Desde que o uso combinado de medicações antirretrovirais foi utilizado com sucesso no tratamento da Aids, a partir de 1996, ela se transformou numa doença crônica controlada. Hoje, quem toma o coquetel tem a perspectiva de uma longa vida pela frente. Graças à evolução, a Aids deixou de ser motivo de grande preocupação especialmente entre os jovens, que tendem a minimizar as consequências de se tornarem soropositivos para o HIV. Muitos nem sempre usam preservativos durante o namoro, festas e baladas, e acabam se infectando.

O risco de banalização da doença acabou diluindo o medo da contaminação. Por não ser curável, mas tratável, a Aids vem sendo comparada a males como diabetes e hipertensão. Bastaria tomar os medicamentos e levar uma vida normal. Mas não é bem assim. Os remédios contra a Aids podem causar sérios efeitos colaterais – enjoo, tontura, diarreia, hepatite e surdez, sem esquecer que os portadores do vírus HIV, causador da doença, ainda são vítimas de preconceito e discriminação.

“Para ter saúde e levar uma vida normal, as pessoasvivendo com o vírus precisarão ter disciplina e tomar os remédios diariamente, na dose certa, no horário correto, seguindo dieta ou jejum, por tempo indeterminado. Não é uma tarefa simples. Muitos têm dificuldades, o que acaba comprometendo o tratamento”, diz Paula Sousa, da área de prevenção do Centro de Referência e Treinamento de Doenças Sexualmente Transmissíveis, da Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo.

Com o objetivo de incentivar e orientar os doentes a não desistir e tomar os medicamentos corretamente, o Centro de Referência criou, em 1996, o Grupo de Adesão, modelo hoje presente em praticamente todos os serviços de atendimento aos portadores de HIV/Aids e também em ONGs. Paula Sousa enfatiza a importância do diagnóstico precoce da doença, pois, quanto antes o paciente souber, maiores serão as possibilidades de um tratamento ser bem-sucedido. Em 2004, o Ministério da Saúde, por meio do Programa Nacional DST/Aids, lançou a Campanha “Fique Sabendo”, com o objetivo deer a realizar testes rápidos para diagnóstico do HIV, cujo resultado é entregue em uma hora.

Além do desamparo, o portador de HIV é vítima de estigma e preconceito.

Um aspecto fundamental é a prevenção contra a contaminação. A doutora Claudia Barros, médica infectologista e coordenadora do Programa Municipal de Doenças Sexualmente Transmissíveis e Aids, de Campinas, explica que o uso de antirretrovirais devolve aos portadores de HIV o direito de viver bem, por longos anos. Como toda droga, porém, esses remédios causam algumas reações no organismo, como a lipodistrofia – a deposição irregular de gordura no organismo, com efeito estético indesejável.

Outra consequência são as altas taxas de colesterol e triglicérides no sangue, até mesmo em jovens que podem predispor a enfartes e acidentes vasculares cerebrais, e acúmulo de gordura no fígado, com risco de cirrose hepática. Por isso, o ideal é que a pessoa não venha a se infectar e tenha de passar por todo esse processo de adaptação a medicamentos. Daí a importância de campanhas preventivas, pois a prevenção ainda é o melhor remédio. “Para que produza resultados, a informação deve provocar a transformação de hábitos e atitudes, levando à reflexão e a questionamentos”, insiste a especialista.

“Nossas campanhas são muito tímidas e até infantilizadas.”

Sergio Ferreira Jr.

Falta de informação

Sergio Ferreira Jr. é dentista de formação, mestre em saúde coletiva e coordenador do Programa Municipal DST/ Aids, de Hortolândia (SP). Segundo ele, o jovem que começa a tomar medicamentos aos 20 anos tem de saber como estará aos 50. “Não se fala o que acontece com o organismo quando se toma o remedinho para o resto da vida, e isso deveria ser ventilado”, insiste. Entre as consequências estão: hepatite medicamentosa, surdez e outros efeitos colaterais em estudo. “Nossas campanhas preventivas são muito tímidas e até infantilizadas se comparadas com as de outros países.”

“Os jovens de hoje minimizam a gravidade da doença.”

Luiz Grande

Para Ferreira Jr., esses assuntos deveriam ser discutidos diariamente nas escolas, mas os professores não possuem capacitação sobre o tema, além de ter sobrecarga de trabalho. Por isso, o DST/Aids de Hortolândia, seguindo o exemplo de outras cidades do país, implantou o projeto Saúde e Prevenção nas Escolas, fruto de uma parceria entre os ministérios da Saúde e da Educação para capacitar professores e alunos a lidar com a questão, tornando-os multiplicadores de informação.

Prejulgamento

A Aids pode ser comparada a outras doenças, mas a diferença é o peso do estigma e preconceito. Pelo fato de a contaminação acontecer, na maioria das vezes, pela relação sexual, há um envolvimento moral. Ninguém é questionado quando se diz diabético. Mas quando alguém se declara portador do vírus, é automaticamente julgado e condenado. Isso porque, aos olhos alheios, a pessoa deve ter feito alguma coisa “errada”: ou foi promíscua, ou é homossexual, ou traiu o parceiro, ou usa drogas.

DUZENTOS MIL INFECTADOS

Em 1o de dezembro passado, comemorou

se o Dia Mundial da Luta

Contra a Aids, instituído pela Assembleia

Mundial de Saúde em

1987. Desde que o primeiro caso

foi notificado no Brasil, em 1982,

foram 30 anos de desafios, luta e

conquistas. Desde 1996 todo cidadão

brasileiro passou a ter direito,

por lei, ao recebimento de medicação

gratuita para o tratamento da

doença.

Graças à medida, o Brasil passou a ter um dos melhores programas de assistência ao portador do vírus HIV, tido como referência mundial. Segundo o Ministério da Saúde, cerca de 200 mil pessoas recebem regularmente os remédios para tratar-se de Aids. Isso significa US$ 427 milhões por ano de despesas com cuidados aos infectados.

Apesar do tratamento, a Aids ainda mata: houve 12 mil óbitos em 2010. O mal continua avançando, crescendo nos dois extremos da população, entre os jovens e os idosos. Homens com mais de 60 anos passaram a ter prática sexual constante, graças a medicamentos que estimulam a ereção. No entanto, essa geração não está acostumada ao uso de preservativos. Além disso, muitos não se preocupam com uma possível infecção, levando em conta que, quando a doença vier a se manifestar, já estarão em idade avançada.

Os jovens, por sua vez, cresceram ouvindo falar da Aids e já não tomam as devidas precauções. Nesse caso, os números mostram que a incidência é maior entre moças e rapazes gays.

O medo de se expor a esse julgamento faz com que muitas pessoas evitem fazer o exame para saber se são soropositivas e sintam receio de se declarar portadoras da doença para a família, os amigos e os empregadores ou, pior ainda, deixem de buscar tratamento. O próprio ministro da Saúde, Alexandre Padilha, fez em 2011 um discurso na Organização das Nações Unidas, onde colocou o combate ao preconceito e a atenção às populações vulneráveis como pontos fundamentais para o avanço da política global de enfrentamento da epidemia. Segundo ele, a discriminação é um dos entraves para o acesso ao tratamento da doença.

Foi justamente a discriminação que levou um agente de saúde do interior de São Paulo a se engajar na luta contra o preconceito. Luiz Grande trabalha há 11 anos no Centro de Testagem e Aconselhamento de Ribeirão Pires, onde atende portadores do vírus da Aids. Graças à formação como cantor e radialista, desde 2005 passou a fazer shows em que fala sobre a prevenção da Aids e canta músicas de sua autoria (reunidas no CD Pra Fazer o Amor Valer) Nos últimos seis anos, Grande já fez 211 shows e sua campanha foi expandida para o combate à violência contra a mulher e outros tipos de preconceitos.

“Os adolescentes de hoje não chegaram a ver pacientes de Aids em fase terminal, como os jovens da década de 1990”, explica. “Assim, acabam criando uma ideia mistificada de que a doença não é tão grave quanto se fala. Mas eles precisam saber que os medicamentos produzem efeitos colaterais e que a discriminação contra os portadores ainda é muito grande.”

Discriminação

Em virtude da existência do tratamento, as pessoas tendem a minimizar as consequências de uma infecção pelo HIV. “Os jovens não têm noção do impacto de ser um portador do vírus”, assegura Lucas Soler, presidente da Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV-Aids. “Ainda existe discriminação nas empresas e até mesmo alguns concursos públicos já barraram a candidatura de pessoas portadoras.”

De acordo com Soler, deveria haver, por partedo governo e da sociedade civil, um trabalho efetivo para conscientizar as empresas de que os portadores podem exercer suas funções normalmente, desde que tenham acompanhamento e tratamento adequado. “O jovem tem de entender que vai concorrer no mercado de trabalho com outros não portadores que têm mais oportunidades. Ainda existe muita desinformação. Quando um portador do vírus HIV dá um espirro, as pessoas saem correndo”, afirma.

Além disso, o especialista critica a falta ocasional de medicamentos e médicos nos centros de assistência. “O governo diz que os adolescentes se previnem, mas um enorme número de meninas grávidas desmente essa afirmação. Antes havia um estardalhaço, agora a Aids avança silenciosamente”, insiste Soler.

A seu ver, a solução é a formação de redes nacionais para que as entidades possam trabalhar em parceria levando informações aonde precisam chegar. Com informação, a tendência é de que a contaminação e o preconceito venham a diminuir.

Fábrica moçambicana de drogas anti-Aids construída com ajuda brasileira.

EVOLUÇÃO GLOBAL

 

Desde que foi descoberta, a pandemia de Aids já infectou mais de 60 milhões de pessoas e gerou 30 milhões de óbitos. Mesmo com uma redução de quase 20% nas novas infecções nos últimos dez anos, em regiões como a África Subsaariana estima-se que existam 22 milhões de pessoas vivendo com HIV, cerca de 5% do total de habitantes, segundo dados do Ministério da Saúde, analisados pelo Instituto Orbis.

No Brasil, desde o primeiro caso, em 1982, até a última atualização, em junho de 2010, foram contabilizados 592.914 casos de infecção pelo vírus HIV. Destes, 38.538

casos foram notificados em 2009. A doença aumentou progressivamente no país até 2002, depois apresentou uma redução gradual até 2007, mas nos últimos anos voltou a crescer, e em 2009 houve aumento de 2,9% em relação ao ano anterior. O risco está subindo.

Há uma taxa de incidência alta entre pessoas com idades de 35 a 39 anos; 58 casos para homens e 36 casos para mulheres (a cada 100 mil habitantes). Ao longo do tempo, as taxas de incidência entre pessoas mais velhas aumentaram consideravelmente, chegando a dobrar, na última década, na faixa acima dos 60 anos.

Cuidados específicos

Quem pode falar com propriedade sobre o drama dos adolescentes com HIV são os próprios jovens. José Rayan, morador de Manaus, de 19 anos, é coordenador da Rede Nacional de Adolescentes e Jovens Vivendo com HIVAids, que reúne pessoas de 12 a 29 anos e é reconhecida pelo Ministério da Saúde e por agências da ONU.

Ele mesmo é portador, tendo nascido com o vírus, contaminado pela mãe na chamada transmissão vertical. “Houve uma mudança no comportamento da sociedade, mas ainda existe muito preconceito, seja na escola, seja no trabalho”, afirma Rayan. “Por isso, temos um grupo de acolhimento que funciona ligado ao serviço de saúde do Estado. Quando o jovem recebe o diagnóstico, é encaminhado ao nosso grupo para receber ajuda e trocar experiências com outros portadores”, explica.

“O jovem contaminado precisa de cuidados especiais.”

José Rayan

Rayan conta que muita coisa muda na vida do adolescente quando se torna soropositivo, e alguns chegam a não ser mais aceitos pela família e os amigos. O resultado é que muitos acabam internalizando esses problemas e desistem do tratamento. “Não basta só tomar o medicamento. O jovem precisa de outros cuidados especiais, pois está numa fase da vida em que necessita de apoio, orientação e convívio social. Se ele se sentir excluído e marginalizado, não vai ter estímulo para aderir ao tratamento”, esclarece.