Marilena Lazzarini é uma referência quando se fala em direitos do consumidor no Brasil. Da diretoria do Procon-SP à fundação do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), há décadas ela acompanha o caminho tortuoso da luta pela cidadania contra a manutenção do país ao largo das grandes economias em termos de direito do consumidor (embora seja o oitavo PIB do mundo). Apesar desse atraso, diz que “não temos uma história ruim para contar”, e acredita que chegou a hora de os brasileiros darem um grande passo: deixar de olhar apenas problemas individuais e passar a pensar na responsabilidade comum de todos os consumidores – abraçar o consumo responsável e sustentável.

O modelo descartável de consumo contemporâneo está diante de uma revolução, acredita. “Você não pode mais pensar em trocar de celular a cada seis meses. A obsolescência programada vai ter de acabar. Quem consome muito terá de consumir menos. Está claro que o modelo que temos não cabe no mundo.”

Apesar de aposentada, Marilena não pára de trabalhar. Pertence ao comité executivo da Consumers International, entidade global de defesa dos consumidores, da qual já foi presidente de 2008 a 2011, e também preside o Conselho Diretor do Idec, que tem mais de 20 mil sócios e nenhum vínculo com o governo ou partidos políticos. Está fortemente empenhada na criação de órgãos comunitários de defesa do consumo, em nível municipal. “Precisamos ter mais instituições fortes. É necessário desenvolver mecanismos de financiamento para estruturar organizações de consumidores, o que não existe no Brasil.” Leia a entrevista concedida à PLANETA, em sua casa, na chácara Monte Alegre, em São Paulo.

A senhora recentemente disse que os 25 anos do Idec são um testemunho da baixa prioridade dada ao consumidor na ordem económica brasileira. Por quê?
Talvez eu também não tenha resposta para essa pergunta. Acho que tem a ver com a história e a cultura. Lutas por direitos no Brasil, em geral, nunca tiveram muito apoio no sentido de congregar pessoas. A mobilização da sociedade pelos direitos é recente. A ditadura contribuiu para esse atraso, porque qualquer mobilização era complicada. Essas questões afloraram a partir de meados da década de 1980, no período da redemocratização, quando tivemos abertura para falar, embora tivéssemos o Procon, criado em São Paulo, desde 1976. Com a abertura, tivemos a sorte de ganhar o Código de Defesa do Consumidor, aprovado pelo Congresso nos anos 1990. É uma lei completa, que estabelece direitos e punições.

Mas é cumprida?
Muito pouco. Minha avaliação é de que não tivemos ainda 70% do código efetivamente implementado. É como se estivéssemos apenas tratando dos problemas da ponta do iceberg. As grandes questões só começaram a ser tratadas nesta década.

Quais são elas?
Felizmente, temos, agora, as principais queixas do consumidor agregadas pelo Sistema Nacional de Informações de Defesa do Consumidor (Sindec), montado pela Secretaria Nacional do Consumidor. Ele nos permite ver as reclamações no país todo, concentradas em telefonia, bancos e planos de saúde, fundamentalmente. São queixas corriqueiras. O consumidor acaba tendo de bater na porta de um Procon Brasil afora para resolver um problema simples que deve ser solucionado numa interlocução direta com a empresa.

Como o direito de fazer uma cirurgia pelo plano de saúde?
Ou corrigir uma cobrança indevida do banco. Problemas corriqueiros acabam demandando recursos de todo um sistema público. Isso onera a sociedade, é o dinheiro do contribuinte. A grande questão é ter regulação melhor para as queixas do consumidor. Porque por trás delas existe o mau funcionamento de órgãos reguladores. No processo de privatização foram criadas as agências  reguladoras, que precisam ser independentes, mas infelizmente, nessa primeira etapa, ficaram muito mais voltadas para a situação financeira das empresas que receberam as concessões do setor. As agências não olham as necessidades do consumidor. Mas têm de atender os dois lados.

Muitas vezes parece que as empresas agem de má-fé esperando que os consumidores não se animem a reclamar seus direitos. É fato ou desorganização?
Talvez seja falta de uma cultura de respeito ao consumidor, de achar que não vale a pena respeitá-lo, que tudo bem. Claro que nesses 20 e tantos anos do código houve um amadurecimento. Há empresas que sem dúvida avançaram bastante. Mas, na média geral, ainda falta muito. O que a gente vê é que várias empresas só resolvem os problemas daqueles que batem na porta do Procon ou em juizados especiais cíveis. Elas não tomam medidas na linha de produção ou no atendimento, de forma a prevenir essas reclamações.

Os Serviços de Atendimento ao Consumidor (SACs) funcionam?
Chegamos a uma situação em que funcionavam tão mal que o ex-presidente da República precisou editar um decreto tratando do seu funcionamento. Em minha opinião, isso deveria ter sido feito muito antes. Para o código ser cumprido é preciso haver alguns decretos, porque as regras são genéricas demais.

Existe alguma pesquisa que identifique que classe social ou região do país reclama mais?
Com dados precisos, não, porque os Procons não registram. Mas sabemos que no Estado de São Paulo os Procons estão mais perto da população, porque há escritórios estaduais e municipais. Há Estados que só possuem um Procon na capital. Com certeza temos um viés que é um público mais de classe média, com mais acesso à informação. Os mais articulados reclamam mais. Dificilmente os 30 ou 40 milhões de consumidores que entraram na classe C recentemente podem perder uma manhã, uma tarde ou um dia para pegar uma fila no Procon. Muitos conflitos se perdem.

Até porque são um fator de estresse.
Exatamente. Um grande problema é o pós-venda, a assistência técnica dos aparelhos. Se aparecer um problema você sabe que vai enfrentar uma saga. O que falta desde o início, que está contemplado no código, é a educação para o consumo. Essa questão foi introduzida nos parâmetros curriculares do Ministério da Educação de forma transversal, mas nunca foi implementada numa escala satisfatória. Pela educação as pessoas conhecem melhor seus direitos e conseguem resolver problemas no balcão da empresa. Assim, os órgãos de defesa do consumidor podem se dedicar a questões de maior profundidade. O Idec foi criado para cuidar de questões de âmbito coletivo. Nosso papel é muito mais representar os interesses do consumidor perante as autoridades do que ficar atendendo a reclamações. Mas é um dilema. Temos de atender as pessoas porque elas têm problemas, os problemas são importantes, e porque o tratamento de uma questão individual leva o consumidor a aprender como pode resolver um conflito.

A imprensa ajuda ou está comprometida pela publicidade?
Mesmo que não existisse a questão da publicidade, a imprensa acaba ficando com o mesmo dilema: pelo lado do leitor, trata as questões que aparecem no plano individual. A pauta da imprensa é muito mais determinada pelas questões do dia a dia do que por questões maiores, que não têm apelo.

Reclamar é um ato de cidadania?
Sim, são vários degraus. Apesar de sempre terem aquele viés do individualismo, eles ajudam a subir a escada da cidadania. Você passa a perceber que vale a pena lutar pelos direitos. Além disso, o consumidor tem responsabilidades, gera lixo e precisa conhecer as consequências do consumo, passar do individual ao coletivo.

Como avaliar a demanda da cultura da sustentabilidade nas empresas?
Todas se dizem sustentáveis. Mas quando você vai ver as práticas, o que as empresas respondem em questionários, a avaliação não é boa. Temos um déficit muito grande entre o discurso, a publicidade e a prática. Aí entra a questão do governo, que precisa emitir regras. Tudo não pode acontecer só na base do voluntarismo das empresas, que fazem propaganda, não cumprem o que dizem, e o governo não faz nada. No Idec trabalhamos a questão dos automóveis, que é emblemática. O carro como modelo de transporte é um problema, mas mesmo dentro desse modelo existem aspectos que poderiam ser melhorados, como a emissão de gás carbônico. Há regras, mas o governo não fiscaliza.

Os direitos do consumidor vão crescer em importância nos próximos anos. Acredita nisso?
Acredito que serão mais importantes, mas não sei quando chegarão a ser uma bandeira mobilizadora. Espero que ganhem mais relevância. O Brasil pretende se projetar como potência emergente e não entendo como uma economia com modelo capitalista de mercado, numa sociedade de consumo, pode desejar essa posição sem maturidade nas relações entre empresas e consumidores. O departamento do Ministério da Justiça encarregado dos direitos do consumidor tinha 20 e poucos funcionários até meados deste ano. Como é que pode? Como um departamento desses vai interagir e dialogar de igual para igual com as grandes empresas? O que ajuda é que temos um sistema nacional e, então, juntamos vários órgãos. Uma questão importante que vou levar para a Consumers International é que precisamos ter outras instituições fortes como o Idec. O Brasil é um país grande com muita especificidade regional. Nada como uma organização local para representar cada comunidade.

Os 30 milhões de brasileiros que ascenderam economicamente podem gerar uma bolha de crédito?
Esses são os mais vulneráveis. A publicidade foca diretamente neles. Deflagra-se um marketing agressivo para uma população que ascendeu e, com todo o direito, quer consumir. Eles estão repicando os padrões de consumo que veem nas camadas superiores e estão se endividando cada vez mais. Há toda essa comemoração justa da ascensão social, mas não foram criados mecanismos para proteger essa população dos riscos do crédito fácil e do marketing agressivo. Eles poderiam estar consumindo com muito mais racionalidade.