Acima, fachada do Lar de Nazaré, primeiro albergue familiar de São Paulo.

Maria José não esconde o sorriso. Está apaixonada. Em breve vai mudar com as três filhas para a casa do namorado. Mas a felicidade pela mudança não está restrita aos motivos amorosos. Além do futuro marido, Maria José e as meninas terão novamente um lugar chamado casa. Há pouco mais de um ano, a situação financeira apertou: Maria José Rocha, 39 anos, perdeu o emprego e, sem condições de pagar aluguel, por pouco não dormiu na rua com as crianças.

Chave de um dos apartamentos do albergue, referência concreta do que chamamos lar.

Conseguiu uma vaga no Lar de Nazaré, o primeiro albergue familiar da cidade de São Paulo e, ao longo do último ano, passou a partilhar sua vida, o café da manhã, o almoço, o jantar e a hora da novela com outras 20 famílias em condições bem semelhantes. Privacidade existe apenas no seio da família, quando se refugiam em um pequeno quarto dotado de beliches e banheiro. Quase no final da jornada de abrigada, Maria José sabe o que diz: “Aqui é bom, me deu proteção quando eu precisei, mas não é a casa da gente. Todo mundo precisa de um lar.”

Com a saída de Maria José um quarto ficará vago no Lar de Nazaré. Mas ela mal colocará os pés na rua e outra família já estará com as malas prontas para entrar. As vagas são concorridíssimas, são pelo menos 50 pedidos todos os meses para atender as famílias que não têm onde morar. Atualmente, são 85 pessoas e, mesmo com as inúmeras restrições e regras rígidas de convivência, diante de comida quente na mesa, segurança e roupa limpa, os moradores do lar se consideram pessoas de sorte.

No total, são oito mil vagas em albergues mantidos pelo poder público em toda a cidade de São Paulo e uma população sem-teto que não pára de crescer. No ano passado, a prefeitura da capital paulistana contabilizou 13 mil pessoas sem moradia. Em 2006, eram 12 mil pessoas. Entre os albergados, 66% das pessoas estão em plena idade produtiva, pois têm entre 30 e 55 anos. A maioria diz não trabalhar por não ter emprego e somente 5% têm carteira assinada.

APOSTAR NA especialização tem sido uma estratégia da prefeitura para diversificar o atendimento à população de rua e suprir necessidades específicas. Não há um tempo máximo que se possa ficar no albergue. Há famílias que estão lá há mais de um ano e ainda não têm previsão de quando vão sair. O tempo dentro do albergue é um momento de reflexão, de conhecer limites, o respeito, de compartilhar histórias de vida e de enfrentar preconceitos. Mas também de estabelecer novos vínculos, alimentar a esperança e conhecer o real valor da solidariedade.

O abrigo já estava cheio, mas o caso de Rosana Barbosa, 33 anos, não podia esperar. O marido e ela foram dispensados do emprego na limpeza urbana, a renda acabou, nada de um novo emprego. Para complicar, Rosana estava no meio da quarta gravidez. Ao mesmo tempo em que a barriga arredondava, o dinheiro rareava. O casal se viu diante do maior medo: ficar com os filhos no meio da rua.

Nas brincadeiras das crianças do albergue, o sonho de uma casa e de uma família é tema sempre presente.

Auxiliada por uma entidade religiosa, a família chegou ao albergue quando Rosana já havia entrado no oitavo mês. Mal chegou e pariu Carla. Situações urgentes como esta têm prioridade. “Não é a primeira vez que fico num albergue. Estive numa outra vez por três meses. A diferença agora é que não preciso me separar do meu marido, nem dormir com outras pessoas. É isso o que acontece na maioria dos albergues, mãe e filhos para um lado e o marido para o outro. Aí é fácil o casamento acabar”, conta Rosana, revelando o motivo que levou a prefeitura criar o albergue familiar: manter os laços afetivos.

Carlos, o marido de Rosana, conseguiu um trabalho, entrega fraldas durante o dia e ganha R$ 400 por mês. A quantia ainda não é suficiente para traçar planos de ir embora. A reconstrução da vida está no início, ainda é cedo para partir e Rosana não tem como trabalhar. Precisa não só cuidar da filha recém-nascida, mas também levar e buscar as outras crianças na escola. Eles estudam à tarde e pela manhã. Enquanto ela lava a roupa no último andar do albergue, os três maiores se divertem em brincadeiras entre os varais. Faz calor e as crianças escorregam com o auxílio dos rodos de limpeza pelo chão ensaboado. Carla dorme no carrinho e filhos de outros assistidos se divertem na água.

Se Rosana vai para a lavanderia, leva os quatro filhos. Se vai ver televisão ou para o quarto, também. Essa é uma regra básica do albergue: os filhos precisam estar, o tempo todo, ao lado dos pais. A rigidez que alguns reclamam, afirmam os profissionais do Lar de Nazaré, é a garantia da paz e tranqüilidade do local.

Na vida em albergue, a não ser quando os filhos estão na escola, ninguém fica sozinho. Não importa se o filho tem quatro ou 17 anos, os adolescentes, sem espaço para rebeldia, são obrigados a acompanhar os passos dos pais onde quer que estejam. A lógica é simples: se os pais estão presentes o tempo todo, não há como um acusar o outro de ter começado a briga.

Rosana Barbosa lava as roupas na área de serviço enquanto Carla, de poucos meses, dorme no carrinho.

Se o filho adolescente quer sair, os pais precisam não apenas levar e buscar, mas também assinar uma autorização por escrito. E quando fazem amigos dentro do albergue, os pais já avisam: nada de entrar no quarto do colega, encontros só nas áreas de convivência. “Não acho ruim, não. Se não for assim, vira confusão. A molecada é que reclama mais, mas isso é uma fase, vai passar”, analisa Maria José.

OS PAPÉIS tradicionais do casal se invertem na família de Edvaldo e Jocélia Barbosa. É ele quem lava as roupas ao lado de Maria José e Rosana, enquanto a esposa, que conseguiu um emprego, trabalha fora. Mas bem que Edvaldo gostaria de trabalhar; veio da Bahia para São Paulo para isso. Mas também para fazer uma cirurgia e tentar recuperar a visão que perdeu em um acidente de trabalho.

Edvaldo não conseguiu a cirurgia e agora busca seus direitos. “Me falaram para vir para São Paulo e eu vim. Depois, trouxe a minha mulher e os meus filhos. Disseram que aqui eu ia resolver”, conta o morador. Chegaram assim mesmo, com a roupa do corpo, de uma pequena cidade no sul da Bahia para a gigantesca São Paulo. “A gente vendeu a casinha que tinha lá e o dinheiro aqui foi embora rápido”, lembra Jocélia.

“Eu queria voltar para a Bahia, mas lá não tem assistência, lá não tem trabalho. Se a indenização do Edvaldo sair, pode ser que isso aconteça, mas vamos tentar achar uma vaga para trabalhar de caseiro, cuidar de uma casa em um sítio. Enquanto essa situação não é resolvida, vamos ficando aqui no albergue”, acrescenta ela.

Edvaldo Barbosa pendura a roupa enquanto a esposa sai para trabalhar.

Maria Mohamad, 51 anos, não imaginou que um dia passaria por isso, mas não tem vergonha de contar que, sem ter para onde ir com as suas duas netas, dormiu no banco da Rodoviária do Tietê. A vida seguia tranqüila em Foz do Iguaçu, no Paraná, até que a segunda neta nasceu. Maria já morava com Somaya, 5 anos, e depois nasceu Sohayla, que veio ao mundo com apenas 27 semanas de gestão e paralisia cerebral.

Com histórico de dependência química, a sua filha não tinha condição de cuidar das garotas e deu a função para a mãe. “No começo, conseguimos pagar um hotelzinho, mas o dinheiro acabou e a neném não saía do hospital. Minha vida era lá, dia e noite. Quando fui parar no Tietê, vi a placa de assistência social e pedi ajuda mesmo. Me trouxeram para cá”, recorda uma Maria de olhos bem maquiados e que, mesmo com a vida atravessada por obstáculos, parece não perder o ânimo.

“O que me deixou mais preocupada é que eu não sabia o que ia acontecer com ela (a neta mais nova). Disseram que ela só poderia ficar num lugar com um balão de oxigênio, mas não temos permissão para ter o balão aqui no albergue, acho que é risco de incêndio. E aí, o que eu ia fazer? Mas ela ficou boa e já consegue respirar sozinha. Agora, a luta é conseguir uma vaga em uma escola especial.”

MESMO SABENDO do temperamento difícil da filha mais nova, que deu as netas para a mãe cuidar, Maria acha que todo mundo merece uma segunda ou terceira chances na vida: vai abrir um espaço no quarto apertado pelo berço de Sohayla para a filha morar. Mas dela exigirá um comportamento agora exemplar. As regras para os adultos são ainda mais rígidas. O consumo de álcool, drogas e qualquer tipo de agressão não tem desculpa, significa expulsão imediata da casa.

“Em um tipo de convivência como essa não pode existir tolerância e aberturas”, afirma Maria Regina Souza, coordenadora do Lar de Nazaré. Em um ano e meio de atividades, ela enfrentou apenas um caso de expulsão por agressão. “Isso não tem desculpas, ficamos de olhos abertos. Respeito aqui é fundamental. Pegamos no pé mesmo, se falar palavrão, a gente dá bronca”, assegura a coordenadora, observando que o papel do albergue não é apenas o de receber, mas também o de educar.

Maria Imaculada Fernandes, 68 anos, também não imaginava que um dia seria uma albergada. Trabalhou a vida toda como vendedora, de seguros a artigos variados, numa barraca de camelô na rua 25 de Março. Tudo para garantir a educação do filho único, hoje com 32 anos. Teve sucesso, ele se formou em duas faculdades na USP e fala cinco idiomas, mas foi barrado para o emprego de professor devido à obesidade. Ao mesmo tempo em que o filho se sentiu deprimido e de mãos atadas, Imaculada teve de deixar a casa onde morava. Também foi obrigada a abandonar o trabalho de camelô e já está há um ano no Lar de Nazaré.

Uma das crianças do albergue sonha com uma casa para sua família; fila de carrinhos de bebês que se forma pelos corredores do albergue.

“Já escutei: ‘Nossa, você morando em um albergue, que horror!’ Muita gente tem preconceito, mas o que eu posso fazer? A vida é dura para todo mundo e sou igual a todos eles. Aqui, não devo nada para ninguém. Não tenho dinheiro, mas também não tenho dívidas. Sei que uma hora vamos sair dessa situação. Vou ter vergonha? De forma alguma, tenho sorte de não estar na rua.”

Rosana também sabe disso. Quando o marido foi procurar emprego, recomendaram que ele não contasse que morava em um albergue, mas que fornecesse um endereço de um conhecido. Afinal, ter residência fixa é algo que conta pontos a favor na seleção. “Mas para que mentir, não falam para a gente dizer a verdade sempre?”, questiona Carlos.

“SÃO PELO MENOS 50 PEDIDOS TODOS OS MESES PARA ATENDER FAMÍLIAS QUE NÃO TÊM ONDE MORAR”

Ele disse a verdade e foi justamente por sua honestidade que a pessoa lhe deu a vaga. “Não é fácil perder as coisas, a casa, os móveis e vir para cá, sem saber quando se vai sair. Mas não podemos ter vergonha dessa condição. Na vida tudo é uma lição. Antes de vir para cá, eu bebia e fumava. Depois, comecei a pensar na vida, a freqüentar uma igreja e a ver tudo de uma maneira diferente. Vamos sair uma hora para uma vida melhor.”

Enquanto esse momento não chega, Rosana senta com os filhos para o almoço coletivo e Maria José faz a sua refeição apressada, sem esconder o sorriso de quem em breve não se sentará mais no “mesão”. Nada contra o sabor da comida do Lar de Nazaré; a ansiedade é apenas por saber que logo reunirá apenas a família em torno da mesa para saborear um prato preparado por ela mesma, em seu próprio fogão.