Ao contrário do que alguns estudiosos modernos esperavam, a aproximação das nações promovida pela tecnologia e a globalização, assim como a democratização induzida pela internet, são fatores bem menos influentes das relações internacionais do que as disputas por territórios, os dogmas ideológicos e religiosos, a busca de recursos naturais, como água e petróleo, e as vantagens geográficas estratégicas. Basta olhar em volta.

Nos últimos meses, uma escalada crescente de tensão e conflitos escancou a fragilidade de acordos e leis internacionais. Na Ucrânia, o governo da Rússia reconquistou a Crimeia, uma antiga área estratégica. No Oriente Médio, Israel deslanchou nova operação militar em Gaza, contra o movimento islâmico Hamas. Guerras de motivação étnica e religiosa esfacelam o Iraque, a Síria, a Líbia, a República Central da África e o Sudão do Sul.

No mundo pós-Guerra Fria havia a expectativa de que o nacionalismo e a expansão territorial fossem deixados de lado em favor do desenvolvimento econômico mútuo e da defesa de valores universais. Belas palavras. Na verdade, o que prevalece nas relações entre as nações ainda é a lógica de que cada país (ou grupo miliatar) deve forçar os limites para satisfazer seus próprios interesses até onde pode.

A crise na Ucrânia nos remete diretamente à febre alta da Guerra Fria. “Quando a União Soviética acabou, a Rússia voltou a seu perímetro de segurança, mergulhou em crise, passou por uma reestruturação forte, mas acabou não sendo absorvida como deveria por EUA e União Europeia”, explica Leonardo Valente, doutor em relações internacionais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

O velho sobre o novo

Na recente anexação da Crimeia pela Rússia o que o presidente russo Vladimir Putin fez foi usar a geografia a seu favor, garantindo a posse sobre os portos de água quente da península. Por mais que o Ocidente tente atrair para a sua órbita países da ex-União Soviética, como a Ucrânia, essas nações ainda têm forte identificação étnica com a Rússia, a nação mais poderosa na região. “Em vez de atrair a Rússia, e promover um jogo de colaboração com ela, o Ocidente procurou reduzir a sua esfera de influência. A Rússia é uma grande potência e não pode ser tratada como um país médio. Esse é o erro”, diz Valente.

Alguns estudiosos assinalaram que a crise na Ucrânia induzindo os EUA e a União Europeia a anunciar sanções econômicas contra a Rússia, reativou uma “nova guerra fria”. Mas, embora haja uma confrontação entre os mesmos atores que protagonizaram a polarização geopolítica que marcou o fim da Segunda Guerra Mundial, o contexto é outro.

“Essa é uma análise muito superficial da situação. Na época da Guerra Fria, nos anos 50, 60 e 70, você tinha a ameaça de um conflito nuclear, a luta pela expansão do comunismo, de um lado, e a expansão do capitalismo de outro”, afirma o ex-embaixador Rubens Barbosa.

É improvável que os cenários das grandes guerras do século XX voltem a se repetir. A invenção de poderosas armas de destruição em massa tornou os atores globais mais cautelosos. Desde a Segunda Guerra Mundial, todos sabem que um terceiro conflito em alta escala, envolvendo armamento nuclear, seria uma catástrofe.

Mas acreditar que os poderes da lei e da informação são capazes de domar as forças geográficas é uma ilusão. Ocorre o contrário, a tecnologia exacerba a geografia tornando-a mais preciosa e claustrofóbica, como na disputa pela posse do petróleo no Iraque e na Líbia, pelos portos da Crimeia e o controle sobre a água na Faixa de Gaza.

Os poderes democratizantes da tecnologia também foram superestimados. Durante meses, por exemplo, celebrou-se a Primavera Árabe, no Oriente Médio e norte da África, como o nascimento da democracia em territórios dominados por regimes autoritários fundamentalistas. Havia a forte impressão de que essa conquista só se tornara possível graças à internet.

De fato, a rede foi uma facilitadora do processo, ampliando os meios de expressão, mas os fenômenos que impulsionam os movimentos sociais independem dela. O que se seguiu às manifestações na maioria desses países islâmicos foram crises profundas e sangrentas guerras religiosas e étnicas na Síria, no Iêmen, na Líbia, no Iraque e uma nova ditadura no Egito.

Cisma religioso

Embora apresentem particularidades específicas, os vários conflitos no Oriente Médio têm motivações religiosas e disputas territoriais em comum. A operação militar desfechada por Israel na Faixa de Gaza, em julho, expôs uma das maiores feridas da região. Milhares de civis palestinos foram mortos pelo Exército israelense. Centenas de mísseis foram jogados em Israel, que dispõe de mais proteção tecnológica.

A nação judaica culpa o Hamas, movimento islâmico dominante na Palestina, por usar a população como escudo humano contra os ataques. A desproporcionalidade de forças e de vítimas entre  um lado e outro é chocante. Até o fechamento dessa reportagem, 1.867 palestinos haviam morrido e mais de 7 mil foram feridos. De acordo com a ONU, mais de 80% das vítimas fatais do lado palestino são civis (entre elas, 251 crianças), contra 67 mortos israelenses, dos quais 64 eram soldados.

Desde sua criação em 1948, o Estado israelense tem se expandido na região sobre um território originalmente palestino, sufocando 1,5 milhão de árabes com recursos limitados (como água), em zonas ocupadas ou vivendo em guetos. Boa parte do território vem sendo sistematicamente ocupado por assentamentos de colonos judeus, amparados por Israel, que reivindicam direitos territoriais históricos e religiosos.

Eis a confirmação da atualidade da geopolítica clássica fundada em 1905 pelo sueco Rudolf Kjélle, inspirada na Geografia Política, de 1897, do geógrafo alemão Freidrich Ratzel. Em Israel, o Estado age como organismo que mobiliza a sociedade para o objetivo comum da defesa territorial, garantindo a sua coesão por meio da união do povo ao solo.

Ao contrário do movimento Al Fatah, que negociava termos de paz com Israel, o Hamas não reconhece a existência territorial do Estado sionista. O atual primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, ligado ao partido conservador Likud, por seu lado, também não parece disposto à conciliação. Há um ano, Netanyahu se negava a negociar com Mahmoud Abbas, líder do Fatah, por esse não representar o Hamas.

Mas, em junho, quando Abbas organizou com o Hamas um governo de unidade, os israelenses se sentiram ameaçados e Netanyahu se recusou a dialogar com o governo “associado a um movimento terrorista”. “A tragédia dessa região é que os dois lados se sentem com absoluta razão. Assim não há espaço para a colaboração”, analisa o diplomata brasileiro Marcos Azambuja.

A esperança é que o crescimento da percepção mundial sobre situações insustentáveis como a do Oriente Médio contribua para a resolução do conflito. Mas, seja em que século for, os motivos para deflagrar uma guerra continuam basicamente os mesmos. A propósito, o embaixador Azambuja gosta de lembrar uma frase do ex-presidente norte-americano Harry S. Truman: “O que parece novo é a história que você não leu”.