Em 1925, o poeta Fernando Pessoa escreveu um roteiro turístico por Lisboa, um passeio imaginário pelos principais museus, monumentos e ruas da capital portuguesa. Em Lisboa: O Que o Turista Deve Ver, ele dá detalhes, dicas e conta parte da história de sua cidade natal. Mais de oito décadas depois, o texto do escritor português continua atual e serve de guia a quem quer conhecer essa cidade cheia de poesia

 

 

Na página ao lado, a estátua de Fernando Pessoa defronte do café A Brasileira (no detalhe, abaixo). À esquerda, o café Martinha da Arcada, também muito frequentado pelo poeta.

 

 

 

 

Imagine viajar por Lisboa acompanhado de uma pessoa que a conheça bem. Agora imagine conhecer Lisboa tendo como guia o poeta Fernando Pessoa. Impossível? Nem tanto, pois, apesar de ser reconhecido por sua poesia, em 1925, ele escreveu um roteiro turístico de sua cidade natal, com a intenção de divulgar ao mundo o que a capital portuguesa tinha (e tem) de mais interessante. Aliás, fez questão de escrevê-lo em inglês, com o título Lisbon: What the Tourist Should See, ou, em português, Lisboa: O Que o Turista Deve Ver.

No entanto, há uma grande ironia no fato de Fernando Pessoa ter escrito um roteiro de viagem. O poeta não gostava de viajar. Viajou muito pouco, salvo algumas idas e vindas a cidades vizinhas e em situações em que foi obrigado, como no período em que viveu com a família em Durban, na África do Sul. Por outro lado, o fato de não viajar fez o escritor português manter uma relação muito íntima com sua própria cidade, que foi descrita por ele de forma bastante poética em obras como O Livro do Desassossego, um de seus textos mais lidos em todo o mundo.

Parte dessa identidade com Lisboa se deu nos longos passeios a pé que faziam parte de sua rotina. Pessoa era um profissional autônomo, que trabalhava como correspondente comercial e tradutor para várias empresas da região da capital conhecida como Baixa Pombalina. Da mesma forma, sua vida pessoal estava ligada a essas andanças, pois viveu em várias casas e apartamentos do centro e costumava se reunir com os amigos em saraus e em longas conversas em bares e restaurantes da Baixa. No entanto, para ressaltar a modernidade de Lisboa, Pessoa vai de um lugar a outro de automóvel e o leitor de seu guia é levado rapidamente aos pontos mais interessantes da cidade, como o Castelo de São Jorge, o Mosteiro dos Jerônimos e a Torre de Belém, ambos locais que ainda atraem milhares de turistas todos os anos.

 

Acima, Rua Augusta, uma das artérias do centro histórico de Lisboa, com o arco triunfal da Praça do Comércio ao fundo. Abaixo, o Rio Tejo e a Câmara Municipal, considerada pelo escritor como um dos edifícios mais belos da cidade.

Acima, o Castelo de São Jorge, herança dos primórdios da formação de Lisboa e uma das grandes atrações turísticas da capital portuguesa.

 

Fernando Pessoa (1888-1935)

Na rota

A viagem de Pessoa começa no mar. Descreve a cidade a partir de uma embarcação que vem pela foz do Rio Tejo e desembarca no Cais da Rocha, que ainda é um importante ponto de chegada de cruzeiros marítimos, embora atualmente a maioria dos turistas chegue de avião. “Para o viajante que chega por mar, Lisboa, vista assim de longe, ergue-se como uma bela visão de sonho, sobressaindo contra o azul vivo do céu, que o sol anima. E as cúpulas, os monumentos, o velho castelo elevam-se acima das casas, como arautos distantes deste delicioso lugar, desta abençoada região”, diz logo nos primeiros parágrafos.

Em terra firme, segue para a região central, passando pela Câmara Municipal, “notável não só pelo seu exterior como também por seu interior”, dirige-se ao Terreiro do Paço e prossegue pelas ruas principais da Baixa. No Paço, também conhecido como Praça do Comércio, dá detalhes de seus grandes arcos e da estátua equestre do rei Dom José 1º, “fundida em Portugal, em uma só peça, em 1774”, e que ainda hoje se impõe no cenário de um dos locais mais representativos da história da cidade.

É também onde fica o Café Martinho da Arcada, muito frequentado por Pessoa e que ainda guarda uma mesa com seus objetos pessoais, convertendo-se em um ponto de peregrinação de apaixonados pela vida e obra do poeta. Mais à frente, outras duas praças, a do Rossio e a da Figueira, também são muito reverenciadas por Pessoa. A primeira foi chamada por ele de “o coração de Lisboa”, e ambas faziam parte do caminho que realizava todos os dias para visitar seus clientes e amigos.

A viagem segue pela Praça dos Restauradores, pela Avenida Liberdade e chega à Praça Marquês de Pombal, também conhecida pelos lisboetas como Rotunda. “Foi este o local escolhido para erigir o monumento ao grande estadista português”, diz Pessoa, deixando claro que o momento ainda não estava pronto quando escrevia seu roteiro. Foi inaugurada em 1934, um ano antes da morte do poeta. Hoje, quem passa por lá vê a figura do marquês, com um leão aos pés, símbolo de poder, numa praça movimentada e que dá acesso a vários bairros da capital.

Pessoa escolhe seguir pela Avenida da República e vai à Praça de Touros do Campo Pequeno, “que data de 1892 e foi construída em tijolo no estilo árabe”, usando as palavras do próprio escritor. Hoje, mais modernizada interiormente, recebe espetáculos internacionais de música, além – é claro – de touradas (sim, os portugueses também têm tradição de touradas).

Acima, à esquerda, fachada da Livraria Bertrand, a mais antiga de Lisboa, fundada em 1732. À direita, uma das muitas carruagens do Museu Nacional dos Coches. Abaixo, a estátua de Eça de Queiroz, com a Verdade a seus pés. No destaque, placa de rua que homenageia o poeta português Almeida Garrett.

Bairro literário

Com seu carro veloz, o poeta passeia pelo parque do Campo Grande e retorna ao centro da cidade, dessa vez adentrando-o pelo bairro da Mouraria e de Alfama, os mais antigos de Lisboa. É ali que se encontra, por exemplo, o Castelo de São Jorge, que remonta ao próprio nascimento da cidade. Guarda vestígios dos romanos, que dominaram a região por volta do século 2 a.C., e dos árabes, que invadiram a região no século 8 e só saíram no século 12, período presente em suas torres e colunas de pedra, que se impõem entre as colinas lisboetas. “Assaz notável”, sintetizou Pessoa.

O curioso é que, na época que escreveu seu guia, o castelo era ocupado por militares e não gozava de tanto prestígio como atrativo turístico. “Pode-se visitar pedindo autorização ao oficial de dia dos quartéis”, informa o poeta. Hoje, é um dos locais mais visitados da capital portuguesa.

De Alfama, dirige-se a outra região representativa em sua vida, o Chiado. É considerado por muitos como o bairro mais literário de Lisboa, pois nele ficam a Livraria Bertrand, fundada em 1732; a Rua Almeida Garrett, homenagem ao poeta; a Praça Luís de Camões e a estátua de Eça de Queiroz. É também onde está localizado o Café A Brasileira, que tinha Pessoa como frequentador assíduo. Em homenagem ao poeta, há uma estátua na calçada, local sempre cheio de turistas que fazem fotos ao lado do ilustre escritor em bronze.

Mais adiante, Pessoa destaca também o Teatro Nacional São Carlos, inaugurado em 1793, o Largo do Carmo e o Miradouro de Alcântara, onde se tem uma das mais belas vistas de Lisboa. Embora ele não mencione, é bom lembrar que ali no Chiado fica a casa onde nasceu, em 13 de junho de 1888, bem no largo do Teatro São Carlos, número 4.

No alto da página, o Mosteiro dos Jerônimos, um dos edifícios mais imponentes e importantes de Lisboa. Acima, o túmulo do poeta Luís de Camões, uma das atrações do Mosteiro dos Jerônimos.

Lisboa dos navegantes

Depois de passar pelo Chiado, segue rumo ao Aqueduto de Águas Livres, uma das mais impressionantes construções da engenharia lusitana. Começou a ser erguido em 1732 com o intuito de abastecer Lisboa – apesar de ter o Rio Tejo à sua frente, a cidade tinha sérios problemas de abastecimento de água, pois, pela forte influência do mar, ela se tornava imprópria para o consumo.

Outra curiosidade apontada pelo poeta e que dificilmente estaria num guia de turismo é o fato de o aqueduto ter permanecido fechado temporariamente por nele ter ocorrido um alto índice de suicídios e de assaltos. Não dá para entender se com essa informação ele pretendia atrair mais turistas para o local.

Do aqueduto, ele segue para a região de Belém, onde estão os mais importantes monumentos referentes à Era das Navegações. Claro, não se pode deixar de lado o Museu dos Coches e o Palácio Nacional da Ajuda, que estão próximos e valem a visita. Ele também não poupa elogios à Torre de Belém, uma fortificação erguida em 1521 e que se tornou símbolo da expansão marítima de Portugal, tanto por sua história ligada às navegações, quanto por seu primor arquitetônico. Vale lembrar que foi dali que partiram as naus que desembarcaram aqui para nos “descobrir”.

Pessoa destaca ainda o Mosteiro dos Jerônimos, também construído no século 16 e uma das obras mais importantes de Lisboa. “Uma visita aos Jerônimos tem, necessariamente, de ser demorada para ser uma verdadeira visita”, ressalta.

Outro destaque do mosteiro é o fato de ali estarem enterrados Luís de Camões e o navegador Vasco da Gama. Os restos mortais do próprio Pessoa também foram depositados ali depois de ele falecer, em 1935, dez anos depois de escrever seu roteiro.

Da região de Belém, retorna de carro para a Baixa, onde seu turista imaginário descansa para curtir a noite na cidade. Em seu guia, Pessoa ainda menciona alguns locais que merecem a visita no outro dia, como o zoológico e o Palácio da Fronteira. Ao final, descreve todo o trajeto para se chegar à cidade vizinha de Sintra, hoje Patrimônio da Humanidade. No entanto, não fala uma palavra sobre a cidade, na qual, provavelmente, nunca esteve. Afinal, o poeta não gostava de viajar. Imagine se gostasse.