Esta foto de 16 de outubro de 2009 mostra uma vegetação rasteira ocupando um trecho da ilha surgida no início daquele ano na foz do Rio Gironde, no litoral oeste da França, a 2,5 quilômetros do farol de Cordouan. Antes da passagem do ciclone Xynthia, neste ano, registrou-se a presença de 12 espécies de plantas e de 30 invertebrados naquele pedaço de terra.

Na madrugada de 23 de janeiro de 2009, o mais poderoso ciclone a atingir a França em uma década, o Klaus, tocou o solo do país no estuário do Rio Gironde, perto da cidade de Bordeaux, no litoral atlântico. Com ventos de até 200 km/h, ele deixou um rastro de destruição no seu caminho para o sudeste da Espanha e a Itália: 26 pessoas mortas, florestas devastadas, linhas de energia rompidas e edifícios e estradas seriamente danificados.

Curiosamente, dessa vez a fúria da natureza não deixou apenas morte e ruínas. Cerca de 11 quilômetros mar adentro a partir do estuário, surgiu uma ilha em meio às águas revoltas. Com a maré alta, sua extensão era de 40 mil metros quadrados; na maré baixa, ela chegava a 100 mil metros quadrados (0,1 km2). Mas não desapareceu, e sua presença constante fez o povo de Royan, um pequeno porto pesqueiro na foz do Gironde (no qual o presidente francês, Nicolas Sarkozy, passava suas férias de verão na infância), apelidá-la de “Ilha Misteriosa”, numa referência ao romance homônimo do mestre da ficção Júlio Verne.

Depois de resistir a um ciclone, o novo acidente geográfico tende a crescer, na opinião de geólogos e naturalistas

O novo pedaço de terra surgiu perto de onde havia outra ilha, Cordouan, que abrigava a Torre do Príncipe Negro, erguida pelos ingleses durante a Guerra dos Cem Anos. Ocupada desde os tempos dos romanos, Cordouan foi desaparecendo à medida que o calcário que a constituía sofria erosão, até sumir sob as ondas, no final da Idade Média. Em substituição à torre, a França ergueu o farol de Cordouan, concluído em 1611 e que hoje é o mais antigo do país.

Acima, visitantes caminham na ilha, com o farol mais antigo da França ao fundo. Abaixo, amostra do resultado da presença humana no local.

 

Localizada a cerca de dois quilômetros ao norte do farol, a nova ilha, composta de areia do leito oceânico e de sedimentos, atraiu rapidamente o interesse dos cientistas. À maneira de Surtsey – a ilha que surgiu em meio a erupções vulcânicas na costa da Islândia, em 1963 (ver PLANETA nº 442, págs. 26-29) –, seria possível acompanhar desde o início como a vida se desenvolveria ali. Localizada na foz de um rio de grande porte para os padrões europeus, em meio a um ambiente ainda bastante preservado e repleto de vida marinha, a ilha francesa está, além de tudo, bem na rota de migração de diversas aves, como andorinhas e pássaros limícolas (associados a áreas úmidas litorâneas).

Assim, era previsível que a ocupação não demoraria. Poucos meses depois de surgir, a ilha já havia sido colonizada por vegetação rasteira, insetos e gaivotas. “Até agora, registramos o aparecimento de 12 espécies diferentes de plantas e cerca de 30 invertebrados, dos quais cerca de um terço tem uma existência sustentável na ilha”, disse Jean-Marc Thirion, cientista ambiental que dirige o grupo local de conservação Obios.

Os invertebrados ali residentes se alimentam dos rejeitos de gaivotas marinhas e de minúsculas moscas que, por sua vez, encontram alimento em aglomerações de eruca-marinha (tipo de planta comum no litoral europeu). Além desses animais, Thirion já achou ali aranhas (segundo ele, levadas pelo vento) e formigas (provavelmente transportadas por destroços).

Em fevereiro deste ano, a região foi atingida por um ciclone ainda mais devastador que o Klaus, o Xynthia. Para surpresa geral – em especial dos céticos, para quem a ilha é apenas um banco de areia –, o novo pedaço de terra resistiu às gigantescas ondas, às marés excepcionalmente altas e aos ventos acima de 200 km/h. Depois que o tempo acalmou, descobriu-se que a ilha perdera parte de sua elevação, mas aumentara 50 metros na direção leste. A tendência para os próximos meses, aliás, é de consolidação do novo acidente geográfico. Analisando o vaivém das correntes marinhas e a erosão costeira, geólogos e naturalistas apostam que a ilha provavelmente vai crescer, em vez de desaparecer.

O repórter John Lichfield, do jornal inglês The Independent, visitou o novo pedaço de terra em agosto e considerou-o “mágico”. É, na descrição dele, “uma praia ainda intacta totalmente cercada pelo mar. Há um quase perfeito círculo de areia seca assentada, talvez a 500 metros ao redor, cheio de algas e pedaços de madeira. Braços de areia mais plana e úmida se estendem a distância, feito uma lagosta”.

De acordo com Bernard Giraud, assistente do prefeito de Royan e que também chefia o Departamento de Meio do município, existe na região uma antiga lenda sobre ilhas que flutuavam, apareciam e desapareciam. “É como se essa ilha houvesse tornado a lenda viva”, comentou. “Ninguém pode dizer quanto tempo ela irá durar, mas há toda a indicação de que ela está aqui para ficar.”

A ilha em foto aérea batida em junho de 2010. A vegetação, destruída em fevereiro pelo ciclone Xynthia, ainda não retornou ao local.

A natureza tem preservado a Ilha Misteriosa, mas ela ainda não está a salvo do maior exterminador do presente, o bicho-homem. Como ainda não é reconhecida oficialmente pelo governo francês, ela não figura nos mapas e não pode ser protegida das crescentes levas de turistas que chegam até lá em botes, num percurso de 20 minutos a partir de Royan. Em sua curta existência, a ilha já serviu de cenário para duas festas rave e de pista de pouso para um clube de paraquedismo.

Segundo Giraud, o clima ruim em junho deste ano impossibilitou os passeios à ilha, o que permitiu que as aves fizessem ninhos. Em julho, porém, o tempo melhorou, trazendo de volta os turistas de um dia – e, com isso, os ninhos foram abandonados. A vegetação, habitualmente pisoteada pelos visitantes, foi varrida pelo Xynthia e ainda não voltou. Thirion assinala que já houve ocasiões em que cerca de 200 pessoas ocupavam o novo pedaço de terra.

Giraud, assim como outros ambientalistas, sente-se incomodado com isso. Para ele, a ilha deveria servir, ao menos parcialmente, como um “laboratório da vida”, fornecendo subsídios para os cientistas estudarem como e com que velocidade os seres vivos colonizam uma nova terra.

A expectativa dos ambientalistas é de que, em 2011, o estuário do Gironde, um dos mais importantes e preservados da Europa, se torne parte de um parque marinho protegido pelo governo francês – e, por tabela, ajude a conservar a novidade. “Você não pode banir totalmente as pessoas da ilha”, avalia Giraud. “Isso não funcionaria, certamente não na França. Mas podemos, dentro do formato de um novo parque marinho, limitar o número e a natureza das visitas. Podemos educar as pessoas e fazê-las entender que lugar especial e frágil é esse.” Thirion faz coro: “Nossa única esperança agora é de que (a ilha) seja mapeada e reconhecida dentro da zona de proteção.”

Texto: eduardo@planetanaweb.com.br