Uma pesquisa liderada pelo Instituto de Medicina Social e Preventiva (ISPM) da Universidade de Berna, na Suíça, com participação de pesquisadores da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP), mostra que 37% das mortes causadas pelo calor nos últimos 30 anos podem ser atribuídas ao aquecimento global antropogênico, ou seja, causado pelo homem. O estudo mostrou, também, que o aumento da mortalidade associada às mudanças climáticas é evidente em todos os continentes e chega à ordem de dezenas a centenas por ano em diferentes locais do globo. Um artigo com mais detalhes das análises foi publicado na revista científica Nature Climate Change, na edição de 31 de maio.

Os cientistas usaram dados de 732 locais de 43 países para estimar as taxas de mortalidade associadas à exposição ao calor extremo durante o período de 1991 a 2018. Por falta de dados, alguns países da África e do sul da Ásia ficaram de fora da pesquisa.

Pesquisas já mostraram os impactos do clima quente em diferentes cenários, mas esta é a primeira realizada em larga escala. Utilizando modelos estatísticos sofisticados combinados com observações de mortalidade diária para diferentes cidades, foi possível quantificar o número de óbitos decorrente da intervenção humana no ecossistema.

Preço cobrado

“O que esse artigo faz é mostrar que as mudanças climáticas de origem antropogênica já estão cobrando um preço, ou seja, já há pessoas morrendo por causa disso”, explica ao Jornal da USP Paulo Saldiva, médico, professor de Patologia da Faculdade de Medicina da USP e um dos autores do estudo.

Temperatura modelada sob os cenários factual (com forças antropogênicas e naturais) e contrafactuais (apenas com forças naturais); a. Temperatura média da estação quente desde 1900, incluindo o período de estudo de 1991–2018 (sombreado) nas 732 localidades, b. diferenças de temperatura entre os cenários nos 43 países do estudo, respectivamente, durante o período de estudo (apenas na estação quente); c. Diferença de temperatura média entre os cenários durante o período de estudo nos 732 locais de estudo (apenas na estação quente). Crédito: Nature Climate Change

“Sempre houve incertezas se a intervenção humana realmente poderia interferir nas forças naturais. Esse estudo não só faz estimativas, mas consegue mensurar a influência humana no clima, algo muito difícil de se quantificar em modelos climáticos”, relata Micheline Coelho, pesquisadora associada do Laboratório de Poluição Atmosférica Experimental (Lapae) da FMUSP e da International University of Medical Science, nos Estados Unidos. Junto com Saldiva, Micheline ajudou a compilar os dados brasileiros.

Consequências

Nos últimos dois séculos, as temperaturas globais aumentaram em média 1°C e são resultado da mudança climática antropogênica, sendo que algumas áreas estão mais quentes do que outras. Esse aumento – junto com o crescimento da frequência e da gravidade das ondas de calor – tem consequências sérias para a saúde humana.

Saldiva explica que o corpo se adapta às condições do clima de determinadas regiões, por exemplo. “Um morador de Teresina sente frio quando a temperatura está abaixo de 24°C. Mas em São Paulo, os efeitos do calor são sentidos a partir dos 27°C”, exemplifica. “O que acontece é que o corpo humano não consegue se adequar a temperaturas extremas.”

Simulações

A pesquisa foi realizada em duas etapas. Na primeira, foram coletados dados de temperatura e mortalidade disponíveis em bancos de dados nacionais e internacionais. A análise foi limitada à estação quente – definida como os quatro meses consecutivos mais quentes do ano –, para levantar apenas dados relacionados ao calor.

A análise revelou quase 30 mil mortes em todos os 732 locais estudados no período entre 1991 e 2015. As temperaturas médias na estação variavam de 15°C, nos países no norte e no centro da Europa e Canadá, a um clima muito mais quente (25°C) no sul da Ásia, Oriente Médio e partes da região central da América do Sul.

Mortes relacionadas ao calor em 732 locais. Crédito: Nature Climate Change

Na segunda fase, foram feitos ensaios para calcular a taxa de mortalidade relacionada ao calor entre 1991 e 2018 em dois cenários: um factual, com dados históricos do clima no período; e um contrafactual, em que as simulações climáticas são movidas apenas por forças naturais, aproximando-se do que seria o clima sem intervenção humana.

No contexto real, a temperatura média, que era de 21,5°C no período pré-industrial, subiu para quase 23°C na década de 2010 em todos os 732 locais. Já no cenário fictício, as temperaturas permaneceram relativamente estáveis, em torno dos mesmos 21,5°C.

Legado

No cenário factual, a porcentagem de mortalidade relacionada à estação quente (em comparação à mortalidade total atribuída às mudanças climáticas induzidas pelo homem) ficou em 37%. Mas ela variou significativamente entre regiões e países. As maiores taxas (acima dos 50%) ocorreram no sul da Ásia Ocidental (Irã e Kuwait), no Sudeste Asiático (Filipinas e Tailândia) e em vários países da América do Sul, inclusive o Brasil.

Os autores do estudo ressaltam que as simulações foram feitas levando em conta o aumento médio da temperatura global, que é de apenas 1°C. Para Saldiva, o estudo tem dois legados: um científico, que permite calcular o impacto causado por essas intervenções humanas no clima em termos de recursos financeiros, e outro estratégico. “Esses dados precisam chegar aos tomadores de decisão para que eles consigam implantar políticas públicas de redução de gases de efeito estufa.”

Mais informações: e-mail pepino@usp.br, com Paulo Saldiva; e-mail coelhomicheline@gmail.com, com Micheline Coelho