No terceiro episódio da série documental A vida em cores, que estreou em fevereiro de 2021 na plataforma de vídeo Netflix, o naturalista e apresentador britânico David Attenborough acompanha, curioso, a montagem de uma câmera fotográfica com um filtro ultravioleta. Apontado para uma flor que parece inteiramente amarela, o aparelho capta, em tempo real, a imagem que reflete a luz branca e simula a visão humana e outra que mostra o resultado da luz ultravioleta. “Parece que a flor tem marcas pretas nas pétalas”, diz ele, admirado, ao observar a imagem em ultravioleta e apontar para os traços que aparecem próximo ao miolo da flor. “Muitas aves, lagartos, insetos e alguns peixes enxergam ultravioleta. Estão reagindo a coisas que não podemos ver”, observa ele.

“A cor pode ser crucial na vida dos animais. Mas entender como eles percebem as cores não é fácil”, continua Attenborough, explicando que elas podem ser fundamentais para garantir a sobrevivência, ao permitir que se escondam de predadores ou se tornem visíveis para um parceiro. O mesmo ocorre com as plantas. “As cores que as flores exibem evoluíram para atrair os polinizadores. Elas não foram moldadas para a visão humana”, observa a ecóloga Maria Gabriela Camargo, do Laboratório de Fenologia da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Rio Claro, uma das organizadoras de uma coletânea sobre a evolução das cores das flores, reunindo artigos publicados na revista científica Frontiers in Plant Science entre maio de 2020 e julho deste ano. A edição reúne estudos de diversos países, inclusive do Brasil, que procuram aprofundar esse universo.

As flores estão no mundo há pelo menos 180 milhões de anos e, ao longo do tempo, têm aprimorado a intensidade e a distribuição de suas cores. Apesar de outros sinais de comunicação – como as formas das pétalas e seus aromas –, as cores têm um papel importante nesse jogo de atração. O vermelho das rosas, que adquiriu uma conotação de sedução no mundo humano, passa despercebido para as abelhas, que não têm fotorreceptores para essa cor em seus olhos: elas enxergam o verde, o azul e o ultravioleta. Já uma flor facilmente identificada como cor-de–rosa, pelas pessoas, pode ser azul para esses insetos. “Até muito recentemente não se considerava que a capacidade de perceber a cor diferia entre os distintos grupos de polinizadores”, ressalta a botânica Montserrat Arista, da Universidade de Sevilha, na Espanha, e organizadora principal do volume temático.

O pigmento azul, como nessas flores de Psyllocarpus laricoides, é raro: mas as abelhas podem enxergar essa cor quando olhos humanos veem outras. Crédito: Gabriela Camargo/Unesp
Análise do contraste

Tomando como base essa diferença de percepção das cores pelas abelhas, as principais polinizadoras do planeta, a bióloga Amanda Martins, doutoranda sob orientação da bióloga Patrícia Morellato, da Unesp de Rio Claro, analisou o contraste entre as cores das flores e das folhas de 43 espécies de plantas do Cerrado polinizadas por esses insetos, comparando o contraste na estação seca (com folhas de fundo amareladas) e na chuvosa (na qual as folhas estão verdes).

Para isso, usaram um espectrofotômetro, aparelho que identifica o comprimento de onda emitido por cada cor, e um modelo que simula a visão das abelhas baseado na sensibilidade dos três fotorreceptores de seus olhos. Os resultados indicaram que as flores mantêm o contraste em relação às folhas em segundo plano apesar da mudança na cor dessas folhas em cada estação. “Isso pode ser bom principalmente para plantas que florescem na transição entre as estações e parecem ter se adaptado à sazonalidade de forma estratégica”, reflete Camargo, que participou da pesquisa.

Quando sobrevoam as flores a uma distância de mais de 1 metro, as abelhas economizam energia usando apenas um fotorreceptor, o verde. O resultado é uma visão monocromática – para nós, seria como enxergar em branco e preto. “O contraste contra o fundo é importante para que as flores sejam visíveis e atraiam as abelhas. Quando está mais próximo do alvo, o inseto ativa os outros fotorreceptores para visualizar o contraste, o brilho e a saturação que as flores emitem”, detalha Martins.

Flor de pequi (Caryocar brasiliense), polinizada por morcegos, integrou as análises com medição de sua cor. Crédito: Amanda Martins/Unesp
Percepção dos processos

“Não é apenas a cor da flor que é importante, mas seu contraste com outras estruturas, que pode mudar ao longo do ano. Assim, procuramos entender o quanto a sazonalidade poderia interferir nesse processo”, explica Morellato, coautora do artigo.

Em uma primeira etapa, as pesquisadoras classificaram, de acordo com a visão humana, as cores de 140 espécies de plantas – 74% polinizadas exclusivamente por abelhas – coletadas em uma mancha de Cerrado no município de Itirapina, interior de São Paulo. As brancas foram as mais frequentes (52%), seguidas pelas rosa (21%), amarelas (17%), verdes (5%) e vermelhas (5%). Depois, classificaram 99 flores sob a visão das abelhas: a cor verde-azulada representou 50% da amostra, seguida pelo verde (18%), azul (13%), verde-ultravioleta (12%) e azul-ultravioleta (6%).

Na última etapa, elas se debruçaram sobre as 43 espécies que tinham registros de florada em um banco de dados mantido pelo próprio grupo de pesquisa e analisaram o contraste de cada uma delas. Os contrastes não diferiram, mas para 22 espécies o pico de floração ocorreu na estação chuvosa, entre outubro e março, quando há valores mais altos de contraste acromático, com base apenas no fotorreceptor verde, que permite enxergar detalhes em meio a uma profusão de brotos e folhas. Outras 21 desabrocharam na seca, entre abril e setembro, com valores mais altos para o contraste de cor, que pode maximizar a possibilidade de detectar flores em um contexto no qual elas são raras.

“É importante perceber os processos por trás dos padrões de cores que enxergamos. Para nós, uma flor branca pode não se destacar no período de seca, quando as folhas estão amarelas. Mas, para uma abelha, ela pode ser visível e atraente porque o ultravioleta provoca esse contraste”, comenta o ecólogo Carlos Eduardo Pereira Nunes, pesquisador em estágio de pós-doutorado em polinização por abelhas na Universidade de Stirling, no Reino Unido, que não participou do estudo. “Os resultados trazem mais peças para entender o que é importante para as abelhas e como ocorre a coevolução entre elas e as flores”, complementa.

Ludwigia nervosa parece ter um amarelo quase uniforme, mas sob luz ultravioleta aparece um miolo contrastante que guia o polinizador. Crédito: Mariah di Stasi e Elza Guimarães
Dentro das flores

O jogo de cores não é importante apenas no contraste entre as flores e o pano de fundo formado pela vegetação, mas também dentro da própria flor. Contrastes podem ajudar os bichos a chegar ao pólen de forma mais rápida, seguindo caminhos formados por traços, linhas ou manchas chamados de guias de néctar – funcionam como as luzes de sinalização da pista de pouso em um aeroporto.

Em colaboração com colegas do campus de Botucatu da Unesp, Camargo buscou por combinações de cores na faixa ultravioleta em 80 espécies de plantas do Cerrado. As coletas foram feitas em Botucatu, na Estação Ecológica de Santa Bárbara, município de Águas de Santa Bárbara – ambas em São Paulo – e no Parque Nacional da Serra da Canastra em São Roque, Minas Gerais.

Mesmo uma flor que parece uniforme pode ter uma área que reflete a luz ultravioleta e outra que a absorve, formando um padrão como em cerca de 30% das plantas fotografadas com filtro ultravioleta. É o caso de Ludwigia nervosa, com o amarelo de suas pétalas perturbado apenas por um discreto verde perto do miolo. Com o filtro, a área central da flor ganha grandes e acentuados contornos escuros.

Ao cruzarem os dados, as pesquisadoras perceberam que a maior parte das flores com esses padrões é polinizada por abelhas. “A tendência é que as abelhas procurem a parte mais escura, que absorve a luz ultravioleta”, explica Camargo. Já os beija-flores preferem flores uniformes, sem guias de néctar. Elas também notaram que espécies aparentadas apresentam padrões semelhantes, mesmo que não tenham a mesma cor. Os resultados foram detalhados em um artigo publicado em maio na Frontiers in Plant Science.

Fusão de elementos

Os tons de rosa que formam manchas em torno de um miolo amarelado na orquídea Cattleya walkeriana parecem ter uma distribuição aleatória. Mas o labelo, que se assemelha a uma pétala na região central da flor, tende a preservar uma cor mais intensa. E isso parece ter importância, de acordo com pesquisadores das universidades Federal de Uberlândia (UFU), de São Paulo (USP) e do Jardim Botânico do Rio de Janeiro (JBRJ) que mediram a saturação (o grau de pureza da cor) de 30 flores, usando um modelo que simula a visão das abelhas. “O labelo seria a parte que mais chama a atenção delas, que o enxergam em um tom mais escuro”, explica o biólogo Vinicius Brito, da UFU.

Os olhos humanos distinguem com facilidade os elementos das flores dessas orquídeas: três sépalas posicionadas mais externamente, duas pétalas e o labelo, uma aba inferior que pode parecer um lábio. Para as abelhas, porém, a saturação das cores faz com que pétalas e sépalas se fundam. “O labelo ter se mostrado o ponto menos sujeito à mudança de saturação e mais atraente para as abelhas é importante porque é nele que elas precisam pousar para que a polinização aconteça”, diz Brito. Segundo o biólogo, as abelhas que pousam nessa orquídea, atraídas pelas cores, são enganadas. O pólen gruda nas costas da visitante, que leva as partículas reprodutivas para a próxima flor da mesma espécie que a enganar, sem conseguir fazer a coleta para consumo da colmeia. “Costumamos pensar que os animais dominam as plantas, mas as flores também têm estratégias de controle”, avalia.

O estudo, publicado em novembro de 2020 na Frontiers in Plant Science, também infere que, se para os olhos humanos o labelo dessa orquídea é todo em tons rosa, para as abelhas ele é azul. Flores azuis, raras na percepção humana, parecem ser até corriqueiras para as abelhas e outros polinizadores. É o que propõe uma revisão que reuniu dados de pesquisas do Brasil e de outros países. “Concluímos que o pigmento azul é raro, pelo menos em parte, porque muitas vezes é difícil para as plantas o produzirem. A evolução só as conduziu a essa cor quando isso lhes traz um benefício real: especificamente, atrair abelhas ou outros insetos polinizadores”, escreveu Adrian Dyer, do Instituto Real de Tecnologia de Melbourne, na Austrália, em um texto para o site The Conversation. Dyer é o primeiro autor da revisão sobre o azul publicada em janeiro na Frontiers in Plant Science.

A saturação na cor das orquídeas Cattleya walkeriana varia entre uma flor e outra. Crédito: Vinicius Brito/UFU
Predominância do azul

“Também descobrimos que a escassez de flores azuis se deve em parte aos limites de nossos próprios olhos. Do ponto de vista de uma abelha, atraentes flores azuladas são muito mais comuns”, continua Dyer no texto, descrevendo a comparação de dados do Brasil, da Austrália e da Alemanha. “Nos três países, predominaram flores azuis conforme a visão das abelhas, mas que apresentam outras cores na visão humana”, comenta Gabriela Camargo, coautora do artigo. Ela forneceu dados coletados durante estágio de pós-doutorado na serra do Cipó, em Minas Gerais, de como abelhas e beija-flores percebem as cores de 283 espécies de flores.

Em alguns casos, conforme a arquitetura e especialização da flor para a polinização, se esconder das abelhas é mais vantajoso do que atraí-las. O vermelho não é atraente na visão desses insetos, por exemplo. Mas os contrastes podem ser semelhantes entre flores com a configuração adaptada às abelhas e outras especializadas em insetos distintos, de acordo com uma análise de 389 espécies visitadas por aves, abelhas e outros insetos. “Sugerimos que essas flores podem usar outras estratégias, que não são as cores, para evitar as abelhas, como odores”, explica o biólogo Gabriel Coimbra, que publicou esses resultados, obtidos durante trabalho de graduação na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), em setembro de 2020 na Frontiers in Plant Science, com colaboradores do JBRJ e da Estação Experimental de Zonas Áridas, na Espanha. “É uma questão que ainda está em aberto e precisamos de mais estudos para desvendá-la.”

“Essa nova forma de estudar a evolução da cor floral pode fornecer informações básicas que podem ser aplicadas a problemas práticos atuais relacionados à agricultura ou à floricultura, bem como à conservação da biodiversidade”, ressalta Montserrat Arista. “Entender como os polinizadores percebem as flores pode trazer pistas úteis na manipulação de plantas usadas na nossa alimentação, por exemplo”, completa Patrícia Morellato. “É preciso tomar cuidado para não perder características que a tornam visível para os polinizadores, o que a faria menos produtiva.”

PROJETOS
  1. Combining new technologies to monitor phenology from leaves to ecosystems (nº 13/50155-0); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Programa Pesquisa sobre Mudanças Climáticas Globais; Pesquisadora responsável Leonor Patricia Cerdeira Morellato (Unesp); Investimento R$ 1.841.983,17.
  2. Diversidade florística e padrões sazonais dos campos rupestres e Cerrado (nº 10/51307-0); ModalidadeParceria para Inovação Tecnológica (Pite); Convênio Vale-Fapemig-FAPESP; Pesquisadora responsável Leonor Patrícia Cerdeira Morellato (Unesp); Investimento R$ 441.438,71.
  3. Estudo comparativo da diversidade e da fenologia reprodutiva e vegetativa entre borda e interior num fragmento de Cerrado em Itirapina, São Paulo (nº 07/59779-6); ModalidadeAuxílio à Pesquisa ‒ Regular; Pesquisadora responsável Leonor Patricia Cerdeira Morellato (Unesp); Investimento R$ 203.888,72.
  4. Efeitos da florivoria sobre a forma floral, padrões de coloração e emissão de voláteis florais: Consequências para a polinização (nº 18/14146-0); ModalidadeAuxílio à Pesquisa ‒ Regular; Pesquisadora responsável Elza Maria Guimarães Santos (Unesp); Investimento R$ 169.728,57.
  5. Padrões sazonais na oferta de cores de flores e a polinização no Cerrado (17/15152-1); ModalidadeBolsa de Mestrado; Pesquisadora responsável Leonor Patricia Cerdeira Morellato (Unesp); Beneficiária Amanda Eburneo Martins; Investimento R$ 81.050,80.
  6. Variação espácio-temporal no espectro de cores de flores conforme a visão dos polinizadores (nº 15/10754-8); ModalidadeBolsa de Pós-doutorado; Pesquisadora responsável Leonor Patricia Cerdeira Morellato (Unesp); Beneficiária Maria Gabriela Gutierrez de Camargo; Investimento R$ 577.414,11.
  7. Efeito de agrotóxicos no aprendizado e memória de abelhas nativas do Brasil (nº 19/20408-0); ModalidadeBolsa de Pós-doutorado; Pesquisador responsável Fábio Santos do Nascimento (USP); Beneficiário João Marcelo Robazzi Bignelli Valente Aguiar; Investimento R$ 203.497,56.
ARTIGOS CIENTÍFICOS

MARTINS, A. E. et al. Flowering phenology and the influence of seasonality in flower conspicuousness for beesFrontiers in Plant Science. v. 11. e594538. 16 fev. 2021.

TUNES, P. et al. Floral UV features of plant species from a Neotropical savannaFrontiers in Plant Science. v. 12, e618028. 7 mai. 2021.

AGUIAR, J. et al. Intrafloral color modularity in a bee-pollinated orchidFrontiers in Plant Science. v. 11, e58930009. 9 nov. 2020.

DYER, A. G. et al. Fragmentary blue: Resolving the rarity paradox in flower colorsFrontiers in Plant Science. v. 11, e618203, 15 jan. 2021.

COIMBRA, G. et al. Flower Conspicuousness to bees across pollination systems: A generalized test of the bee-avoidance hypothesisFrontiers in Plant Science. v. 11, e558684. 24 set. 2020.

MARTINS, A. E. et al. Color signals of bee-pollinated flowers: the significance of natural leaf-backgroundAmerican Journal of Botany. v. 108, n. 5, p. 788-97. 30 mai. 2021.

* Este artigo foi republicado do site Revista Pesquisa Fapesp sob uma licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o artigo original aqui.