Brasil e Índia têm mais em comum do que o coco do Nordeste, o zebu do Cerrado e o afoxé Filhos de Gandhi.

Ignacy Sachs veio para o Brasil com 14 anos, junto com a família judiapolonesa, refugiada da Segunda Guerra Mundial. Formou-se em economia no Rio de Janeiro, voltou à Polônia em 1954, trabalhou como diplomata na Índia e acabou desenvolvendo carreira acadêmica na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, em Paris, onde se naturalizou francês. Hoje, dirige o Centro de Pesquisas sobre o Brasil Contemporâneo na capital francesa. A experiência global e o conhecimento da realidade dos países emergentes inspiraram sua contribuição para a formulação do conceito de “ecodesenvolvimento” durante a histórica Conferência de Meio Ambiente e Desenvolvimento da ONU, em 1972, em Estocolmo, na Suécia. Dessa ideia, mais tarde, surgiria a noção de “desenvolvimento sustentável”. Sachs, portanto, é um dos pioneiros do ambientalismo moderno.

Ignacy Sachs

Economista, ecologista e diretor do Centro de Pesquisas sobre o Brasil Contemporâneo, em Paris.

Hoje, com 84 anos e mais de 20 livros publicados, o economista francopolonês- brasileiro-indiano conjuga, como poucos, crescimento econômico com justiça social e conservação ambiental. Há décadas Sachs defende a inclusão social e a sustentabilidade, propondo a distribuição de renda para reduzir as injustiças sociais e o desenvolvimento com preservação dos recursos naturais. O seu pragmatismo opõe-se à receita de “zero crescimento econômico” como alternativa para a atual crise da civilização. “Distribuir renda é uma tarefa difícil, em termos políticos. Sem crescimento econômico, é muito mais”, explica. Nesta entrevista, o economista alinha-se entre os que vislumbram a entrada do mundo globalizado no limiar de um novo “período geológico”, o Antropoceno, a era das mudanças planetárias geradas pelos impactos sociais (leia mais na página 44).

Mas também manifesta otimismo com a perspectiva de a sociedade enfrentar suas ameaças. Para tanto, recomenda estreitar a parceria científica e econômica entre duas nações-chave do futuro, o Brasil e a Índia, sob a sombra da filosofia de Gandhi.

Às vésperas da conferência Rio+20, em junho de 2012, sugere que aprendamos o ofício de “geonauta” para planejar o voo da Nave Espacial Terra. “Se sacrificarmos a justiça social no altar da sustentabilidade ambiental, aprofundaremos a distância entre a minoria que ocupa os camarotes de luxo e a maioria que disputa trabalho no sótão”, adverte.

Há um debate na União Internacional das Ciências Geológicas sobre a entrada da humanidade na época Antropoceno. O que o sr. acha?

Entramos no Antropoceno com a Revolução Industrial, mas levamos dois séculos para nos darmos conta disso. Os impactos da atividade humana no planeta exigem de nós uma resposta pró-ativa. Não podemos ser apenas “caniços pensantes que se dobram ao vento”, como diz o filósofo francês Pascal. Precisamos ser geonautas da Nave Terra, sem perder de vista a necessidade de enfrentar simultaneamente as questões de sustentabilidade ambiental e de justiça social. Temos que reduzir a distância abissal entre o sótão e os camarotes, sem destruir a nave a ponto de provocar mudanças climáticas que ameacem o seu voo. Temos a capacidade única de imaginar o futuro que nos impele a elaborar estratégias e planos.

De baixo para cima: A plenária da

Conferência de Estocolmo,

em 1972 e a

Conferência do Meio

Ambiente do Rio, em 1992.

A conferência Rio+20 poderá contribuir para isso?

Vinte anos depois da Rio-92, a Rio+20 deve recolocar a economia mundial sobre o tripé da sustentabilidade, na lógica da gestão simultânea de resultados econômicos, sociais e ambientais. Os países-membros da ONU precisam voltar a planejar. A ideia de o mercado econômico se autorregulamentar não está dando certo. Mas também queremos distância de planejamentos autoritários como o da ex-União Soviética. Trata-se de pensar com o Estado, o empresariado, os trabalhadores e a sociedade civil, democraticamente. Penso que a Rio+20 deveria definir um road map, assim os negociadores voltariam para casa e em 2014 apresentariam propostas concretas sobre três metas: diminuir a pegada ecológica dos países, organizar globalmente o mercado de trabalho e criar um Fundo Internacional de Desenvolvimento Sustentado.

Como conseguir recursos em época de crise econômica aguda?

Sugiro quatro fontes: destinar 1% do PIB dos países ricos para os menos ricos; taxar as emissões de carbono para viabilizar a produção com baixas emissões; criar uma taxa sobre as especulações financeiras; cobrar pedágio sobre o uso de oceanos e ares. Aqueles que usam livremente esses bens comuns podem, perfeitamente, pagar uma taxa. Isso não é utopia.

Mas pressupõe um grau alto de cooperação mundial.

Precisamos articular, sobretudo, a cooperação científica global, difundindo tecnologias por biomas. A Floresta Amazônica deve dialogar com a África e a Indonésia. Os Cerrados devem dialogar com os Cerrados. O Ártico com a Escandinávia. A gestão da água e do solo deve ser integrada. Há correspondência entre as propostas chinesas para diques e açudes e a experiência do Nordeste brasileiro. Um tema da maior importância é a implantação de unidades de produção intensiva hortipisciarbórea ao redor de açudes, lagos, igarapés, rios e áreas protegidas de recife no litoral. A experiência da China medieval nessa área também é riquíssima. Uma unidade de meio hectare pode atender ao consumo de 200 pessoas. Sem ceder à visão otimista, eu digo: “Yes, we can!”

Como criar consenso para tanto?

Uma das tarefas da Rio+20 é criar um arco de cooperação. O que proponho não agrada a muitos setores. Mas a crise econômica abre caminho para uma cooperação capaz de reequilibrar o balanço das forças em favor dos países emergentes. Brasil e Índia têm responsabilidades históricas como locomotivas desse bloco. Há correspondência entre as estruturas tecnológicas dos dois países. Pense na sinergia entre o desenvolvimento da agricultura brasileira e da informática indiana.

Infelizmente há pouca cooperação entre o Brasil e a Índia.

Mas, na prática, os ecossistemas dos dois países cooperam há séculos. O coco baiano veio do Sul da Índia. Em 1942 os fazendeiros de Uberaba importaram do Estado de Gujarat, na Índia, as matrizes de gado zebu que colonizaram o Centro-Oeste e o Norte do Brasil. Isso sem falar no afoxé Filhos de Gandhi! Está na hora de as nossas sociedades de consumo importarem da filosofia gandhiana a pergunta famosa: “O quanto é o suficiente?”.

As economias do Brasil e da Índia estão crescendo, mas os seus impactos ambientais também.

Precisamos crescer com eficiência, e com sobriedade no uso de energia. Há limites para o crescimento, mas podemos dilatá-los com o uso adequado do progresso tecnológico. Se insistirmos só em limitar a economia, sem abrir perspectivas para o progresso, cairemos numa teoria catastrofista na qual não resta nada a fazer a não ser sentar na beira da estrada e chorar. Dilatar os limites naturais não significa crescer de qualquer jeito, trata-se de planejar e de fazer escolhas conscientes.

As propostas da Economia Verde andam nessa direção?

Distribuir renda é uma tarefa muito difícil, em termos políticos. Sem crescimento econômico, é muito mais. Parar de crescer e redistribuir é bem mais complicado do que redistribuir crescendo. É óbvio que os países ricos podem arcar com crescimento zero para que os mais pobres tenham crescimento positivo. Não se trata de crescer por crescer, mas de desenvolvimento planejado e sustentável. Conquistar isso pela negociação diplomática me parece ingenuidade. Não resolveremos a crise ambiental sem criarmos juízo nas políticas nacionais. Sem encarar a questão da distribuição de renda, as propostas da Economia Verde serão apenas mais do mesmo.

Estamos correndo contra o tempo?

Estamos cada vez mais perto dos limites. Na Rio-92, o estado do planeta era bem mais folgado. A urgência de 2012 é muito maior do que a da Conferência de Estocolmo, em 1972. Mas se o impacto ambiental for reduzido, ganharemos folga para aumentar as margens e avançar na questão social.

Japoneses contaminados pela poluição química desembarcam em Estocolmo na Conferência de 1972.