Passamos a vida tentando entender o porquê de tudo para enxergar mais além e obter mais respostas.

Luc Ferry foi um ministro da Educação controvertido na França, de 2002 a 2004, durante o governo de Nicolas Sarkozy, com uma experiência marcada pela promulgação da lei que regula o uso de sinais religiosos ostentatórios nas escolas (como a burca muçulmana), mais conhecida como Lei da Laicidade. Em 2004 também foi presidente do governamental Conselho de Análise da Sociedade.

Aos 62 anos, o filósofo ressalta que passou pelo ministério sempre trabalhando com margem de manobra limitada e orçamento restrito. Mas não foge da responsabilidade de que, às vezes, “as decisões impopulares são necessárias”. Com ironia, compara o político ao surfista, que precisa se manter “em cima da onda”, sempre sob o risco de cair.

Escritor de best-sellers filosóficos, Luc Ferry trata de assuntos recorrentes da sociedade moderna, como o amor, a ecologia e o casamento. Em livros como O que é uma vida bem-sucedida (Difel, 2004), Aprender a viver (Objetiva, 2007) e Famílias, amo vocês (Objetiva, 2007), fala sobre os efeitos da globalização na vida privada e a rivalidade entre a filosofia e a religião na busca do sentido da existência. Em Paris, o escritor falou à PLANETA.

O que é a “vida boa”, a “vida bemsucedida”?
A vida boa é uma vida de amor. Isso é uma evidência constantemente presente em nossa vida privada e, mesmo assim, quase não ousamos tocar nesse assunto fora da intimidade. Hoje em dia, é o amor que dá sentido à nossa vida, é em relação a ele que definimos uma “vida boa”. Todo mundo sabe disso. Mas o que nem todos sentem é que esse poder dos sentimentos nem sempre foi a regra. Na verdade, ele está ligado a uma história pouco conhecida, à qual dediquei meus últimos livros: a invenção do casamento por amor no Ocidente.

Como ela afetou a sociedade?
Quando o casamento de conveniência foi substituído pelo casamento escolhido pelo e para o desenvolvimento do amor na família, esse amor acabou substituindo pouco a pouco os valores tradicionais. Hoje em dia, é o amor que detém um quê de sagrado, e é a partir dele que definimos o sentido de nossa vida. Porque o sagrado não é somente o oposto do profano, mas um princípio pelo qual daríamos a vida. De fato, muitos homens já sacrificaram suas vidas em guerras em nome de Deus, da nação ou da revolução. Mas quem morreria hoje em dia, pelo menos no mundo ocidental, por Deus, pela pátria ou pelo comunismo? Quase ninguém. Ainda bem. Entretanto, faríamos tudo pelas pessoas que amamos. Para além do ideal republicano dos direitos e da razão, está nascendo uma segunda era do humanismo, que interfere na vida privada e também na vida em sociedade.

Os gregos diziam que há dois empecilhos para se alcançar uma vida boa, o passado e o futuro. Numa sociedade ameaçada pelos erros do passado, com medo de cometê-los no futuro, como viver a vida boa?
Para os gregos, o passado e o futuro são os dois grandes males da vida, por serem dimensões do tempo que não existem mais, ou não existem ainda, que nos impedem de viver na única dimensão real: o presente. O passado nos puxa para trás: se tivemos um passado feliz, ficamos nostálgicos. Se for um passado triste, ele nos mergulha no que Spinoza batizou de “paixões tristes”: arrependimentos, remorsos, vergonhas e culpas que amarguram a existência e não deixam saborear o presente. Isso nos leva a procurar no futuro a esperança. Porém, segundo os gregos, a esperança também esvazia o presente do seu valor, em nome de um futuro incerto. Pensar que as coisas vão melhorar quando trocarmos de carro, de corte de cabelo, de sapatos ou de amigos, é ilusão. A esperança e a nostalgia, o futuro e o passado são “nadas”, pois o passado não existe mais e o futuro ainda não existe. Por causa deles, acabamos quase nunca vivendo na única dimensão real do tempo: o presente. Sêneca, o grande estoico romano, dizia que de tanto vivermos no passado e no futuro, “não vivemos”. Chegamos, então, ao famoso Carpe diem (“Aproveite o dia”) de Horácio. Temos que colher o dia de hoje, sem nos deixar distrair pela preocupação do dia seguinte ou pelas nostalgias passadas.

Vivemos num mundo muito competitivo. O “direito” de ser feliz não cria uma geração de adultos mimados, que pensa que deve fazer tudo para chegar à felicidade?
Há duas escolas na tradição filosófica. Para os utilitaristas ingleses, a felicidade é o objetivo da vida e todos têm direito a ela. O princípio fundamental é que se uma ação é moralmente boa, ela tende a aumentar a soma de felicidade no universo. Caso contrário, é má. É uma questão de custo e benefício. Já para Kant e os republicanos franceses, a ação moral não é obrigatoriamente aquela guiada pela busca da felicidade; ao contrário, trata-se da ação desinteressada. Além do mais, a felicidade é uma ideia sem sentido, porque é indefinível. Uma pessoa sonha com uma volta ao mundo a bordo de um veleiro, já outra detesta o mar. Uma adora caçar, enquanto seu vizinho cuida de animais. Outra vive intensamente sem pensar no dia de amanhã, enquanto seu irmão constrói a vida levando em conta o futuro. Como calcular algo nessas condições? Os seres humanos conhecem momentos de alegria, e às vezes até momentos de graça e de serenidade, mas não conhecem nada que se pareça com um estado de felicidade estável. Por isso, a felicidade é, afinal de contas, uma quimera da imaginação. O melhor seria dizer a nossos filhos que uma vida boa recoé, antes de tudo ,uma vida inteligente e livre, o que implica trabalho e muitos esforços.

O sr. vê o medo, a urgência e o decrescimento econômico como pilares do pensamento ecológico. Estaremos preparados para o decrescimento e a mudança na qualidade de vida?
Daqui a 20 anos, talvez até antes disso, as nossas sociedades industriais vão ter que lidar com uma penúria de matérias-primas não renováveis sem precedente. Essa situação é iminente. A verdade é que estamos frente a uma “antinomia”, ou seja, uma contradição entre duas teses opostas, mas igualmente verdadeiras, que ninguém conseguiu resolver. Por um lado, o crescimento mundial parece efetivamente insustentável. Tendo em vista que a Índia e a China, com uma taxa de crescimento anual de quase dois dígitos, entraram de cabeça na lógica do capitalismo moderno, precisaríamos dos recursos naturais de vários planetas iguais ao nosso para alimentar esse desenvolvimento. Por outro lado, o decrescimento não é politicamente atraente e é socialmente impraticável. Ninguém, nem o ecologista mais radical, imagina um partido político propondo aos eleitores a falência das empresas e o desemprego dos cidadãos, consequências óbvias de uma política de decrescimento se ela for aplicada hoje. Vamos ter que encontrar soluções. Vejo três possibilidades: redução demográfica, inovação técnica e, principalmente, transição do descartável para a reciclagem.

O sr. chamou a internet de “praça de conformismo”. A morte de Steve Jobs foi lamentada como a perda de um grande líder. Será que mudamos a nossa noção de líder?
O que impressiona sobre o que foi dito após a morte de Steve Jobs é o uso incansável da palavra “gênio”, repetida em inúmeras homenagens. O fundador da Apple não nos ofereceu somente pequenas joias tecnológicas, também nos deu o modelo puro da genialidade no século 21. De fato, suas “obras”, assim como as telas dos artistas Jeff Koons e Damien Hirst, simbolizam perfeitamente as duas principais características da nossa época: de um lado, a lógica da inovação pela inovação, mecanicamente induzida pela globalização do “benchmarking” (os modelos de competência máxima), e, do outro, a lógica do consumo lúdico. Steve Jobs sabia muito bem que um empresário ou um artista que não inova está fadado a desaparecer. Mesmo que o iPhone 5 traga inovações insignificantes em relação ao modelo anterior, todos os fãs da marca vão comprá-lo. Seu sucesso colossal confirma a dominação total da lógica dupla da inovação e do consumismo sem fim, sem possibilidade de parar e sem um objetivo realmente definido.

O sr. também disse que os aficionados do iPhone parecem mergulhados em um vício.
Exatamente. Porém, Steve Jobs é tudo, menos um verdadeiro gênio. Em seu famoso discurso de 2005, perante um público de estudantes fascinados, ele alinhou os lugares-comuns mais banais do imaginário liberal. A melhor coisa que já aconteceu com ele? “Não ter estudado” (leia-se: a cultura clássica não serve para nada). A segunda melhor coisa? “Ter perdido tudo e ter precisado recomeçar do zero” (o sucesso fácil demais anestesia). A terceira, “o câncer” (sem a morte e a pressão do fim inadiável, cederíamos à preguiça). Dizem que Jobs era um chefe brutal e grosseiro, mas que isso não tem importância. Só se for pelo prisma da globalização! Com certeza ele é um herói dos tempos modernos. Não somente enriqueceu e ficou famoso, como também influenciou nosso modo de vida, mais do que a maioria dos políticos. Mas se, ao contrário dele, acreditarmos que existem outras lógicas, éticas e espiritualidades, e que a transcendência da beleza e do amor, transfigurada na escrita ou na arte, pode ir além dos prazeres do consumismo, Steve Jobs, que na verdade não inventou nem o computador, nem a internet, nem mesmo a tela tátil, e não foi autor de nenhuma revolução científica, não é um gênio. É só um incrível empresário que soube como ninguém refletir a lógica da época.