreendedor dos governos de Portugal e da Espanha. Destemidos e audaciosos, seus reis investiram na expansão marítima, nas descobertas de rotas marítimas e de novas terras, numa época em que a concepção que se tinha do mundo era a de que tudo girava ao redor da Terra (geocentrismo de Ptolomeu), e não a de um planeta esférico que gira ao redor do Sol (heliocentrismo), conforme comprovaram mais tarde as teorias de Nicolau Copérnico e de Galileu Galilei.

A história do historiador

Paulo Miceli nasceu em São Paulo. Seu primeiro emprego foi na tapeçaria do pai. Depois, fez um pouco de tudo, de boy a pesquisador. Há alguns anos, é professor, “embora nunca tenha gostado de certas coisas do ambiente escolar”. Cursou história na Universidade de São Paulo (USP), nos anos da ditadura militar, quando integrava o movimento estudantil, o que lhe “rendeu” duas idas ao Dops. Fez cursos de pós-graduação na Unicamp, onde é professor. Também passou pelo Enem, Provão e Exame Nacional de Certificação de Competências de Jovens e Adultos. Hoje, trabalha no projeto de reformulação do ensino em São Paulo, junto à Secretaria de Educação, experiência que considera como uma das coisas mais importantes de sua vida profissional, principalmente por tratar da escola pública. “É como se eu estivesse pagando uma dívida, que sempre reconheci ter com aquela que foi a minha escola, a escola da maioria”, diz.

No livro “O ponto onde estamos” (Editora Unicamp, 232 páginas), Paulo Miceli revela surpreendentes facetas das navegações.

DE ALGUM MODO, as imagens que povoam nosso imaginário sobre esse período histórico – um universo habitado por homens destemidos, misto de Gulliver e Robinson Crusoé, que se aventuram pelo oceano enfrentando a fúria de temíveis monstros marinhos, piratas, corsários e toda a espécie de perigo – são verdadeiras, só que a realidade é bem pior. Para começar, Portugal foi um dos países mais atingidos pela peste bubônica na Europa.

Embora os registros não sejam precisos, o país, já a partir do século 14, foi palco de avassaladores (e sucessivos) surtos da epidemia, alguns dizimadores, outros menos cruéis, se é que se pode dizer isso quando o doente e sua família são totalmente isolados e excluídos do convívio social. Ou quando a porta de sua casa e suas roupas são marcadas para sinalizar que a doença ali está presente e qualquer pessoa que fale com ele é punida com uma multa imposta pela coroa portuguesa.

Além da peste, do escorbuto e das demais doenças provindas das péssimas condições sanitárias e higiênicas das cidades e de seus cidadãos (lembre-se de que eles quase não tomavam banho), Portugal era ainda duramente castigada por terremotos, catástrofes naturais e guerras. “O que as navegações têm a ver com isso?”, você deve estar pensando. Tudo, responde Paulo Miceli. Vou contar algumas curiosidades do livro para que você entenda essa relação e reflita sobre como ela alterou a nossa história e como ainda agora influencia a sua vida.

A Lisboa do século 16 começou a se expandir, do lado ocidental, a partir do Mosteiro dos Jerônimos e da Torre de Belém, tendo, ao leste, o Convento Madre de Deus. Centro econômico e administrativo, a Ribeira era a área chique da cidade, onde moravam os cirurgiões, mercadores, professores e funcionários da Câmara. Por suas ruas também transitavam moleques e vadios que furtavam bolsas e outros objetos dos abastados transeuntes. Até então, quem fosse pego em flagrante tinha suas orelhas cortadas e expostas em locais públicos, para servir de exemplo a outros ladrões.

Diante da ameaça da peste e de seu contágio, o rei dom Manuel determinou que as orelhas decepadas fossem imediatamente enterradas. Mas, como nem a mutilação foi capaz de inibir os furtos, anos mais tarde, em 1536, o seu sucessor, dom João 3º, determinou que “os moços vadios, que andam na Ribeira a furtar bolsas, e a fazer outros delitos, sejam desterrados para o Brasil”. Como viajariam? Nos navios, é claro, nos quais teriam como companhia a fome, a sede e o trabalho quase escravo “remunerado” com falsas promessas de enriquecimento fácil nas terras desconhecidas.

Como eles, a maior parte da tripulação das embarcações portuguesas nada entendia sobre o mar. Imagine que o capitão, vendo-se diante de uma ilha rochosa ou de um recife, pedisse para que os marinheiros manobrassem o leme a bombordo e eles o fizessem a estibordo, exatamente para onde estava o obstáculo do qual deveriam desviar. Pfaff! A caravela batia e afundava. Sorte de quem sobrevivesse! A situação seria ainda mais trágica não fosse a solução encontrada pelos portugueses.

Sabe o que fez o capitão João Homem, cuja caravela integrava uma frota que partiu de Lisboa em 1505? Mandou pendurar réstias de alho à esquerda e de cebola à direita (ou vice-versa), para que os marinheiros distinguissem um lado do outro. Agora, pense na cena: o cenário é de um profundo azul desconhecido sobre o qual desliza a nau de 60 metros de comprimento. Em seu interior, cerca de 800 a 1.200 viajantes (em média, era esse o tamanho das embarcações e a quantidade de gente que transportavam). Num certo momento, o capitão grita: “Homens, virem o leme para a cebola. Agora, um pouco mais ao alho”. Eu, hein?

Além das guerras travadas em pleno oceano, os marinheiros quase sempre morriam de fome e de doenças, como a peste e o escorbuto. Na época, pensava-se que esses males podiam ser curados com a sangria (retirada de sangue várias vezes ao dia), o que causava ainda mais fraqueza.

NÃO BASTASSE o despreparo dos homens do mar, havia ainda os naufrágios que ocorriam antes mesmo de a embarcação zarpar, já nos portos do estuário do Tejo (onde o rio de mesmo nome e o oceano Atlântico se fundem). Motivo? Na ganância de obter mais lucro, o rei e os arquitetos navais fabricavam a nau com a madeira verde (extraída antes da hora) de sobro, pinho (usado para o tablado) ou outras espécies que não serviam para esse tipo de construção, pois torciam, apodreciam ou encolhiam.

Mais do que baratear o custo de produção, eles queriam que a caravela ficasse pronta logo, ainda que fabricada com matéria-prima inadequada, para que partisse rapidamente e mais vezes rumo à caça de tesouros. Vale notar que a vida útil dessas embarcações era pequena – as mais bem construídas faziam de uma a três viagens, no máximo. Em geral, se prestavam a uma única viagem e não serviam mais. Outro problema era a negligência dos carpinteiros, que “esqueciam” de colocar pregos em locais estratégicos da nau. Resultado: a água do mar entrava pelos buracos das tábuas que caíam ou pelas fendas provocadas pela dilatação ou não da madeira empregada em sua construção.

Não é só. Embora a coroa portuguesa divulgasse que nas novas terras havia muitas riquezas, nem todos lucravam nessas desvairadas epopéias pelos mares. Adivinhe só quem enriquecia com elas? O rei, é claro, mas também o capitão-mor, o piloto, o mestre e o contramestre. Já os marinheiros, soldados, grumetes e pajens eram muito mal pagos – se o capitão-mor ganhava 10 mil cruzados por mês, um marinheiro recebia dez cruzados, cabendo ao grumete metade desse valor e ao pajem um terço do que se pagava ao grumete. Detalhe: o piloto, a quem cabia a tarefa de conhecer o céu, os astros e as cartas náuticas, quase sempre era um fidalgo a quem o rei devia favores (certamente você conhece histórias bem parecidas) e que nada sabia sobre a arte de navegar.

OS DESASTRES ERAM tantos que o escritor português Gil Vicente escreveu uma peça sobre o assunto, satirizando a incompetência dos apadrinhados pelo rei e a ignorância dos grumetes com as coisas mais elementares de bordo. Encenada pela primeira vez ao rei dom João 3º e à rainha Catarina, no nascimento da infanta Isabel, em 28 de abril de 1529, Triunfo do inverno, uma de suas criações menos conhecidas, narra um desses episódios. Nele, o piloto manda o grumete caçar o traquete (atar a vela) e ele pergunta para outro: “E quem é o traquete?” O outro responde: “O traque (peido) sei eu que é/Mas o que quete não sei eu/Inda agora onde ele s’é.”

Mais adiante, é a vez de o piloto ser ridicularizado. Diante da possibilidade de naufrágio, um marinheiro o adverte de que mude de rumo. O piloto se confessa perdido: “Porque nunca fui piloto, senão lá para a Guiné.” Inconformado, o marinheiro diz: “Quem vos houve a pilotagem/Para a Índia desta nau?/Porque um piloto de pau/Sabe mais de marinhagem.” Com mágoa, acrescenta: “Esta é uma errata/Que mil erros traz consigo/Ofício de tanto perigo/Dar-se a quem não sabe nada.”

As cenas seguintes trazem novos desencontros entre piloto e marinheiro, num duelo entre inexperiência e a prática adquirida no exercício diário do ofício. Em uma delas, o piloto ignora o alerta da tempestade que se aproxima. Em segundos, o temporal castiga a nau. Apavorado, ele invoca a ajuda dos santos. O marinheiro o aconselha que pare de rezar e acuda a embarcação. A confusão aumenta. Aí é a vez de o marinheiro entrar em pânico. Desesperado, ele clama aos céus: “Jesus! Jesus! Santiago!/Ó Virgem Maria da Luz/Eu te prometo uma cruz/E um tribulo (turíbulo) e um bago (báculo).”

Longe do palco, a rotina no interior de uma caravela não tinha nada de hilariante. Na vida real, os naufrágios eram freqüentes e poucos regressavam com vida dessa desvairada aventura – muita gente morria de fome, sede e doenças, incluindo a peste. Numa ocasião, dom Manuel, diante da escassez de mão-de-obra, autorizou que portadores da peste integrassem a tripulação das frotas portuguesas. Nem é preciso contar o final negro desse capítulo!

PRIMEIRO MAPA DO BRASIL

De autoria de Pedro Reinel (1519), da Escola Portuguesa, a ilustração ao lado retrata a costa brasileira no primeiro mapa do Brasil. O tesouro do século 16 hoje faz parte do acervo da Biblioteca Nacional de Paris, na França.

TAMBÉM ERA COMUM que a comida e a água de bordo acabassem antes do término da viagem. Na hierarquia de bordo, os oficiais apadrinhados pelo rei podiam levar tonéis de vinho, de azeite e de água, cabritos, porcos, galinhas e outros suprimentos, enquanto os demais só embarcavam os gêneros que conseguissem levar na partida, conforme sua condição social permitisse. Em períodos de calmaria, a maioria dos tripulantes tinha de se contentar com biscoitos embolorados corroídos por ratos e baratas e água podre. Enfim, com a comida e bebida que lhes dessem. Se e quando dessem.

No interior das caravelas, os mantimentos eram trancados e a porta da despensa guardada a sete chaves pelo mestre ou despenseiro. Em terra, quem abastecia as embarcações eram os armazéns reais. E era aí que começavam os problemas… Ao menos, os da maioria de seus miseráveis viajantes. Por quê? Bem, inúmeras e imprevisíveis contingências intervinham no fornecimento dos alimentos, desde a falta de produtos disponíveis para atender às necessidades da viagem até a contabilidade cobiçosa que mentia sobre o número de pessoas embarcadas ou aumentava, nos registros, a quantidade fornecida de fato.Jean de Léry sentiu as conseqüências dessa matemática enganosa e os efeitos da fome implacável no próprio navio. Ou melhor, no próprio estômago. Ao deixar o Brasil e voltar para a Europa, ele narra em seu livro de viagem: “A 12 de maio, o nosso artilheiro morreu de fome, depois de ter comido as tripas cruas de seu papagaio, e foi como os outros lançado ao mar. Pouco sentimos sua falta, pois estávamos tão extenuados que daríamos graças a Deus caso fôssemos apresados por qualquer pirata que nos desse de comer.”

“Mas a necessidade tudo inventa”, prossegue, “lembrou a alguns a caça aos ratos e ratazanas que, também mortos de fome por lhes termos tirado tudo que pudessem roer, corriam pelo navio em grande quantidade”. No mesmo relato, De Léry conta que os sobreviventes cozinhavam camundongos na água do mar, e davam a “essas vísceras maior apreço do que em terra davam a lombos de carneiro”. Por fim, confessa que a tripulação só não praticou o canibalismo por “temor a Deus, pois mal podíamos falar uns com os outros sem nos agastarmos e, o que era pior (perdoe-me Deus), sem nos lançarmos olhares denunciadores de nossa disposição antropofágica”.

ESSE DRAMA e outros mais fazem parte da intrigante viagem que o historiador Paulo Miceli fez ao passado e às rotas marítimas percorridas por heróis anônimos do período quinhentista. Seu trajeto expõe um universo bem distinto dos livros escolares, cujos capítulos exaltam o arrojo dos reis portugueses, a coragem dos viajantes, o êxito das navegações e as glórias de suas conquistas. Miceli, contudo, percorre a Lisboa manuelina e revela a miséria, o crescente número de escravos, o desprezo pelos trabalhos manuais que prevalecem nas ruas de uma das cidades mais ricas da Europa da época.

Desigualdades sociais que também embarcam nas frotas portuguesas. Suas caravelas são palco onde se desenvolvem dramas repletos de intrigas, ganância, venda de lucrativos cargos para oficiais inaptos, descaso quanto ao suprimento de alimentos e água, desprezo pelo sofrimento alheio e indiferença diante da morte. Navegar por essas águas é desvendar curiosos fatos do passado. É entrar no túnel do tempo e descobrir uma história que se repete no presente, uma trama não ficcional em que qualquer semelhança com os governos e governantes atuais não é mera coincidência.