Para historiador, ações do ministro da Saúde na pandemia e de outros militares do governo Bolsonaro devem abalar pouco confiança dos brasileiros nas Forças Armadas, tradicionalmente tidas como capazes de resolver crises.A condução do Ministério da Saúde durante a pandemia de covid-19 pelo ministro Eduardo Pazuello, um general da ativa assessorado por diversos outros militares também nomeados para a pasta, marcada por falta de coordenação com estados, demora para o início da vacinação e falhas logísticas , deve causar algum prejuízo à imagem que a população tem das Forças Armadas, mas de forma moderada e transitória.

A análise é de Carlos Fico, professor de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e especialista em questões militares. Em entrevista à DW Brasil, ele afirma que a gestão Pazuello, definida por ele como “catastrófica”, provocará nos militares danos de reputação localizados e mais intensos entre a camada mais escolarizada, mas não vê uma alteração estrutural em como grande parte da população avalia as Forças Armadas.

“A tradição de os militares terem no Brasil uma imagem positiva é muito antiga e consolidada”, afirma, lembrando que ao longo da história eles foram convocados em momentos de crises por políticos que os consideravam capazes de “arrumar a casa”.

Segundo Fico, a boa imagem das Forças Armadas entre os brasileiros – cujo trabalho é considerado bom e ótimo por 41% da população e ruim e péssimo por 16%, segundo pesquisa realizada pelo PoderData entre 4 e 6 de janeiro – decorre também da construção de um imaginário popular segundo o qual somente os militares seriam capazes de unificar um país de dimensões continentais, e do fato de que boa parte dos brasileiros não estabeleceu uma relação traumática com o período da ditadura militar (1964-1985).

Para o historiador, a soberania do poder civil sobre as Forças Armadas ainda não foi plenamente assegurada no Brasil, e a “corrida de militares” para ocupar cargos no governo Bolsonaro representa um “retrocesso” nesse processo, que vinha evoluindo a passos lentos desde a década de 1990.

DW Brasil: Como o sr. avalia a gestão do ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, que é um general da ativa, na pandemia?

Carlos Fico: Catastrófica. Não conseguiu mobilizar o Ministério da Saúde para combater a pandemia, que tem uma experiência longa de vacinação. O Brasil sempre foi conhecido por conseguir vacinar a sua população com grandes campanhas, inclusive durante a ditadura militar, primeiro contra a varíola e depois a poliomielite.

Ele foi indicado para o Ministério da Saúde porque seria um especialista em logística, e estamos vendo que isso não corresponde à verdade, por várias razões concretas e documentadas.

Além de Pazuello, o Ministério da Saúde tem hoje em cargos de direção muitos outros militares. Isso terá reflexos em como a população percebe as Forças Armadas?

Acredito que sim. Tradicionalmente, no Brasil, as Forças Armadas têm uma boa imagem na população, mas há indicadores de que isso tenha caído um pouco, em função desse desempenho ruim, não só do ministro da Saúde, mas dos outros ministros militares e do desempenho ruim do governo Bolsonaro.

É provável que a imagem dos militares sofra algum tipo de abalo, mas não creio que será muito grande nem definitivo. A tradição de os militares terem no Brasil uma imagem positiva é muito antiga e consolidada.

O que me parece mais certo é que, na parcela da opinião pública mais letrada, na imprensa, intelectuais, certamente esse abalo será maior. Muita gente que possivelmente via as Forças Armadas como organizadas e capazes de enfrentar problemas graves deve estar desiludida.

A ideia de que as Forças Armadas são exemplo de organização e eficiência é interna aos militares ou disseminada entre a população?

É disseminado entre a população e tem origem histórica. A própria Proclamação da República foi uma iniciativa militar, e os primeiros governos republicanos foram de presidentes militares. Sobretudo após a Segunda Guerra Mundial, os militares passaram a ser vistos como uma espécie de poder moderador. O poder moderador era o poder que o imperador brasileiro tinha de arbitrar as questões quando havia conflitos entre os poderes. Isso deixou de existir com a República, mas muitos políticos civis de direita que se reuniam no antigo partido União Democrática Nacional, a UDN, volta e meia, diante de crises políticas e institucionais, apelavam aos militares para que interviessem e, digamos, arrumassem a casa.

Essa crença de que os militares eram capazes de resolver crises e devolver o poder aos civis foi muito forte de 1945 até o golpe de Estado de 1964, que instituiu a ditadura. Aí eles permaneceram no poder durante 20 e tantos anos. Grande parte da população não se impactou negativamente com a ditadura. Havia muita propaganda, censura da imprensa, a maior parte mal sabia da repressão e da tortura, a propaganda política divulgava que o país estava bem, e durante certo tempo houve o chamado milagre brasileiro, em que o PIB cresceu em níveis muito elevados. Então, embora pareça chocante, boa parte da população brasileira não criou, ao contrário da Argentina, uma relação traumática com a ditadura.

O Exército especialmente, mas a Aeronáutica e a Marinha também, sempre propagaram essa capacidade de unificar o país, de serem capazes de atingir todos os rincões de um país gigantesco. [Dizendo] as Forças Armadas conseguem chegar à Amazônia para levar suprimentos, construíram o Correio Aéreo Nacional, estão nas fronteiras do Brasil, são uma instituição capaz de lidar com essa grandiosidade. Muita gente embarca nessa mitologia toda, e a imagem positiva das Forças Armadas decorre desse conjunto de fatores, entre outros.

Em janeiro, um pesquisa realizada pelo PoderData mostrou que 41% da população avaliava com ótimo e bom o trabalho das Forças Armadas, e apenas 16% como ruim ou péssimo. Como o sr. interpreta esse resultado?

Por conta dessas questões que mencionei e outros fatores. Por exemplo, para muitas famílias pobres, o filho que chega aos 18 anos e tem o serviço militar obrigatório é visto não apenas como uma fonte de renda mínima, mas como um ritual por meio do qual esse garoto se torna adulto, aprende a se comportar e até mesmo um ofício.

A confiança nas Forças Armadas também é bem superior à confiança em outras instituições, como no Congresso e no governo. Em 2019, em uma escala de 1 a 7, a confiança dos brasileiros nas Forças Armadas era de 5,1, contra 2,4 nos partidos políticos, segundo o Projeto de Opinião Pública da América Latina. Por quê?

Uma das visões que unificam os militares brasileiros é a ideia de que os civis são despreparados e que os políticos são corruptos. O que é uma coisa estranhíssima, porque os civis veem positivamente os militares, mas os próprios militares veem negativamente aqueles que eles chamam, pejorativamente, de paisanos. Os militares se consideram os verdadeiros patriotas, os verdadeiros conhecedores da realidade brasileira, enquanto os civis são despreparados. Essa visão é muito frequente em depoimentos e documentos. Veem os civis como corruptos e venais, sobretudo os políticos. E essa ideia de que a política é uma coisa corrompida acaba, inclusive, transbordando para a parcela civil da sociedade.

Após o fim da ditadura, as Forças Armadas fizeram um esforço para reposicionar a sua imagem perante o público?

Os militares, sobretudo os generais, fizeram um esforço para ter um perfil de menor visibilidade e de relacionamento mais respeitoso com a imprensa. Buscaram se afastar do cenário político e ter um tipo de relacionamento com a sociedade mais profissional.

No governo de Fernando Henrique Cardoso, criou-se o Ministério da Defesa, um passo fundamental para tentar construir a proeminência civil sobre os militares. E, na gestão do Nelson Jobim [ministro da Defesa de 2007 a 2011], houve a discussão sobre uma Política Nacional de Defesa, ou seja, qual o papel das Forças Armadas no Brasil. Isso nunca tinha sido discutido publicamente com o Congresso, com a imprensa participando.

A gestão Bolsonaro é um retrocesso nesse processo, que não foi tranquilo, sobretudo quando se iniciaram as ações de Justiça de transição. Os militares reagiram negativamente à Comissão sobre Mortos e Desaparecidos, e depois à Comissão da Anistia e à Comissão da Verdade. Esse processo de consolidação de um poder civil na democracia brasileira é um processo difícil, e é muito negativo que tenha havido esse retrocesso agora com o governo Bolsonaro.

A soberania do poder civil sobre o poder militar ainda não foi assegurada no Brasil?

Essa proeminência civil é algo que existe em poucos países, nos Estados Unidos e em alguns países europeus. Mas em muitos essa proeminência não está de modo algum consolidado. E aqui no Brasil é assim também. Talvez não tão gravemente como em certos países africanos ou outros, mas no Brasil também há essa dificuldade, embora os próprios militares tenham afirmado que vão sempre observar a Constituição e defender a democracia.

No caso do Brasil, há uma singularidade que é a tradição constitucional de se atribuir às Forças Armadas a defesa da lei e da ordem. Isso existe desde a Proclamação da República, essa atribuição aos militares em caso de grande conflagração ou catástrofe, uma espécie de papel indevido de polícia. Infelizmente, isso foi mantido pela Constituição de 1988. Houve iniciativas naquela época para não repetir esse artigo, mas não foi possível. Os militares fizeram uma pressão muito grande na Constituinte, e acabou sendo aprovado o famoso artigo 142, que hoje os bolsonaristas mais radicais interpretam como sendo uma licença para um autogolpe. Esse artigo não deveria existir, é uma expressão constitucional da fragilidade institucional da democracia brasileira.

Que tipo de marca a experiência das Forças Armadas com o governo Bolsonaro deve deixar na população brasileira?

Sou historiador e sei que, frequentemente, essas conjunturas políticas que parecem muito espetaculares, como “O governo Bolsonaro vai pôr em risco a democracia? Vai ter um golpe de Estado?”, como ocorreu também até recentemente nos Estados Unidos, com o governo Trump… Muitos analistas têm essa visão que eu chamo de retórica da iminência, como se fosse acontecer uma grande mudança.

Eu vejo essas análises com muita cautela, porque, frequentemente, ao longo da história, pouca coisa muda, e as coisas voltam a uma certa rotina. Ao longo da história, o impacto desse governo, em termos da reverberação política, vai ser pequeno, embora o impacto em termos concretos hoje, no nosso cotidiano, na nossa vida, inclusive em função dessa pandemia, esteja sendo muito grande, dramático e terrível. No longo prazo, creio que vá ser mais um momento de alternância, entre momentos mais à esquerda e mais à direita.

A decisão das Forças Armadas de participarem com muito mais ênfase do atual governo cria um distanciamento entre os militares e parcelas da sociedade civil?

Não vejo propriamente que haja esse distanciamento, mas o que acontece de negativo [no governo] acontece para as próprias Forças Armadas. Tenho a impressão que alguns analistas militares no interior das Forças Armadas estão arrependidos dessa concordância em participar do governo Bolsonaro.

Como não havia um partido de direita organizado, era esperado que um governo de direita, qualquer que fosse eleito, fosse buscar quadros nos militares. Como Bolsonaro não contava com quadros experientes, em setor algum da administração pública, ele recorreu aos militares. E essa presença dos militares acabou sendo admitida por chefes militares muito experientes, sobretudo o ex-comandante do Exército [Eduardo Villas Bôas] e o atual chefe do Gabinete de Segurança Institucional, general Augusto Heleno. E houve essa corrida de militares para todos os cargos.