Quando a ecologia for disciplina de primeiro grau nas escolas do mundo, os pequenos alunos com certeza aprenderão sobre a tragédia que se abateu sobre o Mar de Aral.

Dificilmente se encontrará um exemplo tão didático e revoltante da capacidade do homem de intervir desastrosamente na natureza quanto o da agonia desse que chegou a ser o quarto maior lago do mundo.

Localizado na Ásia Central, entre duas antigas repúblicas soviéticas – o Casaquistão e o Usbequistão –, o Aral ocupava originariamente uma área de 68.300 km2, o equivalente a duas Holandas. Suas águas salgadas eram abastecidas principalmente por dois extensos rios, o Syr Darya e o Amu Darya, cujas bacias hidrográficas se estendem por outros países vizinhos – o Tadjiquistão, o Quirguistão e o Turcomenistão, além do Afeganistão e do Irã –, cobrindo uma área total que beira os dois milhões de quilômetros quadrados.

 

É UMA REGIÃO de terras áridas e semi-áridas, e por isso mesmo a irrigação artificial lá é muito antiga: há indícios de que ela já era usada há mais de dois mil anos, sempre de forma sustentável. Mas a grande mudança nesse sentido começou na década de 1930, quando os governantes soviéticos decidiram transformar a área, economicamente inexpressiva, numa grande produtora de algodão. A fibra, chamada na época de “ouro branco”, era fonte certa de divisas numa época difícil da economia mundial.

As práticas de plantio tradicionais da região deram lugar a uma agricultura de irrigação intensiva, graças à construção de grandes canais – o maior deles, o Kara Kum, foi aberto em 1956 para desviar parte das águas do Amu Darya.

O PROBLEMA começou na década de 1930, quando os governantes SOVIÉTICOS decidiram transformar a ÁREA em uma produtora de algodão

No sudoeste do Casaquistão, carcaças de navios jazem agora sobre o leito seco do Mar de Aral, perto daquilo que foi um grande e profundo porto pesqueiro da região.

Não se pode negar que houve algum sucesso: entre 1960 e 1980, a área respondeu por um aumento de 70% na produção total de algodão da União Soviética, e até hoje o Usbequistão se destaca como potência algodoeira. Mas o custo social, econômico e ambiental desse feito é incalculável.

Até 1960, a situação se manteve relativamente estável, mesmo com a irrigação tomando dos rios (e desperdiçando a maior parte no deserto, por deficiências estruturais das obras e pela evaporação) quase 50% do fluxo de suas águas.

A partir daí, porém, o nível médio do mar começou a cair. Entre 1960 e 1969, eram 20 centímetros anuais, que passaram para 60 centímetros na década de 1970 e um metro nos anos 1980. Foi nos primeiros anos dessa década, aliás, que o volume de água recebido pelo Aral chegou a zero.

Até então, o governo soviético não dava a devida importância ao que andava acontecendo naquele canto da Ásia Central. Falava-se inclusive – com a arrogância típica das ditaduras – em inverter o fluxo do Rio Ob, que deixaria de desembocar no Oceano Ártico para despejar as suas águas na região do Aral.

O então secretário-geral do Partido Comunista, Mikhail Gorbachev, deu um basta nesses devaneios e, em 1988, o Comitê Central estabeleceu que o plantio de algodão seria reduzido de forma a permitir que o Aral voltasse a receber água em quantidades cada vez maiores até 2005.

Da esquerda, em sentido horário: a escola de Aralsk, no Casaquistão – outrora porto pesqueiro – ficava às margens do Mar de Aral. Hoje, ela está sendo soterrada pela areia e o sal trazidos pelos ventos. Velho da região com seu neto. Mais duas carcaças de navios pesqueiros.

Alguma melhora foi observada então, mas a queda de Gorbachev, em 1991, colocou nas mãos das cinco exrepúblicas soviéticas envolvidas o cumprimento dessa determinação. A previsível inércia resultante disso aprofundou o desastre.

Nos anos 1990, a sangria contínua fez o mar dividir-se em dois, com um aumento drástico na salinidade das águas: antes de 10 gramas por litro, ela subiu para 45 gramas por litro – e, em algumas partes do Aral Sul, chegou a espantosos 98 gramas por litro. A média atual gira em torno de 33 gramas por litro.

HOJE EM DIA, a bacia do Aral é assolada pela desertificação (que atingiu mais de 30.000 km2 do leito do mar) e por constantes tempestades de poeira tóxica. A redução do nível do mar pôs à mostra imensos bancos de sal, que os fortes ventos levam até o Himalaia, e a água remanescente da irrigação formou lagos contaminados por agrotóxicos – alguns tão grandes que já receberam nome.

Enquanto os verões ficaram mais quentes e curtos, os invernos passaram a ser mais rigorosos e longos – uma alteração que levou muitos fazendeiros a trocar o algodão pelo arroz, cujo cultivo exige ainda mais água. Das 73 espécies de aves, 70 de mamíferos e 24 de peixes antes encontradas na área, a maioria morreu ou migrou para outros lugares.

A profunda devastação afetou a antes próspera indústria pesqueira, que na primeira metade da década de 1960 empregava cerca de 60 mil pessoas. Diante da visão de várias embarcações encalhadas longe da margem, as autoridades abriram canais para levá-las ao mar aberto – e nada conseguiram, porque o nível do Aral baixava mais rapidamente do que sua capacidade de escavar as valas.

Com isso, a atividade pesqueira esgotou-se em 1982, e as fábricas de processamento de peixe congelado trazidas de outras regiões para manter os pescadores locais empregados foram fechadas em 1991.

O desastre ambiental provocou também um profundo impacto na população local. Com a contaminação da água pelo sal e substâncias existentes nos fertilizantes e pesticidas utilizados nas plantações, a tendência de os moradores da região apresentarem câncer de garganta é nove vezes maior do que a média mundial, e a mortalidade infantil ali observada é a maior entre as antigas repúblicas soviéticas.

Canais de irrigação como os da foto drenam as águas dos rios Amu Darya e Syr Darya ao longo de todo o seu curso, impedindo que eles alimentem o Mar de Aral.

Aproximadamente 80% das mulheres grávidas sofrem de anemia. A incidência de distúrbios respiratórios, tuberculose e problemas oculares na população local também aumenta assustadoramente.

A miséria que impera entre os habitantes da região é atenuada por organizações como a Cruz Vermelha e o Crescente Vermelho, que reforçam a dieta dos mais carentes com uma cesta básica que contém arroz, farinha e óleo. Mas essa ajuda só chega a 10% dos moradores que vivem abaixo da linha da pobreza na região.

O que fazer agora? Nenhuma solução escapa de um investimento gigantesco de dinheiro – em 2004, ele era calculado em US$ 300 bilhões. É muito difícil reunir toda essa dinheirama, mas talvez o maior obstáculo seja mesmo a cooperação entre os cinco países envolvidos, com os seus conflitantes interesses econômicos. Eles já haviam feito um acordo a respeito do Aral em 1992, mas nada de objetivo emergiu dali.

Além disso, há várias disputas étnicas nessa questão. Desde o fim da União Soviética, os direitos do uso da água já opuseram usbeques e quirguizes, turcomenos e usbeques, e quirguizes e tadjiques.

Por enquanto, as ações tomadas (ou a falta delas) indicam que o Aral continuará a encolher na sua parte sul. Já na parte norte, aparentemente o governo do Casaquistão está empenhado em manter sua fração do lago (ver quadro). De qualquer forma, o que resta é um retrato melancólico do poder de destruição que a humanidade pode exercer sobre a natureza.

Um fim PROVOCADO pela mão do homem

A seqüência das três fotos do Mar de Aral tiradas por satélite mostram o seu progressivo esvaziamento. A primeiro foto, à esquerda, é de maio de 1973; a segunda, de agosto de 1987; a terceira, de julho de 2000. Durante os últimos 40 anos, por decisão das autoridades da ex-União Soviética, as águas do Amu Darya e do Syr Darya – os dois rios centro-asiáticos que alimentavam o Aral – foram desviadas para irrigar milhões de hectares de plantações de algodão e de arroz. Nas últimas duas décadas, o volume de água do Mar de Aral decresceu de 75 %. A linha do litoral encolheu 120 quilômetros. O nível das águas baixou mais de 16 metros e hoje o Aral é um pequeno mar muito raso. Há muitos milhares de anos, ele já secara completamente devido a motivos naturais. A grande controvérsia que acontece hoje em torno do Mar de Aral deve-se ao fato de que seu encolhimento foi causado pela mão humana, e não por uma mudança ambiental natural. Durante os ciclos naturais, tais mudanças acontecem muito lentamente, durante centenas de anos. Ao contrário, mudanças causadas pela atividade humana costumam ser muito rápidas.

Vozrozdenya, a ilha do terror

Na primeira metade do século 20, Vozrozdeniya era uma ilha no meio do Mar de Aral, e essa condição geográfica do isolamento foi aproveitada pelas Forças Armadas, que lá construíram instalações e laboratórios voltados para a pesquisa e o armazenamento de armas biológicas. Com o recuo progressivo das águas do mar, o território da ilha começou a crescer e, em 2001, ela se juntou à terra firme. As instalações militares foram fechadas em 1992, mas o risco de que o material guardado ali – como bacilos de antraz – venha a causar problemas no futuro ainda é alto. Curiosidade típica de humor negro: em russo, Vozrozdeniya significa “renascimento”.

Um sopro de ESPERANÇA

As previsões para a parte sul do que restou do Aral são sombrias, mas a salvação para a parte norte pode estar a caminho. A idéia, já tentada em 1992 e 1997, é construir uma barragem de 14 quilômetros entre as partes norte e sul do mar. Nas outras ocasiões, o material precário usado no dique entrou em colapso, mas na terceira tentativa – feita entre 2001 e 2005 com recursos do Banco Mundial e do governo do Casaquistão –, a obra tem-se mostrado bem mais resistente.

A nova barragem é a peça central de uma ampla reformulação e conserto de 100 quilômetros de obras da era soviética. Esse trabalho aumentou a eficiência da água do Syr Darya, que agora irriga plantações e flui para o Aral Norte. Nos primeiros 12 meses após a conclusão da obra, o nível do Aral Norte subiu seis metros. Com as novas condições, já se observou o ressurgimento de gramíneas e juncos nas margens, além do retorno de pássaros aquáticos e outros animais de maior porte.