Três minutos após deixar o avião, já estamos a bordo de um moderno trem que encurta caminho e tempo até a esteira das bagagens. Então ouço o som de sinos mesclado ao mugido de vacas. Surpresa, penso que meus ouvidos zumbem após 11 horas de voo de São Paulo a Zurique. Mas aqueles sons persistem, tão alto, que me imagino junto a um pasto. Os outros passageiros sorriem, e logo descobrimos que essa é a forma de desejar “boas-vindas”, bem ao jeito do humor suíço. Mais tarde, depois de conhecer o país, conseguimos compreender que tal gesto configura uma espécie de “orgulho” – de reverência e respeito pela natureza e pelas tradições – que esse povo mantém a todo custo.

Impossível não querer saber o porquê de tudo nesse país parecer ser tão perfeito. Localizada entre França, Alemanha, Itália e Áustria, a Suíça tem condições geológicas únicas – altas montanhas que abrigam vales onde as chuvas garantem o verde vistoso dos campos e florestas. Mas essas condições vêm aliadas aos cuidados dos produtores e habitantes que procuram conservar o equilíbrio e, assim, o ambiente saudável. Outra explicação pode estar no capricho: literalmente, todos se esmeram em seu próprio espaço. Dá até para traçar o perfil do morador pelas flores nas janelas. É com satisfação que os suíços contabilizam um alto índice de reciclagem e afirmam que em todas as cidades, desde as metrópoles às aldeias isoladas, a água é potável e se pode nadar nos lagos.

Em alguns vagões de primeira classe, não se pode falar, usar laptops nem iPods, e é preciso ter cuidado ao folhear jornais

Repleta de construções medievais, Chur é a mais antiga cidade da Suíça. Seu nome significa “coração” em romanche, o quarto idioma do país.

Para se ter uma visão panorâmica de toda essa cultura, escolhemos três roteiros. O primeiro parte da cidade de Interlaken, do latim Inter Lacus, localizada entre os lagos Thun e Brienz, e vai até Jungfraujoch, a estação de trem mais alta da Europa, a 3.454 metros. Antes, porém, no percurso de Zurique a Interlaken, fizemos uma prazerosa viagem de duas horas em um moderno trem. Uma taça de vinho acompanhada de queijos, pães artesanais e defumados suíços fez a viagem ainda mais encantadora. A sequência não mudaria tal clima.

Da pequena estação de Interlaken, embarcamos no trem que garante aos passageiros “ver e andar sobre a neve em qualquer mês do ano”, como afirma seu slogan. Esse percurso, às vezes lento pela dificuldade da subida íngreme, exige o uso de cremalheira na ferrovia, para ganhar tração, e promove o prazer de observar vales e quedas d’água, trilhas percorridas a pé ou de bicicleta por pessoas de todas as idades. É quando se dá o insight: ao abrir a janela, o real som de grandes sinos mesclado ao mugido de vacas invade o trem.

Scuol, no Vale Engadine, é uma das estações do trem Expresso Glacial. As casas desse encantador vilarejo suíço possuem janelas com delicados afrescos, refletindo o capricho de seus moradores.

Graças ao projeto audacioso de escavar a ferrovia na rocha, idealizado em 1894 por Adolf Guyer-Zeller – Trilhos para o Céu, como ele dizia –, os visitantes podem apreciar o esplendor de montanhas em cujo vale a geleira Aletsch lembra um rio de gelo que se estende por longos 22 quilômetros. Em 2007 foi também inaugurado ali o Eispalast, ou Palácio de Cristal, túnel escavado dentro do glacial, com esculturas em gelo cintilante. No topo da montanha Jungfrau, e 100 metros acima da Jungfraujoch, fica a estação meteorológica Sphinx, uma das mais modernas da Europa. A região de Jungfrau, com a geleira Aletsch, foi elevada a Patrimônio da Humanidade pela Unesco, em 2001.

Avisos para “Não fumar” são coisa do passado. Em alguns vagões de primeira classe, não se pode falar, usar laptops nem iPods, e é preciso ter cuidado ao folhear jornais ou revistas. Surpresos depois da ‘reprimenda’ porque conversávamos entusiasmados, e ainda que o trajeto de Interlaken a Chur fosse curto (cerca de uma hora e meia), preferimos mudar de vagão. Uma beleza súbita, uma alegria surgida, merece o que dizer, compartilhar, rir. Impossível compreender tamanha intransigência.

Da medieval cidade de Chur (pronuncia-se Rhúr), embarca-se na ferrovia Albula-Bernina, declarada em julho de 2008 Patrimônio Cultural da Humanidade. Mas, como uma viagem não é apenas ponto de partida e de chegada, fizemos um intervalo para conhecer essa que é a mais antiga cidade da Suíça. Seu nome significa “coração” em romanche, o quarto idioma do país. Coração porque, localizada no vale e cortada pelo rio Prazer, nela se cruzavam os caminhos dos romanos, dos celtas e de povos do norte.

A integração da ferrovia com a paisagem algumas vezes chega a ser lúdica, como no trecho nos arredores de Brusio.

Prosseguimos viagem na ferrovia de montanha, a Albula-Bernina, com 385 quilômetros, cuja construção tem 100 anos. O espírito pioneiro, a audácia dos empreendedores, as conquistas da engenharia e a harmoniosa integração da ferrovia com a paisagem justificam a denominação de Patrimônio. Atravessa a região de Engadine, passando sobre centenas de pontes, cruzando gigantescos desfiladeiros e percorrendo longos túneis. O destaque vai para dois viadutos: o primeiro, helicoidal, em Brusio, e o Landwasser. Este é todo em curva, seus pilares, distantes 20 metros uns dos outros, têm 65 metros de altura. O túnel de 950 metros que dá acesso a Landwasser foi escavado no granito e demorou quatro anos para ser concluído. Hoje o trem o percorre em apenas quatro minutos.

Mais que um fio condutor, a ferrovia possibilitou a união de diferentes áreas linguísticas: ali se fala walser, dialeto arcaico alemão, o italiano, o português e o romanche, que deriva do latim. Não estranhe se ouvir palavras semelhantes às nossas como estábulo, bun dí (bom-dia), allegra (olá), che bel che tu est (como você é bela).

O museu dedicado ao pintor italiano Giovanni Segantini

Em Engadine a 1.800 metros de altitude, o encantamento fica por conta do desenho de requintadas mandalas que emolduram as janelas. Ao entardecer, quando deixamos o trem na plataforma da estação de St. Moritz, antigo vilarejo de camponeses e hoje destino de alto nível, levamos a impressão de que a ferrovia foi construída para apresentar aos viajantes paisagens de sonho.

As vacas podem ser vistas em quase todo o interior da Suíça

Em St. Moritz fizemos uma breve parada para conhecer o Museu Segantini: a grandiosidade da paisagem alpina nesse cantão dos Grisões, os pastores com seus rebanhos de ovelhas, as colheitas e a beleza das camponesas foram temas celebrados pelo pintor Giovanni Segantini. Nascido em 1858 na região de Trento, Itália, teve uma infância de miséria.

Descobriu sua vocação ainda jovem, ganhou reconhecimento internacional e, sempre à procura de uma luz mais pura, buscou os arredores de St. Moritz, onde passou a viver. Amado por seus habitantes que lhe atribuem ter revelado a síntese de sua bela paisagem, assim como propiciado sua divulgação, atraindo turistas, foi presenteado com um museu no alto de uma colina.

Uma camponesa

Às nove horas embarcamos para uma viagem de sete horas nos reluzentes vagões vermelhos do Glacier Express. Desde 1928, eles percorrem três cantões suíços – Grisões, Uri e Valais –, nos Alpes, cruzando a cadeia de Bernina até o Matterhorn, a mais alta montanha do país, com 4.478 metros de altitude.

Foram horas de devaneio observando a natureza bem cuidada, repousante para os olhos e para o espírito. Tudo favorece: as amplas e confortáveis poltronas, quase sofás, mesinhas de apoio à frente e janelas cênicas para “voar” na paisagem. Não fosse o Express vagaroso, contrariando o próprio nome, imaginaríamos estar em uma montanha-russa, quer pela alegria que a paisagem suscita, quer pela sucessão de loops de um sobe-e-desce, e pela visão de desfiladeiros, viadutos, pontes de tirar o fôlego, longos e escuros túneis.

Pontilhando o vale de um verde inusitado, surgem as casas dos pastores com sua estética bucólica, própria para as baixas temperaturas: paredes com tábuas de madeira, telhado de águas acentuadas, cobertura em placas de pedra e estábulo no corpo da casa. Ao longe, aldeias seculares erguidas ao redor da igreja medieval, de torre pontiaguda. Algumas vezes passamos tão próximos das camponesas imersas em seus afazeres que podemos notar as faces rosadas e o tom ouro das tranças. Parece que o tempo estancou e que ali se movimentam as imagens pastoris de Segantini.

Entre os passageiros, um deles integra uma sociedade de música popular suíça empenhada em manter vivas tais tradições. Ele nos conta sobre a arte da trompa alpina, do Jodel, e do canto dos pastores, artes arcaicas transmitidas de geração em geração nos Alpes. Instrumento dos pastores antes do século 16, a trompa mudou pouco desde aquela época. Compositores eruditos como Johannes Brahms lhe dedicaram peças musicais, o que fez renascer o interesse pelo instrumento. De origem incerta e remota é o jodel, que pode significar brado de alegria ou pio de ave. Há controvérsias sobre sua origem: talvez seja a busca dos efeitos do eco, uma forma de manifestar sem palavras as emoções, ou o reflexo da paisagem onde vivem aqueles que o praticam.

Ali, a relação entre homens e animais é forte e afetiva, expressando-se em cantos e “chamados” para governar ou reunir o rebanho disperso no pasto. Para os suíços, tais sons trazem a lembrança de uma época feliz no coração dos Alpes. Ouvi-los evoca a imagem poética de uma natureza onde se vivia livre. Após o último túnel, surge o Matterhorn: imponente e mítico, é nosso ponto extremo de chegada e um dos maiores desafios para os alpinistas do mundo inteiro.

Após o último túnel, surge o Matterhorn: imponente e mítico, é nosso ponto extremo de chegada e um dos maiores desafios para os alpinistas do mundo inteiro

A montanha Matterhorn