Todo mundo aprende nos primeiros anos de escola como funciona o ciclo da água. A chuva cai, parte escoa superficialmente e parte se infiltra e abastece o lençol freático, que por sua vez alimenta nascentes, rios e mananciais, de onde evapora, dando início a um novo ciclo. Mas hoje não é bem assim que ocorre em muitas re­giões do Brasil e do mundo. Nas últimas décadas, o desmatamento de encostas e das matas ciliares, a poluição e o uso inadequado dos solos têm contribuído para degradar e colocar em risco as nascentes e mananciais, diminuindo a quantidade e a qualidade da água que abastece a população, principalmente nas grandes cidades. Proteger os sistemas produtores e fornecedores do chamado “líquido precioso” ainda intactos e recuperar aqueles já degradados não é tarefa simples e requer a superação de muitos desafios. Mas é possível.

A dimensão da degradação pode ser medida em números. Um amplo levantamento feito pela Agência Nacional de Águas (ANA), que resultou no Atlas Brasil de Abastecimento Urbano, mostra que, em 2015, dos 5.565 municípios brasileiros estudados, de um total de 5.570, menos da metade, ou 2.506, tinham abastecimento satisfatório. Os outros pouco mais de 3.000 precisavam de novos investimentos, dos quais 2.551 para ampliação do sistema existente e 472 para o aproveitamento de novos mananciais.

Rio Jaguari, fornecedor de água para o Sistema Cantareira: preservado em Extrema (Foto: iStockphotos)

Conhecimentos e tecnologias para resolver ou minimizar esses problemas, com a proteção e recuperação de áreas de nascentes e mananciais, já existem. O mestre em ecologia Sérgio Luís de Carvalho, do Departamento de Biologia e Zootecnia da Faculdade de Engenharia de Ilha Solteira, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), apresenta uma série de medidas concretas para isso, principalmente nas regiões rurais – algumas também se aplicam a zonas urbanas. A primeira delas é a conservação do solo. “Plantio em curva de nível é uma técnica de conservação do solo e da água, excelente para o cultivo em morros e terrenos acidentados”, explica. “Nesse tipo de plantio, cada linha de plantas forma uma barreira, diminuindo a velocidade da enxurrada.”

Endurecimento

Evitar queimadas é outra medida que protege o solo, pois se ele perder sua cobertura vegetal, poderá ficar endurecido pela ação das gotas da chuva, o que irá reduzir a velocidade e a quantidade de infiltração da água, além de favorecer as enxurradas. “Plantio em consórcio, intercalando faixas com plantas de crescimento denso com outras de vegetação que oferece menor proteção ao solo, também deve ser adotado”, recomenda Carvalho. “As faixas com plantas de crescimento denso têm a função de amortecer a velocidade das águas da enxurrada, permitindo uma infiltração maior no solo, que irá abastecer os lençóis freáticos.”

Queimadas prejudicam o solo ao endurecê-lo (Foto: iStockphotos)

No caso das nascentes, entre as soluções, que valem tanto para o campo como para as cidades, está a construção de cercas, fechando a área, num raio de 30 a 50 metros a partir do olho d’água, para evitar a entrada de pessoas e animais e, por consequência, o pisoteio e a compactação do solo. A área em torno do cercado deve ser mantida limpa, para evitar que o fogo atinja a área em caso de incêndio. A certa distância do cercado, pode-se manter ou recuperar a vegetação em torno. “Ela funciona como barreira viva na contenção da água proveniente das enxurradas”, explica Carvalho. “Devem-se priorizar espécies nativas da região.”

Há alguns exemplos bem-sucedidos de recomposição de mata ciliar que seguiram esses princípios. Um deles é de Itaipu, que desenvolve o maior programa de reflorestamento do mundo feito por uma hidrelétrica. Desde 1979, já foram plantadas mais de 44 milhões de mudas nas margens brasileira e paraguaia do reservatório. Além de servir de hábitat para animais e plantas, a mata ciliar reduz a erosão, o assoreamento e a poluição dos cursos d’água e mananciais, pois é uma barreira contra as enxurradas e o vento.

Serviços pagos

Muitas dessas medidas de recuperação e proteção de áreas de nascentes e mananciais podem ser executadas pelos próprios proprietários das terras onde elas se localizam, em troca de uma compensação financeira. Já existe um instrumento para isso. Trata-se do pagamento por serviços ambientais (PSA), que vem se popularizando e já é adotado em alguns municípios do Brasil. Um exemplo é Extrema, na Serra da Mantiqueira, no sul de Minas Gerais. Ali ficam as nascentes do rio Jaguari, que corre na divisa entre São Paulo e Minas e é o principal alimentador do Sistema Cantareira, fornecendo 67% do total da água que abastece a cidade de São Paulo.

Para recuperar as nascentes e áreas degradadas, a prefeitura da cidade criou, em 2005, por meio da Lei Municipal nº 2.100, o Projeto Conservador das Águas, pioneiro no Brasil. O principal objetivo do programa é manter a qualidade dos mananciais de Extrema e promover a adequação ambiental das propriedades rurais. A iniciativa ainda tem como objetivo aumentar a cobertura florestal nas sub-bacias hidrográficas e implantar microcorredores ecológicos, além de reduzir os níveis de poluição difusa rural, provocada pelos processos de sedimentação e falta de saneamento ambiental.

Já o cultivo em terraços ajuda por diminuir a velocidade da enxurrada (Foto: iStockphotos)

Para a sua execução, o projeto conta com a ajuda de parceiros, como os governos de Minas Gerais e federal, por meio da ANA, organizações não governamentais (ONGs) e empresas privadas. Com isso, a prefeitura pode pagar aos proprietários R$ 279,00 mensais (valores de 2017) por hectare de pastagem que eles deixam de utilizar. É um instrumento que beneficia o proprietário da terra, o qual recebe um pagamento para proteger seu terreno e os serviços ambientais que ele presta, como fornecer água para os mananciais.

Desde que o Conservador das Águas foi criado, foram investidos R$ 4,46 milhões, recompensando 224 propriedades rurais pelos serviços de preservação. Já foram plantados 1,3 milhão de árvores nativas e protegidos 6.378 hectares. Além disso, foram construídos 264.335 metros de cercas e implantadas 1.000 bacias de contenção de águas pluviais e 40.000 metros de terraços.

Requalificação urbana

Apesar desses bons resultados, o PSA não é alternativa para todas as situações. Casos como a ocupação irregular de áreas de mananciais em grandes cidades requerem outra solução. É o que ocorre nas regiões das represas Guarapiranga e Billings, em São Paulo, onde a população chega a 1,6 milhão de habitantes. Retirar todo mundo e restaurar a vegetação nativa e as matas ciliares não é uma opção viável.

Para a engenheira civil Mônica Ferreira do Amaral Porto, professora titular do Departamento de Engenharia Hidráulica e Ambiental da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP), é preciso encontrar outra saída. Uma delas é fazer um projeto de requalificação urbana, que reordene a ocupação. O primeiro passo é retirar pelo menos os moradores mais próximos dos lagos. “Depois, deve-se criar uma área urbana mais organizada, com ruas em que possa entrar caminhão de lixo e passar rede coletora de esgoto”, diz. “Com isso, evita-se que sejam jogados detritos nos reservatórios e é possível proteger os mananciais, ainda que a região esteja ocupada.”

Para Marussia Whately, consultora na área de recursos hídricos e coordenadora da Aliança pela Água (coalizão de organizações da sociedade que propõe soluções para a crise da água em São Paulo), é preciso ir além de todas essas medidas de proteção e recuperação de nascentes e mananciais, mudando a maneira de administrar a questão do abastecimento. “Na capital paulista, e no Brasil em geral, temos o modelo de gestão de oferta”, explica. “Pega-se a demanda e busca-se água onde der. O correto, no entanto, é trabalhar a gestão de demanda. É melhor verificar que tal cidade precisa de determinada quantidade de água; dep ois, é preciso gerir essa demanda, em vez de buscar mais água. Mas a política do Brasil é derrubar floresta, fazer hidrelétrica, no espírito de ‘está tudo aí para a gente usar’. E não é bem assim.”