A mão erguida se fecha, o dedo indicador oscila de um lado para outro e o torso se projeta para a frente e para trás. Como magia, a música que emana dos instrumentistas vai sendo esculpida no ar pelo regente. O encantamento aumenta quando se percebe que a orquestra é composta exclusivamente por jovens, a maioria na faixa dos 16 aos 20 anos. Eles integram o grupo de 514 alunos, vindos de 28 países da América Latina, Estados Unidos e Turquia, que se juntaram a 74 professores de música das Américas e Europa para participar de um evento memorável, em fevereiro passado.

O objetivo fundamental do Festival de Música de Santa Catarina, que se realiza todo ano em Jaraguá do Sul, “não é descobrir gênios, e sim disseminar o interesse pela música clássica”, afirma o gaúcho Alex Klein, maestro-oboísta, idealizador do Femusc. Já para o compositor, pianista e regente pernambucano Marlos Nobre, um dos mais renomados compositores brasileiros, o Femusc cria um importante “microcosmo social”. Nobre, que também é um dos professores do evento, acrescenta: “No curto espaço de duas semanas, não posso ensinar tudo a um aluno, mas devo despertá-lo naquilo que ele não sabe. Posso estabelecer coisas fundamentais, e isso só se consegue com ternura”.

As palavras traduzem a convivência feliz entre professores e alunos durante o festival, uma das razões que fazem desse evento um modelo aplaudido em todo o mundo. “Se posso definir a metodologia do ensino musical aqui, diria que aplicamos o conceito da informalidade séria”, reforça Klein. Enquanto fala, percorre com o olhar alunos e professores de sete, dez ou mais nacionalidades que se encontram no refeitório para compartilhar um substancioso bandejão.

O maestro relembra com carinho, no festival anterior, quando um jovem armênio convidou turcos e americanos para tamborilar seu darbuka, ou derbake, instrumento de percussão. “De repente o milagre aconteceu: armênios e turcos estavam cantando e tocando juntos.”

Nessa interação são bem-vindos apenas os professores capazes de ver além da nacionalidade das pessoas. Klein não simpatiza com maestros autoritários e imperialistas. No Femusc existem diferenças de cultura, tradições e políticas entre os países participantes, mas em um assunto não há divergências: a música, língua que todos falam.

Além disso, exercita-se a democracia e o respeito à vida no seu sentido mais profundo. Por exemplo, em 2012, a música Toward the Sea, popularizada pela campanha do Greenpeace de proteção às baleias, constou do repertório do festival e foi significativamente escolhida pelo compositor japonês Yoru Takemitsu, cujo país natal figura entre os mais implacáveis matadores de baleias.

Diferencial raro

A rotina de um estudante nas duas semanas do festival inclui quase 12 horas de aulas diárias, entre máster classes, seminários e ensaios. Sem contar as mais de 200 apresentações em ruas, bares, praças e shoppings de Jaraguá do Sul, bem como nas cidades vizinhas de Timbó, Joinville, Blumenau, Brusque, São Bento do Sul, Pomerode e São Francisco do Sul, todas no nordeste catarinense. Essa intensa agenda vale também para os professores que dão aulas pela manhã, ensaiam à tarde, regem ou participam de apresentação orquestral à noite. No 8º Festival apresentam-se grandes nomes da música clássica internacional, como Mario Ulloa, Daniel Guedes, João Carlos Martins, Ademir Rocha, Andrés Cárdenes, Alexandre Dossin, Marlos Nobre, Leon Spierer, Catherine Larsen-Maguire e Charles Stegeman, para citar apenas alguns.

Como todo evento musical, o Femusc oferece vagas, mas seu diferencial é o fato de o próprio aluno garantir sua vaga, não importando a qualidade da gravação enviada, e muito menos as cartas de recomendação. O que vale é a ordem de chegada e, depois, talento ao vivo. Após a seleção, os alunos inscritos discutem o repertório nas redes sociais, escolhem as músicas que gostariam de apresentar e enviam as sugestões para Klein.

“A música é indispensável. Nossos músicos não podem seguir a vida pensando que sua arte é menos importante. Os europeus e os americanos têm experiência e conhecimento, os chineses possuem técnica e disciplina, mas os brasileiros têm paixão pelo instrumento. É preciso elevar a autoestima de nossos jovens. Não quero mais ouvir que está chegando um solista da ITÁLIA. Parece que falam assim mesmo, em caixa alta. Quero que esses jovens tenham uma vida ma-ra-vi-lho-sa”, auspicia, enfatizando cada sílaba. Klein é também diretor-artístico do festival.

Cidade musical

Motivos não faltam para a charmosa Jaraguá do Sul comemorar o seu banquete musical, meca de famosos instrumentistas, de professores pinçados entre os melhores do planeta em suas especialidades e de alunos de diversos países.

Mas por que um festival de tal importância acontece no município e não em um consagrado polo cultural? Quarta economia de Santa Catarina, a cidade é abraçada por colinas de relevo suave, recobertas de Mata Atlântica, e cortada por rios e riachos de água límpida. Jaraguá do Sul possui muitas indústrias têxteis, de motores e de componentes eletrônicos. Algumas começaram modestamente e, graças aos esforços dos pioneiros imigrantes alemães e italianos, tornaram-se multinacionais, entre elas a Weg e a Malwee.

A Malwee, por exemplo, ergue-se em um parque com 2,5 milhões de metros quadrados de vegetação nativa. Seu proprietário, um entusiasta do Femusc, é patrocinador do Conjunto Femusckinho, para que as crianças menos favorecidas da região possam estudar música. Doou 17  harpas para Jaraguá do Sul, o que fez da cidade o mais importante centro de harpas da América Latina.

“Somos descendentes de húngaros, alemães e italianos. Em cada família havia uma bandinha, um coral ou conjunto. Tocávamos piano, violino, flauta, clarinete, e nem mesmo os guris escapavam dessa sanha musical. No mínimo, eram atentos ouvintes ou tocavam triângulo”, relembra a sra. Yara Springmann, filha dos primeiros imigrantes alemães. Ela complementa: “Os moradores se reuniam na sala da casa de meus pais, que com o tempo foi ficando pequena para tantos ‘talentosos’ vizinhos. O jeito era ensaiar dividindo em grupos, na Escola Alemã ou no Salão Paroquial”.

Foi então que os moradores fundaram em 1956 a Sociedade de Cultura Artística de Jaraguá (Scar), para terem um lugar onde todos pudessem curtir música juntos, e começaram a poupar e pedir apoio aos empresários da região para a construção da sede. No início da década de 1970, já tinham uma promissora orquestra de câmara, mas precisavam de um maestro, e o dono da malharia Marisol disse que bancava. Foi contratado, então, o jovem maestro Daniel Bortholossi, hoje diretor-artístico da Sinfônica de Curitiba. Daniel e o maestro Alex Klein foram os idealizadores do primeiro Femusc.

A magnitude da música é o principal motivo do evento. Sob a ótica do maestro argentino Norberto Garcia, porém, o Femusc produz energia vital, expressa em música. É algo mais forte que a palavra. “É a alma feita em som”, define.