“Pejotização” da classe médica no Brasil nos últimos anos gera insegurança. Profissionais que adoecem ficam sem receber, levando infectados pelo coronavírus a seguirem trabalhando. Falta de intensivistas agrava situação.Para boa parte dos médicos que atuam na linha de frente do combate à covid-19 no Brasil, adoecer não é uma opção. Contratados como Pessoa Jurídica (PJ), ou em regime temporário, os profissionais não são protegidos por garantias em caso de adoecimento ou licença-maternidade. Caso fiquem afastados, não são remunerados pelo período de ausência. A vulnerabilidade trabalhista se soma a um contexto de desgaste físico e psicológico, em uma pandemia que se arrasta por mais de um ano.

A pediatra Larissa Falcão, de 35 anos, não estava trabalhando como médica quando os primeiros casos de covid-19 surgiram no Brasil. Após cursar dois mestrados na Inglaterra e se especializar em desenvolvimento infantil, ela passou a se dedicar à educação. Atuando em Araripina, município do sertão de Pernambuco, Larissa se viu obrigada a novamente vestir o jaleco.

“Senti um dever moral, sobretudo como egressa da universidade pública. Estamos em guerra, e sou uma soldada. Não tive opção”, conta. Ao longo de quase um ano, ela se dividiu entre dois hospitais, um público e um filantrópico, no Piauí e em Pernambuco. Nessas unidades, ficava responsável por 40 a 50 pacientes durante os plantões. Apesar da especialização em pediatria, Larissa atendia pessoas de todas as idades.

Em fevereiro deste ano, ela optou por deixar o trabalho e voltar para Recife, sua cidade natal. Hoje, atua em dois hospitais com vínculo CLT. “Eu não aguentava mais, estava me fazendo mal”, desabafa. “Tinha dias em que eu ia dormir e sonhava com o paciente tendo parada cardíaca, com o som dos monitores. Se alguém chegasse perto de mim, eu já me assustava: 'É para dizer que o paciente piorou?'.”

O impacto psicológico descrito pela médica era agravado pela vulnerabilidade trabalhista. Em ambos os hospitais onde trabalhava, seu contrato era de Pessoa Jurídica. “Se eu pegasse covid, duas semanas fora iriam custar metade do meu salário”, diz. Larissa relembra que colegas seus chegaram a ir trabalhar cientes de que estavam infectados pelo coronavírus para não sofrer cortes salariais.

“A pessoa ocultava os sintomas até quando aguentava. Os colegas falavam: ‘Você está expondo os outros'. E a resposta era: 'Ah, mas tá todo mundo com covid'”, conta.

O afastamento dos médicos infectados implicava também aumento da carga horária para os profissionais encarregados de substituí-los. “Mas todo mundo queria ser escalado para cobrir quem ficasse fora, com medo de pegar covid em seguida e ficar sem receber”, afirma.

Problema nacional

O quadro de vulnerabilidade trabalhista entre os profissionais médicos se observa de forma generalizada nos demais estados brasileiros. Não se trata de uma situação criada pela pandemia. O regime de contratação via PJ se tornou praxe na área médica ao longo dos últimos anos, sobretudo na rede privada. No Sistema Único de Saúde (SUS), essa modalidade tem se massificado pelo aumento do número de hospitais administrados por Organizações Sociais (OSs).

Mesmo na contratação como Pessoa Física, a disseminação de contratos temporários restringe a plena segurança trabalhista dos profissionais. A elevada carga de trabalho provocada pela pandemia intensificou a vulnerabilidade a que estão expostos os médicos sob vínculos empregatícios mais frágeis — sobretudo entre as categorias mais requisitadas, como intensivistas e infectologistas.

Também natural de Pernambuco, o médico infectologista Artur Brito Santos, de 35 anos, atua em dois hospitais da rede particular em São Paulo. Em ambas as instituições, tem contrato como PJ. Até março, ele também trabalhava no hospital universitário da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), onde cursou a residência. Porém, não teve seu contrato renovado após a decisão do governo federal de não enviar verbas às universidades para renovação de vínculos temporários.

“Imagino que, na cabeça deles, a pandemia tivesse acabado”, comenta Artur. Em uma das instituições privadas onde trabalha, foi oferecida aos médicos a possibilidade de receber tratamento no local caso fossem infectados pela covid-19. Elogiando a iniciativa, o infectologista lamenta que o processo de “pejotização” da classe médica tenha sido acompanhado pela retirada de direitos.

“Os contratos via PJ não são impedidos por lei de terem garantias e direitos para os contratados, mas essa se tornou a praxe do mercado no Brasil. Muitas vezes, nem contrato formal de trabalho você tem com a instituição. O normal é que não se tenha licença-maternidade, férias anuais remuneradas, auxílio-doença ou mesmo falta justificada por doença”, diz.

O estresse provocado pela instabilidade no emprego e a “impossibilidade” de adoecer é agravado pela ausência de uma logística para a cobertura de eventuais baixas temporárias na equipe. “Os locais onde há uma escala por regime de CLT normalmente têm um adicional de funcionários folguistas. Nos hospitais onde a contratação se dá integralmente via PJ, isso vira um problema do coordenador daquela área, o que causa um desconforto muito grande dentro da equipe, afirma.

Omissão dos conselhos

Artur lamenta a falta de uma percepção dos profissionais sobre a possibilidade de negociar direitos coletivamente. O infectologista critica, ainda, a postura dos conselhos médicos com relação ao tema. “Sendo bondoso, eles são omissos. Sendo realista, são coniventes, até porque muitos deles têm representantes da parte empresarial da medicina. Não vejo problemas em um conselho diverso, mas a ausência desse debate mostra que a balança de poder interno está desigual”, avalia.

A DW Brasil procurou o Conselho Federal de Medicina para se posicionar sobre a questão, mas não obteve retorno.

Para Larissa Falcão, o processo de fragilização dos vínculos trabalhistas teve início com anuência dos médicos, na expectativa de deixarem de pagar o imposto de renda de 27,5% que incide sobre as faixas salariais mais altas no Brasil. “Hoje, um contrato CLT é raridade, um diamante no deserto. Então, os recém-formados acham que essa realidade é irreversível”, diz.

Durante a pandemia, muitos profissionais com pouca experiência foram contratados para suprir a alta demanda nas UTIs e enfermarias dos hospitais. Uma médica que prefere não se identificar e atua em hospitais do Nordeste afirma ter visto muitas mortes desnecessárias pela falta do devido preparo, somada à negligência das instituições na oferta do treinamento adequado.

“Eu vi gente ser extubada acidentalmente três vezes ao dia, porque a sedação não estava entrando direito. Uma pessoa veio a óbito porque acabou a solução da bomba de adrenalina, que estava apitando e ninguém viu. Foram barbaridades, e até hoje acontecem barbaridades”, relata.

A médica chama atenção para a carência estrutural de intensivistas no Brasil, anterior à pandemia. A elevada carga de trabalho, intensificada pela escassez de especialistas na área, leva a um esgotamento rápido desses profissionais, que por isso costumam ter “vida curta” nas UTIs. Física e emocionalmente desgastada pela atuação na linha de frente, a médica em questão deixou a trincheira há alguns meses.

“Sentia que estava enxugando gelo”, diz. “Eu pensava: se eu tiver que trabalhar aqui o resto da minha vida, prefiro largar a medicina. Não tinha mais forças nem paciência para lidar com o estresse e todas as irregularidades que eu via.” Por fim, a médica ressalta que nem mesmo o vínculo CLT em hospitais públicos tem sido suficiente para proteger os profissionais durante a pandemia.

“Eu vi muita gente ser afastada durante a pandemia por questões de saúde, porque era grupo de risco. O que o hospital fez? No final do ano passado, demitiram todos os profissionais afastados — e olha que eles estavam cobertos pelo INSS”, diz.