No fiorde de Varangerbotn, Lars Peter recebe caranguejos gigantes das mãos do mergulhador russo Anton Kalinine, que os capturou a oito metros de profundidade.

Até a década de 60, a natureza manteve esses seres exóticos dentro de seu hábitat, as águas ao redor da Península de Kamchatka (extremo leste da Rússia), o Mar de Okhotsk e as ilhas Aleutas, no Pacífico. Foi quando cientistas russos iniciaram sua adaptação em pontos remotos do país, motivados pelo pragmatismo stalinista dos velhos tempos, que encarava esses animais como uma fonte estratégica de alimento para as comunidades isoladas no norte quase permanentemente gelado da União Soviética.

A experiência consistiu em soltar, em 1961, dois machos e nove fêmeas na costa de Murmansk, na fronteira da Noruega com a Rússia. Aquelas águas, pertencentes ao Mar de Barents, são o hábitat predileto do cobiçado bacalhau do Atlântico (Gadus morhua). Em outros pontos do litoral, as experiências variaram o número de indivíduos e a proporção entre machos e fêmeas. Foi uma oportunidade e tanto: os caranguejos gigantes do Pacífico, mais conhecidos por king crabs (caranguejos-reis), que em sua fase adulta podem ultrapassar 12 quilos, se viram livres de seus pouco conhecidos predadores naturais e desde então se disseminam livremente pelas águas geladas do norte do planeta. Em 1974, já haviam contornado o Mar de Barents e descido a costa da Noruega, sendo capturados no Mar do Norte.

Existem quatro famílias principais desses avantajados crustáceos, todas originárias da Ásia. A variedade mais ocorrente é o red king crab, ou caranguejo- rei-vermelho (Paralithodes camtschaticus), e uma das mais raras é o blue king crab, ou caranguejo-rei-azul (Paralithodes platypus). Ambos vivem no mesmo hábitat e possuem os mesmos hábitos; para cada caranguejo-azul, porém, há milhares de vermelhos. Eles habitam entre 10 e 500 metros de profundidade, são extremamente resistentes a doenças, não têm predadores naturais na fase adulta, podem viver mais de 25 anos e se reproduzem como gafanhotos.

Em sentido horário, a partir da esquerda, alto: recolhimento das armadilhas; Elsa Haldorsen, guardiã da memória da vila de Bugøynes, importante porto pesqueiro de king crabs, a cem quilômetros de Kirkenes; Anton Kalinine limpa os caranguejos antes do cozimento; Lars Peter mostra o caranguejo-reiazul, capturado durante um safári de inverno.

APÓS UM LONGO périplo pela Noruega, saltando de aviões pequenos para outros menores ainda, cheguei ao extremo norte do país, em Kirkenes, fronteira com o porto de Murmansk, na Rússia. Na reta final, no curto vôo entre Vardo e Kirkenes, as poucas pessoas no avião de 35 lugares me olhavam com indisfarçável curiosidade. Estabeleceu-se uma rápida brincadeira de tentar adivinhar de onde eu vinha e, claro, ninguém acertou. Quando souberam o objetivo de minha ida àquelas paragens – saber sobre o caranguejo gigante -, desandaram a relatar fatos e atribuir ao animal toda sorte de maldades. “Eles comem tudo, devastam o fundo do mar, fazem os peixes sumir e também destroem as redes de pesca”, lamentou a irmã de um pescador.

Kirkenes é uma bucólica cidade de 3.500 pessoas. Possui uma das maiores frotas pesqueiras de king crab, com barcos e tripulações predominantemente russos que formam um mosaico pitoresco de “banheiras” ancestrais enferrujadas, ancoradas de março a setembro. Nesse período, as tripulações reparam as velhas embarcações, preparando- as para a temporada que se inicia em outubro e vai até fevereiro, durante o inverno no Hemisfério Norte. Nesse período, é comum permanecerem semanas em alto-mar.

Na manhã seguinte, encontrei Lars Peter, simpático mergulhador norueguês e dono de uma pequena empresa que leva turistas para safáris de king crabs no fiorde de Varangerbotn. Como captura os caranguejos apenas para servi- los aos poucos turistas que se aventuram até aquelas paragens atrás de aventuras exóticas, o microempresário norueguês tem permissão para pescar o ano todo, dentro de uma cota preestabelecida. Após nos vestirmos adequadamente com roupas robustas, quentes e impermeáveis, seguimos num grande bote inflável com motores de popa por uns dez quilômetros, até um ponto onde ancoramos ao lado de uma parede rochosa.

Anton Kalinine, o mergulhador russo assistente de Lars, fez uma rápida descida com cilindro de oxigênio – apenas oito metros de profundidade. Cinco minutos depois, ele voltava com dois caranguejos em cada mão. “O fundo do fiorde está vermelho”, diz o norueguês. “Nessa região não é preciso procurá-los. Onde quer que você desça, verá o chão coberto de carapaças se locomovendo lentamente umas por cima das outras, formando um caos emaranhado.” Mais dois mergulhos e Anton trouxe uns 12 caranguejos, todos “pequenos”, segundo ele. De volta ao bote, rumamos para o abrigo de Lars. Nele, Anton se pôs a limpá-los. Enquanto os bichos eram cozidos, Lars nos deu uma aula sobre o crustáceo e sua pesca.

PARA CAPTURAR o king crab são usadas armadilhas de gaiola retangulares, em cuja lateral há uma abertura estreita e comprida, para onde o caranguejo é atraído por uma isca de peixe presa no interior da gaiola. Uma vez dentro, pequenas hastes plásticas entrelaçadas na borda da entrada embaraçam-lhe o caminho de volta. As armadilhas são lançadas aos milhares entre 80 e 500 metros de profundidade.

Seu parente sul-americano, a centolla (Genus glyptolithodes), encontrada na costa do Chile e do Peru, é um tipo de king crab avantajado, se comparado aos caranguejos brasileiros. Perto do caranguejo gigante do Pacífico, porém, a centolla parece um siri. A carne branca e tenra do king crab, delicada e sutilmente adocicada, é apreciadíssima nos países nórdicos e na Rússia, e também tem forte mercado na Ásia – para japoneses, coreanos e chineses, ela é iguaria fina.

Na Ásia, eles são capturados principalmente no mar de Kamchatka e ao redor da Ilha Sakalina. Em sua saga migratória, o king crab também alcançou o Alasca, onde sua pesca é regiamente remunerada. Ao mesmo tempo, essa atividade é considerada uma das profissões mais perigosas do mundo, pois se desenrola freqüentemente sob terríveis condições climáticas, durante o inverno e com mar revolto. O Canadá é um dos grandes compradores do king crab do Alasca. Na Noruega, seu preço ultrapassa US$ 25 o quilo.

Apesar da enorme importância econômica da pesca do caranguejo, o outro lado da moeda é mais sombrio. Sua expansão descontrolada representa muito mais do que o aumento de sua oferta no mercado e mais oportunidades de trabalho: por trás disso há um grave problema ambiental do qual ainda não se conhece a real extensão, e cuja solução ainda está longe de aparecer. Em sua marcha resoluta pelo fundo dos mares, o king crab devora tudo – moluscos, invertebrados, conchas, ouriços, algas e ovas de peixes -, oferecendo riscos para um leque ainda incerto de espécies, vítimas da combinação fatal de sua robustez, truculência e apetite insaciável.

No sentido horário, a partir da esquerda, alto: caranguejos na panela, antes de serem consumidos; gaiolas empilhadas no convés de um barco russo fundeado em Kirkenes; o repórter segura um caranguejo de pouco mais de seis quilos (alguns chegam a 14 kg); velhos navios pesqueiros russos ancorados em Kirkenes, à espera da temporada de pesca (entre outubro e fevereiro); vista da vila de Bugoynes.

UM CARANGUEJO ADULTO pode consumir cerca de 400 gramas de alimento diariamente. Ao ingerirem lascas de conchas, um de seus alimentos, eles absorvem o cálcio necessário a suas enormes e resistentes carapaças. Alguns peixes de fundo, como o bizarro wolf fish do Atlântico (Anarhichas lupus), se alimentam de king crabs jovens, assim como o bacalhau, outro assíduo predador de seus filhotes. Uma vez adultos, porém, os caranguejos gigantes não possuem mais inimigos naturais.

Para o caranguejo, a primavera traz a fertilidade. As fêmeas podem pôr entre 30 mil e 500 mil ovos, carregando-os embutidos debaixo de sua placa abdominal durante dez meses. Entre janeiro e maio, liberam na água as larvas, surgidas dos ovos nos últimos 15 dias de permanência junto à mãe. Durante as seis semanas seguintes, as larvas flutuarão desprotegidas na água, onde a maioria esmagadora será devorada por peixes e invertebrados marinhos. De 2% a 3% das larvas se tornarão caranguejos adultos, apenas. Mesmo com esse índice de sobrevivência aparentemente baixo, é espantoso o aumento das populações de caranguejos gigantes por onde passam.

A natureza é mesmo caprichosa: apesar de o bacalhau, predador voraz, se alimentar do king crab jovem, esse crustáceo se revela uma dupla ameaça ao bacalhau – ao se alimentar das ovas do capelin (Mallotus villosus), uma das espécies mais importantes para a manutenção dos cardumes de bacalhau do Mar de Barents, ele reduz a população desse peixe, diminuindo, conseqüentemente, o alimento disponível para o bacalhau. Como o capelin também é explorado comercialmente, a Noruega estuda reduzir os limites de sua pesca, para que esse pequeno peixe, pouco maior que uma sardinha, não falte a seu destino mais nobre – servir de alimento ao bacalhau do Atlântico.

Além dessa ameaça, os caranguejos transmitem vírus que infestam o bacalhau, ocasionando mortes nos cardumes e acentuada diminuição de fertilidade. Cada vez mais os cientistas se debruçam sobre a questão da ameaça que os caranguejos representam para o mais caro estoque pesqueiro do mundo. O problema não se restringe apenas ao Mar de Barents: já foram capturados alguns indivíduos muito mais ao sul, ao redor das Ilhas Lofoten, um dos maiores destinos migratórios do bacalhau de Barents.

EMBORA ESTUDIOSOS discordem em vários aspectos no que tange à intensidade dos danos e à ameaça que esse avanço representa ao ambiente marinho, em um aspecto são unânimes: é difícil topar com uma espécie animal tão adaptável como o caranguejo gigante de Kamchatka. Alguns cientistas dizem que ele permanecerá no norte porque gosta das baixas temperaturas, enquanto outros, mais fatalistas, acreditam que é apenas uma questão de tempo para que comecem a ser capturados nas imediações de Gibraltar, na entrada do Mediterrâneo.

A intervenção humana por meio do manejo dessa espécie resultou numa irônica situação: no hábitat natural do caranguejo gigante, a exploração comercial excessiva e a poluição vinda do Mar do Japão vêm dizimando a espécie; nas áreas onde foi artificialmente introduzido, o animal tem se tornado um problema ambiental cuja solução ainda está por surgir.

Durante alguns anos o governo norueguês não adotou medidas diante desse avanço subaquático, sem saber se tratava os caranguejos como um recurso ou uma peste. “Estamos entre duas apostas”, diz Bjordal Aasmund, pesquisador- chefe do Departamento de Recursos Marinhos de Bergen. “Uma é livrarse dos caranguejos. Outra é administrálos como um recurso pesqueiro”, diz ele.

As intervenções humanas no curso natural das coisas comumente são desastrosas. Desta vez, o protagonista do avanço assume ares de besta-fera libertada pelo homem. Indiferente à escuridão, à temperatura congelante da água e à pressão de centenas de metros, os caranguejos avançam inexoravelmente pelo fundo dos mares gelados do norte do planeta. Até onde eles irão é um grande mistério.

SERVIÇO Innovation Norway – Tudo sobre turismo na Noruega – www.visitnorway.com. Como chegar – A SAS (Scandinavian Air) voa a partir de várias capitais européias para Oslo e Bergen, de onde partem vôos com destino a Kirkenes. Onde ficar – Rica Hotel – www.ricahotels. com/ index.cfm?oa=hotel.display&con=670 Safári do caranguejo gigante – Nos arredores de Kirkenes, a Arctic Dive de Lars Peter leva turistas para um inusitado safári no fiorde de Varangerbotn, cujo encerramento é uma celebração gastronômica onde se enche a barriga com essa deliciosa iguaria, acompanhada de um bom vinho branco – www.arctic-dive.no.