Um estudo publicado neste mês pelo periódico The Astrophysical Journal Letters (ApJL) revela a descoberta de uma estrela pertencente ao grupo seletíssimo de estrelas ultrapobres em metais. A estrela, conhecida como SPLUS J2104-0049, foi selecionada para ser observada por espectroscopia de média e alta resolução em dois dos principais telescópios do mundo, o Gemini Sul e o Magellan Clay, ambos localizados no Chile. Uma característica importante da estrela SPLUS J2104-0049 é que ela possui a menor abundância em carbono já medida numa estrela desse tipo, o que desafia os modelos que descrevem atualmente a evolução das primeiras estrelas. A descoberta foi feita a partir dos dados obtidos pelos pesquisadores do projeto internacional S-PLUS, que reúne mais de 100 cientistas entre pesquisadores e estudantes, sediado no Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas (IAG) da USP.

Para os astrônomos, metais são todos os elementos químicos mais pesados do que o hélio. “No campo da arqueologia estelar, acredita-se que estrelas ultrapobres em metais nasceram a partir de nuvens de gás enriquecidas pela primeira geração de estrelas a se formarem no universo. Atualmente, são conhecidas apenas 35 estrelas desse tipo”, explica Vinicius Placco, cientista associado do NOIRLab, com sede em Tucson, Arizona, Estados Unidos, que liderou a pesquisa. Uma característica especial da estrela SPLUS J2104-0049 é que ela possui a menor abundância em carbono já medida para uma estrela ultrapobre em metais. “Isso desafia modelos correntes sobre a evolução das primeiras estrelas”, completa o pesquisador.

A pesquisa de Placco utilizou como base o trabalho de seu aluno de doutorado Devin Whitten, da Universidade de Notre Dame, Estados Unidos, que estimou parâmetros atmosféricos estelares e abundâncias de carbono para mais de 700 mil estrelas a partir do segundo lançamento de dados (DR-2) do S-PLUS (sigla para Levantamento Fotométrico do Universo Local Sul, em inglês). Esta foi também a primeira publicação com estimativas de abundâncias de carbono baseadas em fotometria. Usualmente, esses parâmetros físicos são obtidos com a técnica de espectroscopia, em que a luz é separada como num arco-íris, o que torna impossível conseguir analisar uma quantidade tão grande de estrelas. Os resultados desse trabalho são essenciais para validar as teorias de formação e evolução de galáxias como a Via Láctea e ainda fornecem candidatas interessantes para futuros estudos espectroscópicos.

Mapa do céu do hemisfério sul

O S-PLUS é um projeto que está mapeando o céu austral a partir de Cerro Tololo (Chile) com um telescópio robótico de 86 centímetros (cm) de diâmetro. As imagens para o projeto são obtidas com uma câmera capaz de registrar uma região do céu equivalente a um quadrado onde caberiam, com folga, duas Luas cheias de cada lado. Um dos diferenciais do S-PLUS é o uso de 12 filtros fotométricos do chamado sistema de Javalambre, que se utiliza de sete filtros a mais do que a maior parte dos levantamentos astronômicos. Esses sete filtros adicionais são mais estreitos e estrategicamente selecionados para permitirem o estudo de determinadas características denominadas linhas espectrais, que possibilitam, por exemplo, medir a temperatura e obter a caracterização química de estrelas.

Conjunto de painéis coloridos com imagens da estrela SPLUS 2104-0049, vista através dos 12 filtros do S-PLUS; as linhas que estão indicadas com H (hidrogênio), Ca (cálcio), CH (carbono), Mg (magnésio) são chamadas “linhas em absorção”, que dão uma ideia da quantidade de cada elemento químico na atmosfera da estrela. Foto: Placco et al.

O DR-2 representa a adição de dados e imagens de uma área de 950 graus quadrados, triplicando a área estudada até então disponível no catálogo anterior. As imagens foram obtidas entre 2016 e 2020 e incluem medidas de brilho nas 12 bandas fotométricas de mais de 21 milhões de novos objetos. O banco de dados conta com várias ferramentas para sua exploração. “Os interessados podem obter imagens das regiões de interesse através de uma interface simples e amigável, podendo montar imagens coloridas ao mesmo tempo”, conta Gustavo Schwarz, aluno de Ciência da Computação da Universidade Presbiteriana Mackenzie e aluno de iniciação científica no IAG, que desenvolveu o sistema. “Além disso, disponibilizamos um pacote que permite também baixar diretamente os dados do projeto.”

Técnica especial

Para uma correta interpretação dos dados, foi necessário desenvolver uma técnica especial de calibração para o S-PLUS, aproveitando medidas de calibração de outros projetos. “Calibrações de projetos similares são transformadas ao sistema de 12 filtros utilizado pelo S-PLUS através do uso de modelos estelares sintéticos. Esse tipo de procedimento permite otimizar o tempo de telescópio disponível para observações científicas, reduzindo em cerca de 15% o tempo necessário para completar o projeto”, explica o astrofísico Felipe de Almeida Fernandes. Fernandes, que é pós-doutorando no Departamento de Astronomia do IAG, trabalhou nos esforços de calibração e lidera o artigo submetido ao periódico Monthly Notices of the Royal Astronomical Society (MNRAS) que descreve o lançamento do DR-2 do S-PLUS.

As novas calibrações do DR-2 possibilitaram estimar parâmetros físicos importantes, tais como temperatura e composição química, em especial a quantidade de carbono, para mais de 700 mil estrelas da Via Láctea. Esse esforço gigantesco exigiu também ferramentas de cálculo baseadas em redes neurais artificiais que tiveram que ser “ensinadas” antes. Com o volume de dados obtidos a cada noite pelo S-PLUS, seria impossível para um ser humano analisar e interpretar todas as informações durante uma vida inteira. Para solucionar esse tipo de problema, a análise das imagens e dos dados processados inclui algoritmos de inteligência artificial.

Separar estrelas e galáxias

Um exemplo é a rotina para separar estrelas, galáxias e quasares que foi desenvolvida para fazer uma classificação adequada sem a intervenção humana. Para isso, o programa sofreu um “treinamento” e aprendeu a diferenciar cada tipo de objeto. “Além de incluir os valores de brilho nas cinco bandas largas do sistema de filtros, como é feito usualmente, o programa do S-PLUS também incluiu características morfológicas obtidas pelo próprio projeto, bem como dados do satélite WISE, que observou o céu inteiro no infravermelho”, explica Lilianne Nakazono, estudante de doutorado no Departamento de Astronomia do IAG, que faz parte do grupo que faz a classificação de objetos. De acordo com Lilianne, o índice de acerto do algoritmo supera os 97%, ou seja, a cada mil objetos classificados, apenas 22 têm classificação incorreta.

Clécio De Bom, pesquisador do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), também utiliza inteligência artificial para analisar o volumoso conjunto de dados do S-PLUS, liderando um projeto que aplica modelos de redes neurais profundas para identificar, de maneira automática, a forma das galáxias: espirais e elípticas. O trabalho permite avaliar o uso das 12 cores do S-PLUS para esse tipo de classificação. “Devido à grande quantidade de dados disponíveis, esse tipo de análise visual se torna cada vez mais difícil para ser feito por especialistas humanos”, avalia. “Adicionalmente, diversos modelos de aprendizagem profunda têm se mostrado mais eficientes do que humanos em certas análises visuais. A quantidade e a proporção de diferentes formas de galáxias estão associadas à história de formação delas e das estruturas no universo, como a de aglomerados de galáxias.”

Outro exemplo do uso de inteligência artificial se refere à aprendizagem de máquina para obtenção das distâncias até objetos que estão além da nossa galáxia. Essa técnica permite determinar a distância até o objeto através de uma análise estatística de seu brilho nos filtros usados pelo projeto. “Para o treinamento do algoritmo, foram usados bancos de dados fotométricos como o próprio S-PLUS, GALEX, um satélite destinado a observar no ultravioleta, 2MASS e unWISE, que são projetos de mapeamento do céu inteiro no infravermelho”, explica Erik Vinícius de Lima, doutorando no IAG que participa do estudo.

Projeto internacional

O projeto S-PLUS é um projeto internacional com participação de pesquisadores de países como Brasil, Argentina, Chile, EUA e Espanha, reunindo mais de 100 cientistas entre pesquisadores e estudantes. O S-PLUS está sediado no IAG, em São Paulo, e tem como pesquisadora principal Cláudia Mendes de Oliveira, professora da USP. Roderik Overzier, pesquisador titular do Observatório Nacional, é cientista do projeto.

O S-PLUS foi fundado pela USP, Observatório Nacional, Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Universidade Federal de Sergipe (UFS) e Universidad de La Serena (Chile), com importantes contribuições do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e Centro de Estudios de Física del Cosmos de Aragón (CEFCA), e financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj) e Financiadora de Estudos e Projetos (Finep).

A participação como membro do projeto S-PLUS (www.splus.iag.usp.br) é aberta a todos os cientistas de instituições brasileiras. Vários pesquisadores brasileiros também fazem parte das colaborações J-PLUS (www.j-plus.es) e J-PAS (www.j-pas.org), estes no hemisfério norte, cujos dados, juntamente com o S-PLUS, cobrirão quase metade de toda a esfera celeste.

Infográfico sobre o DR-2 do S-PLUS. Foto: Felipe de Almeida Fernandes/S-PLUS

(Com informações da Assessoria de Comunicação do IAG)

Mais informações: e-mail claudia.oliveira@iag.usp.br, com a professora Cláudia Mendes de Oliveira