O sistema político-partidário brasileiro é cheia de distorções. Para começar, não são os eleitores que escolhem seus representantes. Ao contrário, os candidatos são eleitos ou não graças aos quocientes eleitorais e partidários, um complicado cálculo matemático que indica quem vai ocupar as cadeiras do Congresso Nacional. Os primeiros meses do governo da presidenta Dilma Rousseff são o momento ideal para a introdução de mudanças, capitalizando a popularidade da recémeleita e a relação nova com o Congresso, que deve aprovar as mudanças. A reforma política deveria ser uma delas. O sistema político-partidário nacional gera uma série de distorções cujas consequências vão desde os resultados não refletirem a opinião do eleitor até o fato de o voto de eleitores de Estados como São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Rio Grande do Sul valerem muito menos do que os do Acre, por exemplo.

A reforma política é um assunto polêmico, mas se fosse feita também poderia corrigir as distorções nos valores gastos nas campanhas eleitorais, bem como valorizar o voto, fortalecer os partidos e melhorar a qualidade dos candidatos. A necessidade de mudar as regras políticas vigentes é uma bandeira que vem sendo defendida por quase todos os governos, mas nenhum se anima a realizá-la. A então candidata Dilma Rousseff chegou a propor a criação de uma Constituinte só para tratar da questão.

“NÃO EXISTE NENHUM SISTEMA POLÍTICO QUE SEJA COMPLETAMENTE JUSTO E CAPAZ DE TRANSFORMAR VOTO EM CADEIRA, SEJA MAJORITÁRIO, SEJA PROPORCIONAL. TODOS ELES GERAM SUBREPRESENTA ÇÕES OU SOBRERREPRESENTAÇÕES”

O que emperra são as muitas divergências. “Não existe nenhum sistema político que seja completamente justo e capaz de transformar voto em cadeira, seja majoritário, seja proporcional. Todos eles geram subrepresentações ou sobrerrepresentações”, diz José Paulo Martins, doutor em ciência política pela Universidade de São Paulo (USP) e professor da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio).

De fato, o sistema político brasileiro apresenta falhas. Parece óbvio que o número de cadeiras da Câmara dos Deputados deveria ser definido de acordo com o total de habitantes de cada Estado. “Por lógica, Estados com maior população deveriam ter um maior número de vagas na Câmara Federal, mas isso não acontece porque a legislação eleitoral prevê um limite mínimo e um limite máximo de cadeiras por Estado”, explica Martins.

Imposta desde os anos de governo militar, para dificultar o crescimento da oposição nos Estados onde ela era mais forte, a limitação até hoje gera uma grande desproporção na representatividade. Com uma população bem menor do que a do Estado de São Paulo, o Acre, por exemplo, elege 8 deputados federais, enquanto São Paulo, 70. Na calculadora, isso determina que o voto dos acrianos tem mais peso do que o dos paulistas. “Na verdade, São Paulo é o único Estado brasileiro sub-representado. O Estado deveria ter 120 ou mais vagas na Câmara Federal se a divisão fosse proporcional”, afirma.

Também o professor José Álvaro Moisés, diretor do Núcleo de Pesquisa de Políticas Públicas da USP, aponta falhas no sistema, que não só não aproxima o representante do representado como apresenta distorções nos números e nos cálculos para a repartição das cadeiras. “Na última eleição, por exemplo, das 513 cadeiras, o número de deputados eleitos pelo voto direto dos eleitores, e não pelo sistema de cálculo e por voto indireto da coligação dos partidos, não ultrapassou 5%, o equivalente a menos de 70 deputados.”

“Por lógica, os Estados brasileiros com maior população deveriam ter um maior número de vagas na Câmara Federal. Isso não acontece porque a legislação eleitoral prevê um limite mínimo e um limite máximo de cadeiras por Estado.” José Paulo Martins

“Na última eleição, das 513 cadeiras da Câmara de Deputados, o número de eleitos pelo voto direto dos eleitores, e não pelo sistema de cálculo e por voto indireto da coligação dos partidos, não ultrapassou 15%. Isso equivale a menos de 70 deputados.”

José Álvaro Moisés

Como ocorreu em pleitos anteriores, quando a votação do então candidato Enéas Carneiro (Prona) possibilitou que personagens desconhecidos tivessem assento na Câmara Federal, no último, a expressiva votação do deputado Tiririca (1,2 milhão de votos) fez com que alguns candidatos de seu partido (PR) fossem eleitos mesmo sem ter quociente eleitoral. Para Moisés, essa é uma distorção que afeta o princípio da representação. “A ideia de que no sistema de representatividade proporcional brasileiro é o eleitor que escolhe o candidato é um equívoco.”

“Os candidatos são escolhidos pelo partido, que leva em consideração o dinheiro que eles têm para fazer a campanha”, prossegue Moisés. Independentemente disso, não é o voto direto do eleitor que elege o candidato, mas um mecanismo de cálculos no qual se estabelece o quociente eleitoral (o número de votos válidos dividido pelo número de cadeiras). Depois, considera-se o quociente de cada partido, que é o número de votos obtidos pelo partido dividido pelo quociente eleitoral. Graças a esses cálculos é que candidatos com poucos votos são eleitos.

“Hoje, o eleitor vota na expectativa de que alguém será seu representante, mas seu candidato terá de passar por todos esses mecanismos que nem sempre garantem que isso ocorra”, diz o professor da USP. “Com a implantação da fidelidade partidária em 1997, quando o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) decidiu que o mandato pertencia ao partido, a maioria dos políticos é eleita graças aos votos dados aos partidos. São poucos os candidatos que conseguem ultrapassar o quociente eleitoral”, completa Martins.

Pescaria

Moisés observa que os distritos eleitorais brasileiros são muito grandes, possibilitando que cada partido apresente o número de cadeiras mais a metade, num total de mais de 100 candidatos. Para complicar, os partidos, em caso de coligação, podem apresentar duas vezes o número de vagas – são 140 cadeiras por partido. Como são muitos partidos e coligações, há muitos candidatos. “Ainda que esclarecido, o eleitor tem de ‘pescar’ alguém no meio de mais de três mil candidatos, pois é impossível ter informações sobre todos eles, comparar as suas propostas, saber o que pensam e a quais questões públicas se dedicam.”

Na sua opinião, é equivocada a retórica dos defensores do voto proporcional, segundo a qual é o eleitor que escolhe seu representante. Até porque o tamanho dos distritos e o grande número de candidatos diluem a função de representação. “A relação entre os dois, eleitor e representante, é praticamente inexistente, pois o eleitor não lembra em quem votou, não tem contato com quem elegeu e não sabe como controlar o que ele faz.”

Ao digitar seu voto, o eleitor tem a expectativa de que alguém será seu representante. Mas seu candidato terá de passar por complexos cálculos matemáticos que nem sempre garantem que isso ocorra.

Para Martins, não é o sistema político brasileiro que está ruim, mas sim a qualidade dos candidatos. Contudo, questiona se há alguma reforma capaz de melhorar o nível dos parlamentares sem que se adotem medidas antidemocráticas, como a de só aceitar candidatos com nível superior. “Não se pode fazer isso. Essa é uma questão de amadurecimento, que exige a participação política de todas as classes sociais.”

Quanto ao voto distrital, que prevê a divisão dos Estados em distritos para, a partir deles, a população escolher seus representantes, tanto Moisés como Martins são favoráveis e apontam o sistema político-partidário adotado na Alemanha como exemplo. Para Martins, o sistema alemão – do voto distrital misto – é o que mais se aproxima da estrita proporcionalidade, pois corrige, pelo voto proporcional, todas as distorções que ocorrem numa disputa majoritária. Na Alemanha, o eleitor tem direito a dois votos: vota no candidato do seu distrito e também em um candidato de uma lista partidária (os partidos elegem seus representantes proporcionalmente a partir de uma lista preestabelecida).

“Com isso, na Alemanha, se o partido tiver 30% dos votos, terá 30% das cadeiras. Se tiver 25%, ocupará 25% das vagas. Consegue-se, então, o voto proporcional de todos”, diz Martins. Por sua vez, Moisés explica que o objetivo dessa combinação – metade do Parlamento alemão é decidida pelo voto majoritário distrital, e a outra metade, pelo proporcional – é, por meio de um mecanismo, aproximar o eleitor de seu representante e, pelo outro, assegurar que as minorias não sejam prejudicadas.

Texto: fabiola@planetanaweb.com.br