Na noite de 22 de fevereiro de 1942, Stefan Zweig escreveu uma pequena carta, na qual elogiava o Brasil e lamentava o cenário de destruição vivido pela Europa – “que se auto-aniquila”, em suas palavras –, em plena Segunda Guerra Mundial. Também redigiu outras 22 cartas, que deveriam ser remetidas a parentes e amigos próximos.

Então, junto com a esposa, Lotte, tomou uma overdose de barbitúricos. No dia seguinte, ambos foram encontrados mortos em sua casa em Petrópolis. O escritor austríaco de origem judaica tinha 60 anos e era uma celebridade internacional: um dos maiores best-sellers do período entre-guerras.

Seis meses antes do suicídio, Zweig havia lançado o livro Brasil, país do futuro, obra controversa em que afirma seu amor pela terra que o acolheu – e acabaria rendendo um verdadeiro epíteto para a própria nação.

Especialistas em sua vida e obra ouvidos pela DW Brasil contextualizam a ligação de Zweig com o Brasil, antes mesmo da mudança para o país – e essa admiração pelo país explica por que ele escolheu Petrópolis para seu autoexílio, além de ter motivado o tema daquele livro que é considerado sua obra máxima.

Diretora da Casa Stefan Zweig (CSZ), instituição cultural e memorialística que funciona na mesma casa onde Zweig morou com a mulher, em Petrópolis, a jornalista e tradutora Kristina Michahelles ressalta que o encantamento do escritor pelo país nasceu em sua primeira passagem pelo Brasil, em agosto de 1936: “Zweig se encantou com o país no qual projetou sua utopia de uma sociedade que poderia viver em paz e harmonia, em contraposição ao que ocorria em sua Europa amada.”

Bagagem internacional de um cosmopolita

Inveterado viajante, o escritor já havia rodado o mundo. Conhecia locais tão distantes de sua Viena natal como a Índia, Cuba e os Estados Unidos. Com o avanço do nazismo em sua terra natal, acabou se vendo forçado a um exílio.

Buscou primeiro a Inglaterra. Depois, temendo uma aproximação das tropas hitleristas, mudou-se para os Estados Unidos. Foi quando decidiu visitar novamente o Brasil. “Passou cinco meses viajando [pelo país] para recolher material sobre o que chamou de o seu ‘livro brasileiro'”, conta Michahelles.

Em 1941, mudou-se para Petrópolis com a esposa, que antes havia sido sua secretária, Charlotte Altmann, conhecida como Lotte. “Há algumas suposições por que Zweig resolveu residir no Brasil, em vez de permanecer nos Estados Unidos, o país sonhado pela grande maioria dos intelectuais refugiados [na época]”, comenta a especialista.

“Em primeiro lugar, ele adorara o Brasil e sempre desprezara o american way of life e aquilo que chamou de a “prosperity” americana. Depois […], nos Estados Unidos já reinavam Thomas Mann e outros grandes expoentes da literatura alemã. E a primeira mulher de Zweig, Friderike, estava exilada lá. É de se supor que Lotte não gostaria de ficar à sombra da rival”, enumera Michahelles.

Autor de Morte no paraíso, a tragédia de Stefan Zweig e Stefan Zweig: No país do futuro, o jornalista Alberto Dines (1932-2018) dizia que o austríaco havia se encantado com o Brasil por várias razões, principalmente pela convivência harmoniosa entre pessoas de diferentes origens e etnias. “Também teria influenciado na escolha do escritor o fato de o Brasil estar muito longe da Europa, do nazismo e do grande conflito mundial”, completa o historiador Fábio Koifman, professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ).

A primeira visita: semente do pacifismo

Mas o pontapé inicial dessa relação apaixonada do escritor com o Brasil teria sido sua primeira vinda ao país, em 1936. Deveria ser uma viagem à Argentina, mas ele acabou aceitando um convite para participar de um congresso em terras brasileiras. A recepção não poderia ter sido mais calorosa.

“Seus livros eram muito conhecidos aqui e foram organizadas inúmeras homenagens. Tal recepção o deixou muito impressionado”, diz a historiadora Carol Colffield, pesquisadora na Universidade de São Paulo (USP).

O então ministro das Relações Exteriores, José Carlos de Macedo Soares, ofereceu-lhe um banquete. O próprio presidente Getúlio Vargas o recebeu para uma audiência privada. E a entrevista coletiva dada por ele reuniu tantos jornalistas que foi preciso reacomodá-los de última hora. “Ele chegou a fazer uma transmissão para [o programa radiofônico oficial] A Voz do Brasil”, acrescenta a historiadora. “Foi dessa viagem que saiu o projeto de fazer um livro sobre o Brasil.”

Professor na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o historiador Vinícius Liebel salienta que a relação entre o escritor e país vai se desenvolvendo de tal forma que, mesmo que Zweig nunca deixe “sua vida de peregrino”, “vivendo períodos em hotéis, visitando cidades para divulgar sua obra e ideias”, tudo caminha para que seu refúgio final fosse em terras brasileiras – no caso, Petrópolis.

Nas palavras do historiador, é como se a cidade da região serrana do Rio se tornasse o paraíso “que se projetava rumo a um tempo que ainda não existia, mas que se contrapunha a seu próprio tempo”. “Um retiro perfeito para um esgotado cidadão do mundo de ontem”, conta Liebel.

Tudo a ver com o escritor que, em sua obra, pintou entusiasmadamente o Brasil como “o país do futuro”: que fosse nessas terras o seu último futuro enquanto ser humano.

Decepção com a humanidade

O Brasil foi uma escolha consciente de Zweig, alguém que tinha trânsito fácil entre intelectuais de todo o mundo.

“Ele era um homem extremamente bem conectado, parecia conhecer todo mundo”, salienta Colffield. “Foi amigo de Pirandello [dramaturgo italiano], Rodin [escultor francês], Einstein [cientista alemão], de Freud [neurologista austríaco, o criador da psicanálise]…”

Especialistas acreditam que ele via no Brasil uma possibilidade de vida sem as perseguições das quais, por ser judeu, ele era vítima em solo europeu. Nas palavras da letróloga Mariana Holms, pesquisadora na USP e integrante do Grupo de Estudo Stefan Zweig, “a utopia prevaleceu” na imagem do Brasil que “ele formou para si”.

“Zweig agarrou-se ao contraste elementar entre tolerância e intolerância, ao ver comunidades diversas coexistindo nos cenários brasileiros que visitou, enquanto na Alemanha, Áustria e nos demais países ocupados por Hitler, pessoas pertencentes a grupos e comunidades diferentes do padrão estabelecido pela ideologia nazista eram perseguidas, deportadas e aniquiladas.”

“A coexistência com aparência de harmonia foi tomada como um oásis e uma promessa de futuro para a civilização decaída. O presente de preconceitos e de violenta desigualdade, herdada da era colonial brasileira, foi ofuscado e também relativizado no livro [Brasil, país do futuro]”, analisa a pesquisadora.

Se essa ideia de Brasil tolerante teria motivado sua migração derradeira, é lícito entender que possa ter sido a decepção com esse próprio imaginário o que motivou seu suicídio. Para o biógrafo Alberto Dines, o maior motivador concreto dessa morte teriam sido as notícias dos primeiros afundamentos de navios mercantes brasileiros na costa do país, no contexto da Segunda Guerra. “A percepção do escritor seria de que a guerra da qual ele fugiu estaria chegando próxima”, explica Koifman.

Colffield lembra que a mensagem da carta de suicídio demonstra uma grande “falta de esperança em relação ao mundo”: “Ele era um pacifista. Chegou a comentar que, naquela guerra, era impossível ser contra a guerra. Parecia uma solução sem saída.”