Não é só a Copa do Mundo de Futebol, na África do Sul, em 2010, que tem feito o mundo voltar os olhos para o Continente Negro. Depois de séculos de exploração e de esquecimento, a África volta a estar atrelada a expressões como crescimento econômico, investimento, desenvolvimento, e a ser alvo da atenção de países como China, Estados Unidos e até mesmo do Brasil.

Essa nova onda da economia global começa a transformar a realidade do continente mais pobre do planeta, formado por 55 países e assolado por um grande número de conflitos armados e a presença desastrosa da Aids – basta dizer que 2/3 dos portadores do vírus HIV do mundo vivem aí, e que a doença já vitimou mais de 20 milhões de africanos.

Nas Ilhas Maurício, a operária trabalha em uma das salinas, uma das principais atividades econômicas do país. À direita, uma usina de açúcar que funciona às margens do Rio Nilo, no Egito. Abaixo, o cartaz de uma campanha de combate à Aids. No Continente Negro vivem 2/3 dos portadores do vírus do HIV do mundo.

A diferença é que dessa vez tal expectativa se traduz em números mais consistentes e positivos do que em outras épocas: Angola, por exemplo, cresceu 19,8% em 2007. O Sudão, 11%; e a Mauritânia, 10,5%. Para efeito de comparação, temos a China, grande fenômeno mundial de crescimento econômico, com 11% nesse mesmo ano. O Brasil segue bem abaixo com uma taxa de apenas 4,4%, o que foi, por incrível que pareça, até comemorado pelo governo.

PARA O ESPECIALISTA em Relações Internacionais Pio Penna Filho, um dos principais fatores dessa retomada na economia africana é a alta valorização do petróleo no mundo. Segundo ele, “países que possuem jazidas em seu território têm conseguido maior poder de negociação com gigantes como a China, que necessita desse combustível para alavancar seu próprio crescimento”.

Nesse cenário, a Nigéria, maior produtor do continente, e Angola saíram na frente. Angola, por exemplo, recebeu recentemente da China um empréstimo de US$ 2 bilhões para aplicação na reconstrução do país, injetados em ferrovias, estradas e telecomunicações em troca da concessão para explorar petróleo em suas águas.

Filho é que a situação política desses países tornou-se mais tranqüila a partir da década de 1990, com vários acordos de paz e a eleição de governos democráticos. “Em muitas nações africanas os conflitos se apaziguaram, as guerras interétnicas estão diminuindo, o que tem trazido mais estabilidade para os investidores e, conseqüentemente, mais dinheiro”, conclui.

Em muitas nações africanas os conflitos e as guerras interétnicas estão DIMINUINDO, o que proporciona mais estabilidade para os investidores e DINHEIRO

No entanto, essa não é a situação geral. Países como o Zimbábue, a República do Congo e a Somália ainda se encontram em situação calamitosa, envoltos em guerras civis e muita miséria. Na Somália, por exemplo, mais de 1,5 milhão de pessoas dependem da ajuda internacional e, segundo a ONU, o país passa por sua maior crise humanitária desde que eclodiu a guerra civil em 1992.

Esse cenário heterogêneo faz com que muitos analistas olhem com desconfiança para os índices apresentados. Para o historiador Elias de Souza Júnior, da Universidade Unipalmares, embora bons ventos soprem na África, ainda é cedo para dizer que as melhorias vão chegar a todos os países. “É preciso entender que o atraso da África hoje tem razões históricas, pois ela sempre foi vista apenas como estoque de matéria-prima e de capital humano. E que as guerras existentes hoje foram incitadas pelos próprios colonizadores”, diz o historiador. Segundo ele, podemos estar diante de mais uma partilha das riquezas naturais do continente, sem que aconteçam mudanças estruturais perenes na maioria dos países.

Penna Filho concorda e acrescenta que a África “pode representar hoje uma nova fronteira para expansão do capitalismo, já que, além de riquezas naturais, alguns países possuem uma grande massa de novos consumidores em potencial”. Nesse sentido, os números também impressionam: o Continente Africano é o segundo mais populoso da Terra, ficando apenas atrás da Ásia, e possui hoje em torno de 900 milhões de habitantes, cerca de um sétimo da população mundial.

Acompanhando os novos fatos relacionados à África, o que se percebe é que os participantes desse jogo já deram os seus primeiros passos. Desde 2000, a China vem derrubando tarifas de importação de seus produtos para alguns países africanos, além de ter perdoado cerca de US$ 1 bilhão de dívidas.

EM 2006, o comércio entre China e África chegou a US$ 55,5 bilhões, com investimentos de US$ 6,6 bilhões. No início de 2007, o próprio presidente da China, Hu Jintao, realizou uma importante viagem por oito países africanos e fechou dezenas de acordos, alguns deles criticados por seus vieses estritamente econômicos, sem levar em consideração questões humanitárias e éticas. De qualquer maneira, a China é hoje seu maior investidor e vem marcando território nesse jogo econômico e político.

No sentido horário, uma tecelã trabalha em uma cooperativa da aldeia de Targha, no Marrocos; uma mina de diamante em Serra Leoa. Ao lado dos diamantes, a mineração de alumínio e cobre é mola propulsora da economia do Continente Negro; e, na África da Sul, o fim do apartheid foi o motor de desenvolvimento.

Do outro lado do mundo, o Brasil também dá suas cartadas. No final de 2007, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva fez sua sétima viagem ao continente, a primeira no segundo mandato. Lula esteve em 19 dos 55 países africanos, alguns deles mais de uma vez, apontando que os números dessa aproximação são bastante significativos: as exportações brasileiras para a África mais do que triplicaram desde 2003. Passaram de US$ 2,4 bilhões nesse ano para US$ 7,5 bilhões em 2006, sendo que atualmente a África representa 5,39% do total das exportações brasileiras.

“O Brasil já tem uma tradição de colaboração com a África. Embora os interesses sejam comerciais, e não podemos ser ingênuos nesse sentido, também temos uma política que vem lá dos anos 70 e que inclui importantes intercâmbios na área de saúde e tecnologia, muito vantajosos para eles”, explica Penna Filho.

No caso dos Estados Unidos, a conversa é diferente. Ao que parece, a China chegou na frente dos norteamericanos, que estavam (e ainda estão) mais focados no Oriente Médio. Nas últimas décadas se descuidaram da América Latina e da África e pretendem recuperar o tempo perdido. Um relatório publicado em 2001 pelo Conselho Nacional de Inteligência dos Estados Unidos já previa que a quardos Estados Unidos viriam da África. Em 2006, outro relatório, intitulado More Than Humanitarism (Mais que Humanitarismo), já prevê “alargamento” nas relações entre os dois países. Em alguns casos, a estratégia norteamericana se apóia também na questão do terrorismo. É importante lembrar que alguns países africanos, como Argélia, Sudão e Nigéria, têm o islamismo como principal religião.

Mas nem tudo pode ser visto de forma negativa. Em meio a esse jogo de interesses, Penna Filho também chama a atenção para uma nova mentalidade que vem se instaurando na África nas últimas décadas, com um movimento chamado Renascimento Africano. “Esse movimento traz uma nova visão nas relações políticas do continente, que não se limita a botar a culpa no colonialismo, na exploração que sofreram, mas também aposta nos próprios africanos, em sua própria cultura como solução para os problemas”, diz o especialista.

Ao que tudo indica, o próximo passo para a África é saber aproveitar as oportunidades que podem surgir com essa nova guinada da economia global. E tomar cuidado para não perder o bonde da história, um bonde que, lamentavelmente, nunca passou perto desse território tão explorado.

À esquerda, uma indústria de fosfato de Gana. No alto, da esquerda para a direita, o porto da cidade do Cabo; o tradicional se integra à modernidade na África do Sul: uma jovem zulu aprende a usar o computador; e Ellen Johnson-Sirleaf, presidente da Libéria, primeira mulher eleita chefe de Estado de um país africano.

PARTILHA SANGRENTA

Pode soar como algo impensável nos dias de hoje, mas, em 1885, 14 países se uniram em Berlim, na Alemanha, para dividir o Continente Africano e decidir quem ficava com qual parte. Entre eles estavam Inglaterra, Alemanha, França, Bélgica, Itália, Espanha e Portugal, que já haviam “conquistado” praticamente 90% da África, e agora iriam criar fronteiras para que cada um pudesse explorá-la como bem entendesse.

França e Inglaterra ficaram com a maior parte do “bolo”, incluindo Argélia, Marrocos, Tunísia, Mali, Níger, Mauritânia e o Gabão (que eram denominados de África Francesa do Oeste). Os ingleses ficaram com Nigéria, Egito, África do Sul, Quênia, Rodésia (atual Zimbábue). Os portugueses ficaram com Angola e Moçambique. Os alemães, com o que é hoje a Namíbia, a Tanzânia e Camarões. Já os belgas ficaram com o Congo.

A unilateralidade da decisão não levou em consideração as etnias e nações distintas, presentes no continente original. Aliás, até os dias de hoje se incorre no erro de pensar o Continente Africano como um grande país, sem levar em consideração a diversidade cultural existente ali.

As nações ditas civilizadas recorreram a simples convenções de latitudes e longitudes, e traçaram linhas para dividir os africanos aleatoriamente, sem considerar que havia ali, nessa época, algo em torno de mil grupos étnicos diferentes. A partir daí, a ocupação se deu com a força das armas de fogo. Os europeus aproveitavam-se da rivalidade entre grupos diferentes e apoiavam um dos lados, patrocinando o extermínio do outro, numa estratégia (se é que se pode chamar assim) que levou a um verdadeiro genocídio.

Esse método sanguinário deixou marcas que perduraram até os dias de hoje. Um exemplo recente é a história dos tutsis e hutus, em Ruanda, que foram divididos pelos belgas como “superiores” e “inferiores”, e incitados a uma atroz guerra civil pelo poder. Aproximadamente um milhão de pessoas morreram no conflito, como é retratado no filme Hotel Ruanda, de 2004, do diretor Terry George.

Mas a violência não pára por aí: quando os países africanos começaram a obter sua independência (já não interessavam para as metrópoles na nova estrutura econômica mundial), os colonizadores começaram a transferir o poder político para as elites nativas, que instalaram regimes autoritários. Isso gerou dezenas (talvez centenas) de guerras civis, instigadas pelo poder econômico presente nos diamantes e no petróleo, abundantes na região.

Após a Segunda Guerra Mundial, foi o clima de Guerra Fria que colocou mais pólvora na África. Estados Unidos e União Soviética passaram a disputar influência nos territórios. Os norte-americanos desenvolveram uma política de apoio a regimes racistas e atuavam na desestabilização econômica de alguns Estados africanos independentes.

Por outro lado, alguns governos africanos se aproximaram da União Soviética e de Cuba, socialistas, para obter apoio diplomático e militar contra os inimigos que eram apoiados pelos estadunidenses. Esse panorama se arrastou até a queda do bloco socialista, mas deixou como marcas a pobreza e o atraso em relação às varias revoluções tecnológicas do último século, como a industrial e a digital, já em meados do século 20. O resultado disso tudo é uma África totalmente na berlinda da história mundial, amargando uma situação que não foi prevista naquela reunião cruel de 1885.