O brasileiro, diz o personagem Riobaldo, de Guimarães Rosa, gosta de “muita religião”. É a nossa forma de transcender um cotidiano miúdo, farto de infortúnio, e elevar o pensamento aos céus. De fato, as religiões respondem à saga da humanidade em busca do sagrado: trata se de uma raiz, um fio sutil que conecta os seres entre si, à natureza e ao cosmos, emprestando sentido, integrando e ressignificando suas experiências.

Adepto de festas e ritos, rico em sincretismos, o campo religioso no Brasil passa por expressivas mutações. Os censos do IBGE mostram que, em 1970, 91,1% dos brasileiros se declaravam católicos; já em 2010, não eram mais de 64,6%. Paralelamente, os evangélicos passaram de 6,6% em 1980 para 15,4% em 2000 e 22,2% em 2010. As estatísticas permitem prever que, até 2030, menos de 50% dos brasileiros serão católicos, e em 2040 estes empatarão com os evangélicos.

Parte da mudança deve ser atribuída, segundo o arcebispo de São Paulo, D. Cláudio Humes, às novas tecnologias de comunicação que provocam a “descristianização” do mundo. “Meios como a internet disseminam a recusa à religião, especialmente entre os fiéis mais jovens”, diz o arcebispo. O antídoto, na sua visão, seria “fortalecer a doutrina católica”.

“O catolicismo perdeu para o protestantismo muitas pessoas que haviam sido batizadas”, analisa Jorge Cláudio Ribeiro, professor do Departamento de Religião da PUC-SP. “Chama a atenção a velocidade de crescimento de uma vertente evangélica que começou há quatro décadas: a Igreja Universal do Reino de Deus”. Para Ribeiro, outro fenômeno notável “foi o aumento do segmento dos que se declaram sem religião, 8% dos brasileiros, dos quais cerca de 2% são ateus e agnósticos. Na maioria, trata-se de crentes sem religião, cuja busca espiritual se dá fora do quadro oficial de igrejas”.

O Censo de 2010 indica ainda o aumento dos espíritas, com 2%, e 0,3% que declaram crença afro-brasileira (umbanda e candomblé). As demais religiões agregam 2,7% dos brasileiros: budismo, com 243,9 mil; judaísmo, 107,3 mil; novas religiões orientais, 155,9 mil; tradições indígenas, 63 mil; e islamismo, 35,1 mil. Abre-se, assim, um amplo campo para a diversidade religiosa e também para o fato de não se ter religião – fenômeno que a sociologia denomina desafeição religiosa – já não ser indicador de falta de valor moral, o que denota significativa mudança cultural do país.

A modernização da sociedade inclui ainda mobilidade e experimentação, uma espécie de religiosidade líquida, na busca de atualizar a própria identidade religiosa, com a legitimação da dupla ou tripla filiação. A transitoriedade da adesão religiosa seria uma marca desses tempos, revela um estudo realizado pela professora Sílvia Fernandes, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, com 400 moradores de metrópoles vinculados a Comunidades Eclesiais de Base e à Renovação Carismática Católica: eles consideram normal a constante incursão por rituaisde outros credos. Simultaneamente, há o recurso paralelo aos médiuns, guias espirituais e curandeiros famosos, que atraem milhares de adeptos e crentes.

Razões da queda

Para o teólogo e filósofo Leonardo Boff, são muitas as razões do esvaziamento da Igreja Católica. “A imposição do celibato aos padres, o enraizado antifeminismo, a desconfiança sobre tudo relacionado à sexualidade e prazer, o culto à personalidade do papa e sua pretensão de ser a única Igreja verdadeira” se destacam.

De fato, o Censo de 2010 mostra que o catolicismo perdeu o maior número de mulheres, dentre as religiões pesquisadas. Também está evidenciada a queda do número de irmãs religiosas no Brasil, de 35.039 em 1961 para 33.386 em 2010, segundo dados do Centro de Estatísticas Religiosas e Investigação Social (Ceris).

“O catolicismo não gosta das mulheres, não compreende suas questões, ao menos no que diz respeito à contracepção”, avalia o professor Jorge Ribeiro. “Os senhores solteiros que formam a liderança católica não conseguem entender que não se pode ter filhos assim, um atrás do outro. Falta à Igreja ser um pouco mais solidária, sofrer um pouco mais com a mulher, em vez de simplesmente condená-la, como faz com o aborto.”

Há também o efeito do abuso sexual, que rendeu tantos escândalos ao Vaticano; a desafeição religiosa dos jovens, que as Jornadas Mundiais da Juventude – contrapostas às evangélicas Marchas para Jesus – não conseguiram reverter, assim como também não  deu o resultado esperado a Renovação Carismática Católica, com seus padres cantores e presença na mídia, à moda pentecostal.

A disputa por território invade o âmbito político, como demonstram as crescentes bancadas parlamentares evangélicas e a disputa entre católicos e evangélicos nas últimas eleições para a prefeitura de São Paulo. De fato, o florescimento das religiões pentecostais e neopentecostais não é exclusividade brasileira: trata-se do principal fenômeno da cena religiosa mundial, ao lado da irradiação do islamismo – esta também com desdobramentos no campo político.

Intolerância e diálogo

Em paralelo ao crescimento da diversidade religiosa, contudo, ocorre também um crescimento da intolerância. O Estado brasileiro, laico, condena a intolerância e promove a liberdade religiosa. No entanto, ainda hoje várias igrejas continuam defendendo a precária ideia de que são donas da verdade.

Diz Leonardo Boff, em Espiritualidade: Caminho de Realização: “A experiência de base é que estamos ligados e religados (raiz da palavra ‘religião’) uns aos outros e todos com a Fonte Originária. As religiões vivem dessa experiência espiritual. Elas são posteriores a ela. Articulam-na em doutrinas, ritos, celebrações e caminhos éticos e espirituais. Infelizmente, muitas se tornaram doentes de fundamentalismo e de doutrinalismo, que dificultam a experiência espiritual.”

Na outra ponta do espectro, o diálogo inter-religioso promove a aproximação entre as crenças. João XXIII criou, em 1960, um secretariado para atuar inicialmente na união das igrejas cristãs; mais tarde, o diálogo se estendeu a outros credos. A ação foi reforçada pelo Concílio Vaticano II (1962-1965), cujo 50º aniversário foi comemorado em outubro. Há hoje campanhas da fraternidade ecuménicas e as comunidades eclesiais de base, embora de maioria católica, fazem atividades com pessoas de outros credos.

O ecumenismo foi particularmente importante durante a ditadura brasileira (1964-1985), quando o pastor presbiteriano Jaime Wright (1927-1999), o cardeal católico dom Paulo Evaristo Arns e o rabino Henry Sobel se uniram para denunciar as violações aos direitos humanos no país, do que resultou a publicação do livro Brasil: Nunca Mais, em 1985.

“Hoje há mais tolerância, a diversidade está se impondo e mudando a mentalidade para uma visão menos fundamentalista e dogmática – amar o próximo, meditar, se despir de uma atitude de onipotência. Também o avanço da escolarização faz com que as pessoas já não aceitem tudo de olhos fechados”, avalia o professor Jorge Ribeiro. “Na crise em que vivemos, com a humanidade sofrida, quando a ciência, a tecnologia e o capitalismo impõem um ritmo muito acelerado de mudanças, a religião, mais lenta, não oferece respostas imediatas. Por isso a experimentação  no campo religioso é tão grande. Quem achar que tem a resposta ou está enganado ou está enganando.