No fim da década de 1940, o escritor Albert Camus (Prêmio Nobel de Literatura) visitou o Brasil e incluiu no roteiro a Festa do Bom Jesus, em Iguape, no litoral paulista. No conto “A Pedra que Cresce”, publicado em 1957, Camus narra a festa e as manifestações religiosas presenciadas em sua visita. Quase 50 anos depois, nosso repórter vai a Iguape para registrar o que se mantém da fé que encantou o autor franco-argelino e ainda atrai milhares de fiéis de todo o Brasil.

…Acima de todos

No final do dia 6 de agosto, aos olhos de uma grande multidão, a imagem do Bom Jesus desfila imponente pelas ruas de Iguape.

Ao acordar pela manhã, d´Arrast espanta-se ao observar os detalhes do local onde está hospedado: um hospital com duas fileiras de camas, paredes recentemente caiadas de marrom e branco, com crostas amarelas até o teto. Presente no conto “A Pedra que Cresce”, do escritor franco-argelino Albert Camus, a descrição é também uma das referências autobiográficas da visita que o autor de clássicos, como A Peste e O Estrangeiro, fez ao Brasil, em 1949. No caso desse conto, refere-se particularmente aos três dias em que esteve na pequena cidade de Iguape, litoral sul de São Paulo, onde presenciou a tradicional Festa do Bom Jesus, realizada todos os anos de 28 de julho a 6 de agosto.

Conta-se que a peregrinação começou quando dois índios encontraram uma imagem do Senhor Bom Jesus numa praia próxima a Iguape, e que, ao tentar carregá-la, perceberam que o objeto ficava mais leve na direção de Iguape, e mais pesado na direção oposta. Acabou sendo levada para lá, e exposta na Igreja de Nossa Senhora das Neves, a padroeira da vila. Hoje, a imagem encontra-se na nova matriz, a Basílica do Senhor Bom Jesus, inaugurada em 1856.

Uma das mais antigas povoações do Vale do Ribeira, fundada em 1538, Iguape foi o cenário da viagem de d´Arrast, um engenheiro francês contratado para construir uma represa no local, e que chega justamente nos dias da festa. Já Camus chegou na cidade na madrugada do dia 5 de agosto, debaixo de chuva, acompanhado do escritor Oswald de Andrade, seu filho Rudá de Andrade, Paul Silvestre, adido cultural francês, e um motorista, cujo nome não é citado, mas que recebeu (de Camus) o apelido de Augusto Comte. Em vez de ir para um hotel ou para a casa de alguma autoridade local, o escritor foi estranhamente hospedado no Hospital Feliz Lembrança, nos arredores do povoado.

Bastou que eu chegasse a Iguape para perceber o provável motivo do fato inusitado: a grandiosidade da festa faz lotar todos os hotéis, pousadas e casas da cidade. Já era assim na década de 40. Hoje em dia, a população passa de seus 50 mil habitantes para a casa dos 200 mil, o que me obrigou a ficar hospedado a 20 quilômetros do centro, sendo que a duas semanas da festa não havia nenhum quarto ou cama vaga em toda a região.

No caso de Camus, uma das hipóteses é de que a viagem fora marcada em cima da hora, por sugestão de Oswald. De qualquer forma, sua passagem pela cidade ficou registrada no livro de visitas do hospital, dia 7 de agosto de 1949, ocasião em que deixou uma mensagem escrita em francês: “Ao Hospital Feliz Lembrança que traz tão bem o seu nome, com a homenagem calorosa a este Brasil que aboliu a pena de morte e a esta Iguape onde a gente compreende esse gesto.”

A tradução, logo abaixo na página, foi feita por Oswald de Andrade e reflete as preocupações do escritor na época da visita. Atualmente, o hospital está abandonado, em ruínas, e as páginas amareladas de seu livro de visitas representam a memória de um tempo que uniu os dois escritores.

A fé que cresce

Nos arredores da cidade, a cena que presencio é a mesma que impressionou o escritor: centenas de fiéis em fila, diante de uma pequena gruta, tentando conseguir lascas de uma pedra que teria poderes curativos, milagrosos. Além de curar doenças, teria a fantástica propriedade de continuar crescendo de acordo com a fé de quem as leva. Não é à toa que, de tantos fatos e cenas marcantes na viagem do escritor, essa tenha sido uma das que mais ganhou destaque em sua obra, dando nome ao conto publicado no livro O Exílio e o Reino, em 1957, mesmo ano em que recebeu o Prêmio Nobel de Literatura.

O ritual descrito na literatura de Camus nasceu com a própria Festa do Bom Jesus, e teria surgido porque os homens que encontraram a imagem do santo pararam para lavála numa fonte próxima a Iguape. Surgiu então a história de que a pedra sobre a qual a imagem foi lavada passou a crescer ininterruptamente.

“Quando se tem fé, alcança-se a graça e a pedra cresce quando colocada na água, pode ser até na de um aquário”, diz Mario Schimidt, que participa da festa há mais de 30 anos. “Sempre levo um pedaço da pedra. Foi ela que fez um primo meu, que estava paralisado por uma doença, conseguir andar”, completa.

O resultado dessa fé é que, hoje, no lugar da pedra onde foi lavada a imagem há um grande buraco, coberto por uma cúpula arredondada, que obriga as pessoas a descerem por uma escada para pegar as pedras.

Para facilitar a vida dos visitantes, rapazes fazem o serviço pesado e descem com marretas para retirar as pedras, oferecidas aos fiéis a troco de uma “ajuda”. “Não vendemos as pedras, só pedimos uma recompensa pelo trabalho duro”, afirma Josenilson Dias, 28 anos. Ele já faz isso há três anos e sempre tira “uma graninha” com os seus companheiros, que se revezam na atividade.

Em seu quinto ano consecutivo de “trabalho”, Rodrigo Penha da Silva, 31 anos, natural de Iguape, conta que, depois de uma semana de festa, chega a tirar cerca de R$ 500. “Muitos dão R$ 1, R$ 2 e até R$ 3 por um bom pedaço da pedra milagrosa. É fácil juntar R$ 20, R$ 30 em poucas horas. Às vezes, em minutos”, explica ele, como se estivesse relatando um verdadeiro milagre.

…Passado e presente

Geral da cidade de Iguape, e a imponente igreja ao centro; fiéis cumprem promessa carregando o andor com a imagem do Bom Jesus; o Hospital Feliz Lembrança, hoje em ruínas; sala dos milagres na Basílica do Bom Jesus; jovens vendem pedaços da pedra milagrosa; e fiéis circundam a gruta do Bom Jesus.

A procissão

Outro ponto importante de “A Pedra que Cresce” está nas descrições que Camus faz da procissão, ponto alto da festa, quando a imagem do Bom Jesus sai pelas ruas da cidade, “cajado na mão, a cabeça coberta de espinhos, sangrando e cambaleando por cima da multidão”, como ele mesmo descreve. O cortejo começa e termina na Basílica do Bom Jesus, na praça central, num trajeto de pouco mais de um quilômetro, no qual uma incrível multidão segue rezando, pagando promessas ou simplesmente agradecendo em silêncio.

É realmente uma imagem impressionante, que também impressiona o engenheiro d´Arrast. Envolvido no clima da cidade, ele acompanha um dos penitentes, conhecido no texto como “cozinheiro”, que carrega um bloco de 50 quilos na cabeça como forma de agradecimento por ter sobrevivido a um naufrágio. A relação entre os dois é um dos pontos altos da narrativa.

Além da procissão e da gruta, a festa também gira em torno de centenas de barracas onde se vende de tudo: cachorro quente, artesanato, utensílios domésticos e o que mais possa interessar aos milhares de pessoas que chegam de várias partes do País. Durante os dias da festa, vivem em acampamentos de lona, casas improvisadas nos carros, nos caminhões e nos barrancos.

As ruas e calçadas ficam todas totalmente lotadas de gente dormindo, comendo, acampando… Alguns se destacam da multidão com seus cavalos. Galopam centenas de quilômetros para agradecer ao Bom Jesus de Iguape, e participar de uma missa rezada justamente em homenagem a eles, com direito a um desfile pelas ruas da cidade. Deixam no ar um cheiro de estrume que incomoda alguns e remete outros a um passado remoto, quando os cavalos eram o único meio de transporte existente.

Depois da procissão, quando o Bom Jesus volta para a Basílica, é que as ruas da cidade começam a esvaziar, os romeiros começam a desmontar as suas coisas e se preparar para o retorno. Pouco a pouco, Iguape vai recuperando a sua calma costumeira, de pequenina cidade litorânea, com o coreto na praça, o rio silencioso, as pessoas tranqüilas, sem dar indícios da força misteriosa que possui, e que tanto encantou o escritor franco-argelino Albert Camus.

…Encanto literário

Fiéis carregam a imagem do Bom Jesus pelas ruas de Iguape; acima, olhares atentos durante a missa que consagra a festa.

Livro de visitas do Hospital Feliz Lembrança com dedicatória de Camus e tradução de Oswald de Andrade.

A América de CAMUS

A passagem de Albert Camus a Iguape foi parte de uma grande viagem que fez pela América do Sul entre os dias 30 de junho e 31 de agosto de 1949. Além de visitar o Brasil, onde esteve em São Paulo, no Rio de Janeiro, na Bahia e em Fortaleza (Ceará), realizou conferências em Buenos Aires (Argentina), Santiago (Chile) e Montevidéu (Uruguai).

Sua passagem por esses países está registrada no livro Diário de Viagem, que reúne as impressões do autor. A viagem ocorreu num momento em que Camus sofria com uma tuberculose mal curada e parecia estar em depressão, o que é bastante nítido no tom de seus textos literários e nas suas anotações de campo.

Filho de emigrantes franceses, nasceu na Argélia em 1913, onde passou a sua infância e grande parte da juventude. Além de A Peste, O Estrangeiro e O Exílio e o Reino, tem entre suas principais obras O Homem Revoltado e O Mito de Sísifo. Albert Camus faleceu em 1960, na França, vítima de um acidente de automóvel.

Serviço

A Festa do Bom Jesus de Iguape acontece todos os anos de 28 de julho a 6 de agosto. Partindo de São Paulo são 175 quilômetros, seguindo pela Rodovia Régis Bittencourt (BR 116) e depois pela Rodovia Prefeito Casimiro Teixeira (SP 222) até Iguape.