“O lado negro da vida”, “ovelha negra”, “mercado negro”: para pesquisador e autor de “Racismo Linguístico”, a linguagem está profundamente ligada à discriminação. “O racismo linguístico mantém outras formas de racismo.”Se na hora da expressão a língua liberta, para muitos, ela também oprime. Gabriel Nascimento percebeu isso de forma mais consciente alguns anos atrás, quando atuava como professor de inglês e se deu conta de que o racismo afetava a sua própria trajetória profissional. E transformou o tema em tese: Do limão faço uma limonada: estratégias de resistência de professores negros de língua inglesa, defendida na Universidade de São Paulo em 2020.

Ele se debruçou profundamente sobre o tema. E cunhou a expressão “racismo linguístico”. “Defino como toda forma de racialização que ocorre através da língua, na língua e pela língua”, explica em entrevista à DW Brasil.

Em 2019, ele lançou o livro Racismo linguístico: os subterrâneos da linguagem e do racismo. Na obra, ele demonstra como muitas expressões e palavras do dia a dia estão impregnadas de uma carga semântica profundamente discriminatória frente aos negros. São termos associados a algo negativo, como “lado negro da vida”, “mercado negro” e “ovelha negra”. Ou ainda naturalizações, como se referir a um africano em regime de trabalho no período colonial como escravo, e não como escravizado.

Para Nascimento, racismo linguístico é “tão grave” porque às vezes é “o que mantém outras formas de racismo”. “O racismo cordial deriva do racismo linguístico. […] Minha tese é que as línguas são a base do racismo. E o racismo linguístico é tão grave porque ainda traz a percepção de que sua destruição não é grande 'porque é só linguagem'”, considera.

Atualmente, o linguista é professor na Universidade Federal do Sul da Bahia. Prestes a lançar um romance – O rio do sangue dos meninos pretos –, no qual conta a história de um mundo em que todos os negros foram exterminados.

DW Brasil: O que é racismo linguístico?

Gabriel Nascimento: Defino como toda forma de racialização que ocorre através da língua, na língua e pela língua. A língua permite três dimensões possíveis de como o racismo pode existir nela. A primeira é o que a gente chama de metáforas racistas, [chamar alguém de] macaco, por exemplo.

Temos também palavras que se acoplam na língua de tal forma que elas dão conta de aprisionar, de certa forma, o sentido. Não conseguimos enxergar nada além daquele sentido. Por exemplo: expressões como ovelha negra, o lado negro da vida. São palavras que para a gente já estão perfeitamente ressignificadas, mas continuam também a fomentar seu sentido negativo. Temos de eliminar o sentido negativo dado a essas expressões. Não se trata de eliminar os termos em circulação, mas de mudar o sentido negativo. O lado negro da vida não é uma coisa ruim.

Por último, o próprio ato da fala é um ato de racismo linguístico, pois é resultado de políticas linguísticas. Em determinado momento [no Brasil colonial] os jesuítas estabeleceram domínio [cultural], e esse domínio criou políticas linguísticas junto a populações indígenas e negras. Hoje temos políticas linguísticas diretas e indiretas. Por exemplo, a maneira como a escola trata com preconceito o falar de populações de origem africana, ignorando o quanto o português brasileiro é profundamente africanizado. Esse fato gera o principal aspecto de racismo através da língua. A primeira discussão relacionada ao racismo linguístico é sobre [o uso de] a palavra “negro”.

O termo “negro” pode ser entendido como racista?

Ele é um termo originalmente racista. Os africanos não eram negros, não são negros. Eles não tinham essa visão. Originalmente, raça é um conceito [cultural] do Ocidente. [No Brasil] diferentemente do inglês, houve uma ressignificação da palavra negro. No inglês, negro [nigger] incomoda. É preto, black. A tradição da língua vai dizer muito sobre o sentido que a gente vai dar à palavra. Negro pode ser ofensivo, mas é uma palavra que foi reconstruída.

No Brasil é o termo inclusive utilizado pelo movimento negro… Ou seja: é o termo ligado ao orgulho, à valorização, à luta…

É um fenômeno próprio de cada cultura, vai acontecer em cada espaço. No Brasil, isso passou a acontecer no século 20, em razão da imprensa paulista que entre fim do século 19 e começo do 20 passou a publicar uma série de historiazinhas racistas sobre o negro, para tentar convencer que o negro era um perigo. Então [como resposta] começaram a aparecer a imprensa negra brasileira e outros movimentos, eventos [sempre utilizando o termo]. Usam a palavra negro porque existia uma tentativa de reagir a essas visões e também a uma visão racista do início do século 20, com teorias de que até o início do século 21, a gente não teria mais negros e mestiços no Brasil.

Foi então uma resposta, um contra-ataque. Adotou-se, portanto, o termo que antes era pejorativo?

Sim, era pejorativo.

Como você se deu conta de que as palavras também podem ser ferramentas para a perpetuação do racismo?

Trabalhamos muito com a ideia de que palavras são algo acabado. Mas a palavra ganha um sentido muito provisório, sentidos emprestados a ela. O termo negrinho, na boca de uma pessoa negra ou em uma situação de intimidade, pode não ser racista. Mas dito em espaços públicos é racista. Em cada contexto esse termo vai criando correlações.

O verbo denegrir surgiu antes do [conceito de] negro. Os africanos passaram a ser chamados de negros pelo sistema colonial moderno. Negro é uma palavra ocidental que começa a aparecer nos dicionários franceses a partir do século 16. Denegrir é uma palavra racista ou não é? Denegrir surgiu antes do negro, vem do latim e significa manchar. Não necessariamente escurecer, isso é importante. Mas essa palavra acabou se tornando cada vez mais referente ao negro, em uma construção do século 18, na raiz de todo o mal da ideologização do racismo. Há um conjunto de palavras que são, sim, racistas, porque passaram a ser mais conhecidas nesse contexto, nesse período.

Há termos e expressões assim incorporadas ao dia a dia. Mesmo quando elas são utilizadas sem consciência do significado racista, isso também é um ato de racismo?

Sim, racismo não é só o ato praticado conscientemente. Seria muito fácil, inclusive. Acho que justamente a gente tem de focar… Não dá para pegar um fascista, um nazista e tentar colocar na cabeça dele que ele está errado, nesse caso não dá para ter diálogo ou pedagogia. Mas para uma pessoa que reproduz certos valores de maneira indireta, há [solução]. A gente precisa focar essas pessoas, mostrar que isso também é racismo. Reproduzir esses discursos é a base do que constitui o hegemonismo, a supremacia do outro.

O racismo linguístico é tão grave como outras formas de racismo?

Tão grave e às vezes é o que mantém outras formas de racismo. O racismo cordial deriva do racismo linguístico. Por exemplo, dizer “ah, você é uma negra bonita” cria a percepção da necessidade de um adjetivo: “ela é negra, mas ela é bonita”. Esse marcador tem um papel, apoia-se na linguagem, no racismo linguístico. Minha tese é que as línguas são a base do racismo. E o racismo linguístico é tão grave porque ainda traz a percepção de que sua destruição não é grande “porque é só linguagem”.

Então, como combatê-lo?

Eu acho que tem duas maneiras. Uma está em andamento, é o aspecto ligado à presença de pessoas negras em [diferentes] espaços. Isso tem causado mudanças, questionamentos, discussões sobre tais temas. O segundo aspecto tem a ver não só com a conscientização, mas também com uma exemplificação. Ao falar com pessoas que colocam esses pontos, eles [os que usam termos racistas sem se dar conta disso] passam a sentir o peso. Porque a gente vai roubando coisas das falas dos outros, isso é uma aspecto crucial da linguagem. Esses dois pontos vão gerando novas demandas e isso provoca o que chamamos de conscientização.