Há muito tempo não se via nada parecido: estudantes invadindo uma reitoria de universidade, acampando lá dentro, pondo a boca no trombone para denunciar decretos do governo que, segundo eles, ferem a autonomia da instituição. Vera Souza Dantas examina a recente invasão da reitoria da USP para saber se se trata de um fato isolado ou se, realmente, nossos estudantes começam a sair do torpor de uma prolongada alienação política para manifestar seu inconformismo e redescobrir o poder renovador do protesto.

Um pequeno grupo de universitários deu à reitoria da Universidade de São Paulo (USP) uma outra cara e função. Com alunos acampados em suas dependências entre os dias 3 de maio e 22 de junho, brigando contra os decretos do governo do Estado que eles diziam ferir a autonomia da universidade, o local tornou-se o símbolo de uma resistência. Este artigo não pretende discutir o mérito da iniciativa, mas sim o movimento, com todos os ingredientes que dão corpo às manifestações estudantis, como faixas, cartazes, pichações, passeatas, palavras de ordem, intermináveis assembléias e a turma do deixa- disso pronta para agir.

Inegavelmente, esse movimento abre espaço para uma pergunta insistente: teria essa moçada redescoberto o fio perdido das lutas estudantis que marcaram a geração dos anos 70 e 80? Estariam esses rapazes e moças despertando para um vigor que os jovens de então, hoje pais e até avós, parecem ter deixado morrer, abatidos e impotentes diante de um cenário político que nos faz questionar se foi para isso que se lutou tanto em um passado recente?

Quando esses jovens nasceram, há mais ou menos 20 anos, a geração anterior ainda estava embriagada de liberdade, depois de um jejum que durou duas décadas. Em 1987, os filhos da ditadura militar preparavam-se para dar ao País uma nova Constituição, aprovada em 1988. Aqueles brasileiros que se reuniram em torno de uma causa – ter nas mãos a liberdade de ir e vir, de falar e contestar, e até de pensar – brigaram muito por essa conquista, pegaram em armas, mataram e morreram em nome de um ideal. Havia um ideal e o dos meninos de hoje, segundo as vozes que se levantam, é basicamente por uma universidade livre.

Ninguém pretende discutir aqui qual ideal vale a pena negar ou apoiar – se é este que aí está ou o que estava lá. O que se propõe é refletir sobre os moços que parecem ter encontrado uma razão para despertar de uma apatia que toma conta da sociedade, esta cada vez mais individualista e atuando sem estar nem aí para o coletivo.

…Tempos modernos

Ao contrário de 1968, quando a juventude lutava pela liberdade de expressão, a militância dos jovens hoje gira mais em torno de movimentos pela melhoria da realidade social, uma posição possivelmente motivada pelo descrédito deles na política.

Se ela se importasse, só para levantar um ponto dessa discussão, não estaríamos desesperados discutindo como não sucumbir aos males do efeito estufa, que vai varrer o planeta com hora já marcada na agenda dos técnicos. Pois até mesmo esse movimento, o de nos salvarmos, não é uma bandeira comum a todos os povos. Individualismo é uma porta aberta para a solidão, mal que acomete a sociedade moderna e não deixa de fora nem mesmo os jovens, em quem os estudiosos do comportamento identificam esse sentimento em escala profunda.

Quem é jovem, hoje, não vê os seus pares como apáticos ou alienados. Como o universitário Antônio Carlos Freitas Jr., 21 anos, aluno do último ano de direito da Faculdade São Francisco da USP, para quem a juventude tem um engajamento e mostra uma vocação de protagonista. Só que essa manifestação não se faz, atualmente, pelo partido político, “porque ele não se apresenta mais como instrumento de mudança da realidade social como a juventude quer”, afirma ele.

Morador no Grande ABC paulista e estudando e trabalhando na capital pulista, o universitário conta que essa reflexão ficou muito clara no dia em que viajou no trem que o conduz diariamente da Estação da Luz à cidade de Rio Grande da Serra, e encontrou jovens que cantavam hinos evangélicos e voltavam de um evento organizado pela igreja que freqüentam. Para o estudante, esse é um tipo de militância, assim como aquela que agrupa jovens em organizações não-governamentais, em setores do empresariado e em manifestações culturais, e não mais em torno da politização partidária.

Freitas Jr. diz que esse novo perfil de militância não é um problema do jovem, “mas do modelo democrático que ele tem, que é hipócrita, de muito discurso e de pouco resultado.

“A minha geração está buscando novos mecanismos de mudança social”, prossegue. “Cabe aos dirigentes partidários da juventude buscar meios de fazer com que o jovem encontre no sistema político um instrumento para transformar a realidade social. Como não está vendo isso, ele o faz por outras vias. A juventude não é apática e não pode ser rotulada de não engajada. Ela só não aceita esses instrumentos que foram usados pela geração anterior, que buscou a democracia muito mais do que agora, mas que chegou a um resultado que não vai mudar a sociedade para melhor, que é a verdadeira luta do jovem”, afirma ele.

Para Freitas Jr., a ocupação da reitoria da USP também é um símbolo dessa militância e um meio que os jovens encontraram para reafirmar seus princípios e para atender `a necessidade que eles têm de acreditar que podem mudar o mundo, experiência arquetípica que lhes dá identidade. O universitário entende a validade desse movimento, mas não tem dúvidas de que a sua geração ainda tem de descobrir como mudar o mundo. “A maneira que eles encontraram se apresenta muito mais como um conforto psicológico do que uma ferramenta consistente para promover mudanças.”

Forma de fazer política é arcaica

Há quem atribua o despreparo da sociedade para viver a democracia à dificuldade de construir a democracia, um fenômeno recente na história do Brasil e que pode explicar o distanciamento que a sociedade tem da política. Fernando Guimarães, 32, especialista em ciência política e gestão pública, diz que a sociedade avançou em muitos aspectos, “mas a forma de fazer política continua arcaica, superada, e isso, somado ao atual descrédito da política, desmobiliza a sociedade”.

Na sua opinião, porém, o jovem faz o contraponto de engajamento, atuando vivamente nas questões de ecologia e de cultura, por exemplo, nas quais a consciência política pode ser percebida. “É preciso separar um pouco o que é atuação partidária, o que é atuação política e o que é a atuação do jovem na sociedade, que hoje não concentra mais o seu engajamento no movimento estudantil, mas sim em outras áreas de atuação.”

Guimarães defende que não se deve culpar a geração anterior por essa crise nas relações, atribuindo ao seu legado um peso morto. “Pelo contrário, no imaginário da juventude de hoje, a geração dos anos 70/80 ficou registrada como a que enfrentou tempos difíceis e conseguiu vencer aquela etapa”, observa o cientista político.”Daí eu relacionar esta crise ao modelo educacional que temos aqui no Brasil, que é um modelo autoritário, que não propicia a discussão e a formação critica. É muito mais um preparar o aluno para passar no vestibular do que para desenvolver uma capacidade crítica.”

A repercussão disso, a seu ver, é uma juventude individualista e consumista. O jovem que está atuando socialmente faz parte de uma minoria que, apesar de todas essas questões, consegue se engajar. “Os estudantes que ocuparam a reitoria também estavam lutando por alguma coisa, mas é uma discussão que deveria acontecer dentro dos fóruns do movimento estudantil, que atualmente perdeu representatividade e não é reconhecido pelos próprios estudantes.”

O que parece preocupante para Guimarães, diante do cenário que se arrasta e já se estende a outras universidades do País, é que “esses estudantes, talvez na vontade de fazer uma coisa em que acreditem, estão na verdade deixando de lado uma ordem democrática. E, ao não entenderem o processo, ficam a reboque de outros interesses. Daí o risco de uma manifestação autoritária estar sempre presente”.

Personagem de uma juventude que acredita cada vez mais no poder da auto-organização popular, segundo suas próprias palavras, Henrique Assis Aragão é aluno do último ano de jornalismo da Universidade Mackenzie. Tem 22 anos, é estagiário em uma assessoria de imprensa e membro da Comissão Gestora da Executiva Nacional dos Estudantes de Comunicação Social. Ele vê a ocupação da reitoria da USP como uma ação política e legítima, da mesma maneira que as manifestações pela diminuição das tarifas dos ônibus. “Esta é uma juventude que atribui um crescente descrédito a instituições como os diretórios e centrais de estudantes, os partidos políticos e o próprio Estado”, explica.

Com um olhar crítico ao ranço da velha esquerda, que “sindicalizou as universidades e engessou os centros e diretórios acadêmicos”; à mídia, que “parece mais a velha surda de A Praça É Nossa”; e à política educacional, que “prefere formar profissionais a formar cidadãos, que faz opção pelo tecnicismo em detrimento da pesquisa”, Assis Aragão acredita que esta é uma geração que “certamente deixará sua marca, porque encara política de outra forma, se organiza para reivindicar e consegue se articular em todo o território nacional”.

Desinteresse é comum a toda a sociedade

Mais jovem deputado estadual na Assembléia Legislativa de São Paulo, eleito no ano passado com 26 anos de idade, Bruno Covas traz não apenas uma herança genética no seu DNA, neto que é de Mário Covas (ex-governador de São Paulo, que faleceu em março de 2001), mas também a certeza de que “as coisas só vão melhorar quando as pessoas voltarem a se interessar em fazer política”. Ele identifica que o desinteresse hoje não é apenas dos jovens, mas de toda a sociedade, que deixou de acreditar e de se engajar.

Para ele, esse desinteresse da juventude é perigoso, porque propicia a criação de um cenário favorável contra as instituições democráticas. “São pessoas que estão chegando agora a uma fase em que deveriam iniciar sua participação política e que parecem não estar interessadas em quantos morreram, foram torturados, cassados ou exilados para que hoje pudéssemos ter liberdade de expressão”, pondera, enfatizando que “se há um legado que a geração anterior deixou para os jovens é o poder de se manifestar, de entrar para um partido político, reclamar do governo, escrever uma carta para o jornal e dar sua opinião”.

Os estudantes da Universidade de São Paulo, onde Bruno Covas cursou a faculdade de direito, estão, segundo ele, fazendo política e mostrando que o inconformismo é grande, mas é preciso canalizá-lo e expressá-lo dentro dos princípios democráticos. “Por mais difícil que seja a construção da democracia, ainda não existe um regime melhor do que ela”, argumenta. “E é a certeza de que é possível mudar que me fez chegar até aqui”, finaliza o jovem político.