Para a presidente da entidade empresarial da Tunísia e vencedora do Prêmio Nobel da Paz de 2015, não se consegue construir uma democracia sem que haja desenvolvimento econômico

A tunisiana Ouided Bouchamaoui está destinada a desbravar caminhos. Ela é a primeira presidente mulher da Confederação Tunisiana da Indústria, Comércio e Artesanato (Utica) e, nesse papel, integrou o Quarteto do Diálogo Nacional, que ajudou seu país a se tornar uma democracia – e, por isso, venceu o Prêmio Nobel da Paz de 2015. A partir de sua experiência, que tem vários pontos de contato com países em desenvolvimento como o Brasil, ela defende a tese de um estado forte que se comunica com a juventude e de um setor privado que encoraja jovens empreendedores. Ela ressalta: não pode haver democracia sem desenvolvimento econômico.

Como presidente da Utica, a sra. teve um papel importante para ajudar a Tunísia a resolver a crise política de 2013, iniciando um diálogo nacional com três outras organizações. Como conseguiu isso?
OUIDED – Havia quatro de nós [o Quarteto do Diálogo Nacional, vencedor do Prêmio Nobel da Paz de 2015]: a Utica, a União de Trabalhadores Gerais da Tunísia (UGTT), a Ordem dos Advogados da Tunísia e a Liga Tunisiana dos Direitos Humanos (LTDH). Após o assassinato politicamente motivado do deputado [líder do partido da oposição] Mohamed Brahmi, em julho de 2013, quase seis meses depois de Chokri Bellaïd, líder da Frente Popular, ser assassinado, decidimos publicar uma declaração conjunta pedindo calma. Usamos essa [declaração] como base para um roteiro que, para nós, refletia as aspirações da grande maioria dos tunisianos. Nós o enviamos aos principais partidos políticos e 22 deles concordaram em assiná-lo. Somente o Congresso para a República (CPR), um dos partidos do governo interino na época, recusou-se a participar do processo. O partido Ennahdha, que também se juntara ao governo interino, finalmente assinou o comunicado, sem as alterações que queria.

Pela primeira vez na história da Tunísia, as relações entre sindicatos de trabalhadores e empregadores eram relativamente boas. O “diálogo” era a palavra de ordem para lidar com questões políticas e sociais?
OUIDED – Sim. Antes de entrar nas negociações políticas, houve uma série de debates para chegar a um entendimento entre a Utica e a UGTT – por iniciativa da Utica, devo enfatizar. Queríamos estabelecer esse marco inicial no diálogo social. Não há nada mais eficaz do que se reunir em torno de uma mesa quando se trata de quebrar barreiras entre sindicatos e empregadores. As empresas não podem funcionar sem seus proprietários ou seus trabalhadores. No interesse da produtividade, o melhor é adotar o princípio de “viver juntos em paz”, apesar das nossas diferenças.

Manifestantes nas ruas em 2011: rota para a democracia (Foto: iStockphotos)

A Utica costumava ser uma aliada do governo autoritário, mas, após a revolução de 2011, tornou-se um dos protagonistas do processo democrático. Como ocorreu essa mudança?
OUIDED – É verdade, esperava-se que a Utica trabalhasse com o governo, fosse qual fosse sua cor política. Mesmo assim, certas questões candentes foram abordadas antes de 2011, como o mercado paralelo e fraude e corrupção. Felizmente, agora somos uma democracia, o que nos permite abordar até mesmo as questões mais sensíveis de modo mais franco e aberto.

Qual é o papel que o setor privado deve desempenhar na defesa do processo democrático?
OUIDED – O slogan criado pelo movimento da juventude durante a revolução de 2011 foi “Dignidade e Trabalho”. É verdade, não existe dignidade sem trabalho. Portanto, nosso papel é investir para criar empregos. Se conseguirmos isso, resolveremos os problemas econômicos e sociais do país. A democracia é uma conquista importante, mas não basta para a estabilidade do país. Quão bom é falar se você não tem o suficiente para comer? Portanto, temos um papel importante a desempenhar na criação de empregos. Mas o governo deve seguir adiante. Várias coisas impedem o desenvolvimento. Diversas leis precisam ser revisadas. O ritmo lento da administração desencoraja os investidores. Os investidores estrangeiros não são muito motivados porque sentem que as leis existentes não são claras ou não são aplicadas. Mesmo nós, os tunisianos, apesar da nossa boa vontade, nos sentimos frustrados por não poder agir tão rapidamente como queríamos, porque a administração e as leis não estão mantendo o ritmo.

As parcerias público-privadas (PPPs) são reconhecidas como um elemento necessário para alcançar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas (SDGs). Onde a Tunísia se encaixa nisso?
OUIDED – O parlamento tunisiano aprovou uma lei que permite PPPs. Mas, tal como foi formulada, essa lei esvaziou o princípio de qualquer significado na prática. Estamos trabalhando para melhorá-la. A promulgação da lei não foi acompanhada de forma adequada por informações para explicar os objetivos subjacentes às PPPs. Com exceção de certos setores estratégicos – onde o estado deve estar presente e onde o setor privado não tem os meios ou a autoridade para intervir –, o setor privado deve participar ativamente de investimentos, sobretudo nas províncias, para desenvolver a economia e, particularmente, para encorajar o empreendedorismo entre os jovens.

Jovens em praia tunisiana: ofertas escassas de trabalho (Foto: iStockphotos)

Gostaria de ver soluções radicais para tirar a Tunísia da crise econômica em que se encontra?
OUIDED – Não há soluções milagrosas. Uma vantagem para a Tunísia é que os problemas econômicos são bem definidos e conhecidos por todos. O mais urgente é aplicar a lei.
Temos de encontrar uma solução para o mercado paralelo e a economia informal, que estão prejudicando nossa economia. Precisamos ter um melhor controle sobre nossas fronteiras e fazer um esforço sério para levar a juventude a empregos formais. Também temos de convencer as pessoas de que pagar impostos é um ato de cidadania. Finalmente, o governo tunisiano, que anteriormente fazia um bom trabalho, precisa restaurar a imagem que costumava ter, para podermos confiar nele novamente. Há uma série de obstáculos de que estamos cientes hoje. O que é necessário é a vontade política para superá-los e restaurar a confiança entre todas as partes interessadas – uma pré-condição necessária para qualquer forma de desenvolvimento. Passamos de uma ditadura para uma democracia, mas isso não significa que o estado esteja ausente. É preciso um mínimo de ordem, pelo menos para aplicar a lei. Não queremos um estado autoritário novamente, mas um estado forte. E a força do estado deriva da aplicação da lei. A autoridade da lei proporciona rigor e o rigor leva à confiança. E é a confiança que traz investimento e prosperidade.

O terrorismo e o recrutamento de jovens através da internet tornaram-se um dos principais desafios do nosso tempo. Em 2015, o Quarteto Tunisiano lançou um apelo do pódio do Nobel para combater essa praga. Que soluções a sra. sugere?
OUIDED – Na Tunísia, seis anos após a revolução, os jovens ainda não viram ações concretas em resposta às suas demandas. Eles ainda não têm trabalho, lazer, estrutura adequada para cumprir seu potencial nem atividades culturais ou esportivas. Por outro lado, têm fácil acesso à internet. Sem trabalho e ninguém para ouvi-los, eles são presas fáceis para recrutamento, especialmente se lhes são prometidos o paraíso e muito dinheiro. Ainda não percebemos a gravidade desse fenômeno, especialmente no interior do país. Não esqueçamos que o terrorismo está intimamente ligado ao contrabando – ou seja, ao setor informal –, onde os jovens encontram trabalho. Um programa de educação integral deve ser posto em prática pelo governo para entrar em diálogo com a juventude, ensinar-lhes sobre a cidadania e explicar que o estado, por si só, não pode resolver todos os seus problemas. Para criar emprego, o estado deve garantir que haja segurança, estabilidade política e legislação que incentive o empreendedorismo e o investimento estrangeiro.

Desde 2011, os empresários têm uma mulher como sua principal representante. Essa situação é inédita! Como ela é vista?
OUIDED – Ela nunca incomodou ninguém. Como diretora de empresa, não sou estranha à família dos empregadores. Além disso, ninguém pensa que, apenas porque tem uma mulher como presidente, a Utica corre o risco de perder sua autoridade ou ver seu papel enfraquecido. É verdade que eu era a única mulher no conselho executivo e fui eleita de forma democrática e transparente, com uma maioria muito clara sobre os outros candidatos. Considero que a escolha foi feita com base em critérios objetivos, como o programa, o carisma, o senso de liderança e as habilidades de gerenciamento.