Os hindus na Índia têm recebido uma mão – na verdade, várias – quando se trata de combater contágios mortais como a covid-19: deusas de vários braços cooptadas para ajudar a conter e matar a peste.

Coletivamente conhecidas como “Amman”, ou a Mãe Divina, as deusas do contágio – e sempre deusas, não deuses – já foram chamadas para prestar seus serviços antes. Elas foram mobilizadas em muitas das pandemias mortais que a Índia experimentou desde os tempos antigos até a era moderna.

Ao conduzir meu trabalho de campo como antropóloga cultural que estuda religião, vi pequenos santuários por toda a Índia dedicados a essas deusas do contágio, geralmente em áreas rurais e arborizadas fora dos limites das vilas e cidades.

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As deusas agem como “epidemiologistas celestes” curando doenças. Mas se irritadas, elas também podem causar doenças como varíola, pragas, feridas, febres, tuberculose e malária. Elas são amo mesmo tempo veneno e cura.

Sopro quente e frio

Uma das primeiras imagens de uma deusa do contágio registradas é a de Hariti. Esse demônio feminino que se tornou deusa foi esculpido e adorado durante a mortal praga justiniana de Roma, que chegou à Índia por rotas comerciais, matando entre 25 a 100 milhões de pessoas em todo o mundo. No final do século 19, minha cidade natal, Bangalore, sofreu uma epidemia de peste bubônica, que exigia os serviços de uma deusa do contágio. Os documentos coloniais britânicos registram as repetidas ondas de doenças que assolavam a cidade e os apelos desesperados a uma deusa chamada “Plague Amma”.

Mariamman, principal deusa do contágio no sul da Índia, em pintura da primeira metade do século 19. Crédito: Wikimedia

No sul da Índia, a principal deusa do contágio é Mariamman – da palavra “Mari”, que significa varíola e transformação. No norte da Índia, ela é conhecida como a deusa Sheetala, que significa “a fria” – um aceno à sua capacidade de esfriar a febre.

A iconografia das deusas enfatiza seus poderes terapêuticos de cura. Sheetala carrega um pote de água para curar, uma vassoura para varrer a sujeira, um galho da árvore nativa Neem – supostamente para curar distúrbios respiratórios e da pele – e um pote de ambrosia para a vida eterna. Mariamman, por outro lado, carrega uma cimitarra com a qual fere e decapita os demônios da virulência e da doença.

As deusas do contágio não são angelicais e gentis, como se pode esperar que os cuidadores sejam. Elas possuem temperamento quente, são exigentes e ardentes. São consideradas deusas do deserto – muito locais e tradicionalmente adoradas principalmente por castas inferiores, dalits (párias), povos tribais e rurais. Algumas estão associadas a práticas tântricas e magia negra.

Prontidão ritual

Aplacar as deusas através de sacrifício de sangue, oferendas decorativas e mortificação pessoal era – e em alguns lugares ainda é – uma maneira de se preparar para uma pandemia em partes da Índia.

Às vezes, piercings dolorosos, balançar-se com um gancho enfiado nas costas e autoflagelação eram oferecidos quando os pacientes se recuperavam de doenças, tanto mentais quanto físicas. Ou, em uma versão higienizada do sacrifício de sangue, pequenas imagens prateadas do paciente eram oferecidas como profiláticas contra doenças.

Os rituais geralmente envolviam variolização. Um devoto era inoculado com pus infectado e a deusa era invocada através de possessão para salvar o grupo. O objetivo era desencadear uma forma mais branda da doença e ganhar imunidade.

Hindus de casta alta e aqueles que espelham as práticas de alta casta frequentemente ignoravam e evitavam as deusas do contágio, com medo dos ritos de sangue, da possessão e dos rituais tântricos, que eles associam a cultos de castas baixas.

Mas essas deusas de contágio local se fundiram ao longo do tempo com a Divina Mãe Shakti, a personificação feminina da energia por trás da criação. Isso domesticou as deusas, tornando-as mais aceitáveis ​​para os hindus burgueses.

A vida pós-varíola das deusas

Com o amplo uso dos modernos antibióticos, retrovirais e vacinas em meados do século 20, os rituais tradicionais de cura hindu tornaram-se menos relevantes. As deusas do contágio estavam começando a ser esquecidas e ignoradas. Mas um punhado delas desenvolveu uma rica vida pós-varíola, reinventando-se para as aflições modernas. Algumas deusas deixaram de se concentrar apenas na doença.

Em Bangalore, uma cidade atormentada por acidentes de trânsito, a deusa Mariamman transformou-se de uma deusa da cólera na protetora dos motoristas. Agora conhecida como “Círculo de Trânsito de Amman”, o templo da deusa vê carros e caminhões alinhados todos os dias em busca de bênçãos, antes que os motoristas enfrentem o turbilhão mortal do tráfego da cidade.

Outras deusas surgiram para combater novas doenças. Em 1º de dezembro de 1997, dia mundial da aids, uma nova deusa chamada AIDSAmma foi criada por um professor de ciências, H. N. Girish, não para curar a doença, mas para ensinar aos fiéis as medidas profiláticas necessárias para preveni-la.

Recrutadas contra a covid-19

Durante a crise da covid-19, todas as deusas do contágio foram rerrecrutadas.

A rápida ação do governo indiano em instituir uma quarentena rígida que durou dois meses impediu o contágio generalizado, mas também significou que as pessoas não tinham permissão para ir aos templos adorar as deusas e pedir intervenção. Portanto, os sacerdotes ofereciam decorações especiais, incluindo guirlandas de limões ácidos que se acredita aplacarem as deusas.

As deusas também foram lembradas em pôsteres de artistas indianos que circulam pelo Facebook. A apresentação da artista Sandhya Kumari da “Coronavirus Mardini” – uma Mãe Índia higienicamente mascarada atacando o coronavírus com um tridente – lembrou Shakti matando o mal, uma imagem familiar para todos os hindus.

Uma legenda nacionalista foi adicionada durante a publicação: “A Mãe Índia acabará com o coronavírus, mas é dever dos indianos ficar em casa e cuidar dos entes queridos. Jai Índia!”

Coronavirus Mardini, segundo Kumari. Crédito: Sandhya Kumari/Gallerist.in, CC BY-SA

Na tradução de Kumari, a iconografia da deusa é atualizada para a pandemia. As muitas mãos enluvadas das deusas seguram desinfetante, máscaras, agulhas de vacinação e outros equipamentos médicos. O coronavírus é mantido em cadeias, imóvel e desprovido de sua virulência.

Enquanto controvérsias sobre a reabertura dos templos dominam as notícias, uma nova divindade, criada a partir de poliestireno e chamada “Corona Devi”, foi instalada em um templo dedicado à deusa da varíola. Anilan, sacerdote e único devoto, diz que oferecerá adoração a “Corona Warriors” (“Guerreiros do Corona”) – profissionais de saúde, bombeiros e outros funcionários da linha de frente. Aqui a ciência e a fé não são vistas como inimigas umas das outras, mas como trabalhando juntas, de mãos dadas.

A covid-19, sem dúvida, aumentou a carga de trabalho das deusas. E sem cura conhecida e sem vacina viável, as deusas do contágio podem muito bem ter as mãos cheias por algum tempo.

 

* Tulasi Srinivas é professora de Antropologia, Religião e Estudos Transnacionais no Instituto de Artes Liberais e Estudos Interdisciplinares do Emerson College (EUA).

** Este artigo foi republicado do site The Conversation sob uma licença Creative Commons. Leia o artigo original aqui.