No início do ano passado, o barril de petróleo custava US$ 70. Este ano, o preço já andou acima dos US$ 147 e, embora tenha caído em meados de agosto para cerca de US$ 113, seu comportamento futuro Nvirou uma grande incógnita. O óleo mais caro traz uma série de conseqüências, algumas delas facilmente perceptíveis: aumentos nos preços dos combustíveis, dos alimentos (a partir dos acréscimos nos custos de fertilizantes), dos transportes… Outras, porém, ficam mais claras apenas com o passar do tempo, e seu efeito em geral é bem mais duradouro. Uma delas se relaciona a toda uma forma de ocupação urbana criada nos Estados Unidos e exportada para países da Ásia e da América Latina, Brasil incluído.

Na primeira metade do século 20, a área de Los Angeles passou por uma transformação vigorosa, graças sobretudo a dois fatores: um grande aumento na produção automobilística – escoada a preços acessíveis para a classe média – e os baixíssimos custos do petróleo na época. Isso permitiu que os moradores da região (sujeita a terremotos, é bom lembrar) optassem por moradias baixas e amplas, em vez de se adensar em prédios residenciais, como ocorria em cidades como Nova York ou Chicago. Assim, a metrópole se esparramou por uma sucessão de municípios, cujas fronteiras se diluíam numa paisagem tomada por subúrbios. Para ligá-los, uma impressionante rede de estradas (as freeways) começou a ser construída nos anos 1940. O fim do sistema de bondes local fez do automóvel o meio de transporte por excelência da região – uma autêntica “Autopia”, como definiu o crítico de arquitetura britânico Reyner Banham em 1971.

Com isso, percorrer distâncias enormes diariamente passou a ser rotina na região metropolitana de Los Angeles – sem, a princípio, incomodar os motoristas. Afinal, qual seria o problema de rodar 100 quilômetros para trabalhar, se a estrada é impecável e a gasolina custa quase nada? O único incômodo parecia ser o número cada vez maior de carros nas estradas, combatido por novas freeways. Preocupação com as emissões de poluentes? Em princípio, nenhuma.

Em nenhum outro lugar dos EUA a Autopia ficou tão evidente, mas o modelo foi adaptado a partir dos anos 1950 para outras regiões com grandes espaços disponíveis. Assim, multiplicaramse país afora os subúrbios/condomínios de classe média/alta e os shopping centers à beira de estradas. Em meio a tudo isso, o automóvel reinava, supremo. “Há um sonho americano de mobilidade, liberdade e riqueza, e o carro é parte disso tudo”, disse o professor Michael Dear, especialista em urbanismo da Universidade do Sul da Califórnia, ao jornal inglês The Observer.

Aliado à crise de crédito que abalou o mercado imobiliário norte-americano, o aumento no preço dos combustíveis tornou desinteressante morar em condomínios distantes do trabalho, do estudo e do lazer. Um cenário comum nos últimos meses no país é o das casas de subúrbio cujas hipotecas foram executadas.

O MODELO É CLARAMENTE insustentável, e a disparada nos preços do petróleo deixou nítido seu calcanhar-deaquiles. Com a gasolina e o diesel nas alturas, os americanos passaram a refletir melhor sobre a destinação de seus gastos. Um dos primeiros efeitos foi a redução do uso do automóvel. Em março, segundo a Federal Highway Administration, os americanos reduziram em 4,3% o número de milhas percorridas no mesmo período de 2007 – a maior queda mensal desde que a instituição começou a fazer seus registros, em 1942. Por outro lado, houve um sensível incremento do transporte coletivo. Em Riverside, na região metropolitana de Los Angeles, o movimento dos ônibus aumentou 12% de um ano para cá (40% no que se refere a veículos que percorrem rotas relacionadas ao trabalho dos usuários); o sistema de caronas ganhou 40% a mais de passageiros e o trem metropolitano, 8%. O número de usuários do sistema ferroviário do sul da Flórida subiu 28%, e na Filadélfia, 11%.

PRIMAZIA DO AUTOMÓVEL

O modelo de urbanização que privilegia os automóveis surgiu nos anos 1950 com o subúrbio de Levittown, em Long Island (no estado de Nova York). A partir daí, as cidades americanas ganharam subúrbios cujas residências estavam a quilômetros dos locais de trabalho e estudo, das lojas e dos pontos de entretenimento. Nessas condições, quem não tem carro à sua disposição fica muito isolado. O esquema fez os centros históricos de cidades mais antigas se degradarem, com perda de funções econômicas e ocupação basicamente feita por grupos de poder aquisitivo menor (que, dessa maneira, economizam em transporte).

OPÇÕES MAIS ECONÔMICAS

A crise do petróleo tem batido forte nas montadoras americanas, cujas vendas estavam baseadas nos beberrões utilitários esportivos e picapes. Além da GM, a Ford também vive momentos delicados: só no segundo trimestre de 2008, acumulou perdas de US$ 8,7 bilhões. Para se adequarem aos novos tempos, as fábricas passaram a apostar em veículos menores e/ou mais econômicos. Seguindo a trilha aberta pelos híbridos Toyota Prius (19 quilômetros com um litro de gasolina) e Honda Insight (20 km/l), a GM pretende lançar em 2010 o Chevy Volt (63 km/l). No mesmo ano, a Ford deverá ressuscitar o Escort, cuja versão híbrida deverá fazer 42,5 km/l.

CONDOMÍNIOS URBANOS

O modelo norte-americano de condomínio trazido para o Brasil (exemplificado em Alphaville, perto de São Paulo) já tem concorrência aqui – dirigida, por ora, apenas à classe alta. São os condomínios mixed use (“uso misto”), que juntam na mesma área prédios residenciais, comerciais e um shopping center, permitindo morar, trabalhar, divertir-se e fazer compras em segurança. Na esteira de cidades como Nova York (Time Warner Center) e Kuala Lumpur (Petronas Towers e Kuala Lumpur City Center), São Paulo já tem dois: o Parque Cidade Jardim, interligado ao shopping Cidade Jardim, e o Parque Villa-Lobos, interligado ao Shopping Villa-Lobos.

Enquanto isso, as vendas de automóveis chegaram ao seu nível mais baixo desde 1993. Na última semana de junho, as montadoras americanas informaram uma queda de 18% no comércio de veículos. À frente desse desastre estão, naturalmente, os grandes utilitários esportivos e as picapes, contumazes consumidores de combustível. Só a General Motors já interrompeu a montagem desses veículos em quatro de suas fábricas.

Enquanto carros mais econômicos não chegam ao mercado, os americanos tentam adaptar- se aos novos tempos. Como muitos locais não têm um sistema de transporte coletivo confiável, o jeito é passar mais tempo em casa. Hábitos arraigados, como desprezar caronas e ir com freqüência a shopping centers, estão sendo revistos.

Construídos com base no conceito do transporte individual fácil e distantes do trabalho, das escolas, das lojas e de opções de entretenimento, os subúrbios viraram verdadeiras armadilhas nos tempos do combustível caro. Em artigo publicado na revista Atlantic Monthly no início do ano, o especialista em urbanismo Christopher Leinberger escreveu, que, no futuro, eles se tornarão favelas dominadas pelo crime, enquanto os centros das cidades serão revitalizados. (Segundo uma recente pesquisa com corretores imobiliários, atualmente mais de 75% dos candidatos a comprar uma residência demonstram interesse em viver em áreas urbanas.) Em alguns lugares, isso parece estar mesmo a caminho: enquanto dezenas de milhares de casas estão sendo deixadas por moradores vitimados pela crise imobiliária, muitas regiões já mostram aumento nos índices de criminalidade e de violência associada a gangues. Por outro lado, a oportunidade comercial de atender às necessidades desses habitantes e o barateamento do preço dos imóveis podem atrair empreendedores para os subúrbios, o que lhes daria progressivamente características de pequenas cidades.

O PETRÓLEO CARO não afetou apenas os automóveis. Com a elevação de custos, as empresas aéreas americanas reduziram freqüências e desistiram de determinadas rotas. Quem mais perde com isso são as cidadezinhas da parte central do país, cuja economia encolhe ainda mais à medida que os agricultores não conseguem abastecer os veículos para cuidar de suas lavouras. Os altos preços dos fertilizantes levaram alguns fazendeiros mais abastados a reabilitar os cavalos para desempenhar determinadas tarefas antes a cargo de máquinas agrícolas.

O panorama parece desolador para muitos, mas há quem o veja de forma positiva. Alguns ecologistas observam que as economias locais tendem a explorar mais as possibilidades de produção da vizinhança, em vez de mandar buscar artigos a milhares de quilômetros dali. “A distância agora é uma inimiga”, assinalou ao The Observer o ex-repórter e ambientalista Bill McKibben, autor do clássico O fim da natureza (publicado em 1990 no Brasil pela Nova Fronteira).

Mas, enquanto é refreado nos EUA, o processo parece estar bem vivo em outros países. Em visita recente à China, McKibben viu lá diversas reproduções orientais dessas mazelas urbanísticas americanas. “Uma questãochave para a Terra é se os chineses ainda terão tempo para construir, em vez disso, uma versão da Europa – o aquecimento global provavelmente vai depender da resposta a essa pergunta”, avalia o ambientalista.