Nem todos os vizinhos gostam, mas segunda-feira é sagrado: o som do tambor se eleva ao cair do sol. Quem coordena as aulas e ensaios do taikô, a milenar percussão japonesa, é Herik Ogassawara. Aos 16 anos, ele não deixa dúvida sobre seus traços mestiços, a pele morena e olhos puxados. A herança oriental veio da parte materna: Herik é neto de Geni Gochi, uma filha de imigrantes que há cinco anos resolveu emprestar o quintal da sua casa não apenas para os ensaios do taikô, mas também para as aulas de karaokê e de culinária e para outras manifestações típicas da comunidade japonesa que mora em Assaí.

Assaí é um pequeno município do norte do Paraná. Desbravar a mata alta, descobrir a potência da terra vermelha e levantar uma cidade que exibe até hoje inúmeros olhos rasgados são fatos que ilustram mais um capítulo da história da imigração japonesa no Brasil, que comemora agora, em junho, o seu primeiro centenário.

Os japoneses já estavam no Brasil há mais de duas décadas quando Assaí foi fundada, em 1932. A cidade é um dos símbolos do movimento dos imigrantes, além do Estado de São Paulo, para onde vieram de início trabalhar nas lavouras de café. Na primeira metade do século passado, Assaí era uma cidade rural, que se comunicava em japonês. Setenta anos após sua fundação, o lugar, é claro, mudou muito.

Os olhos estão mais redondos e as crianças já não falam mais no idioma tradicional com os avós. Não acredite, porém, se disserem que do Japão não há mais nada por ali. Aulas de japonês são ministradas nas escolas públicas, encontros de karaokê ocorrem com freqüência, assim como o beisebol, o judô e o sumô são os esportes preferidos. Não há dúvida que a cidade paranaense ainda faz justiça ao nome com o qual foi batizada. Assaí só poderia mesmo significar “sol nascente”.

Se foi uma localidade construída para abrigar os agricultores japoneses, nada mais natural que a cidade fosse levantada com uma silhueta que lembrasse o país de origem. A madeira, abundante na época no Paraná, somada à tradicional arte da carpintaria japonesa, esculpia – e não só construía – as casas. No entanto, o poder da alvenaria foi imbatível e hoje restam poucas construções originais.

MAS BASTA PASSAR em frente à casa do dentista Yukio Kumata, 74 anos, para imaginar como era a cidade há 50 anos. Não havia uma residência que não exibisse a guenkan, a varanda cerimonial. Também era obrigatória a decoração com ranma, uma espécie de rendilhado esculpido em madeira.

“A parte externa era nos moldes japoneses, mas, por dentro, a arquitetura era diferente, pois aqui o tradicional hábito de tirar os sapatos para entrar em casa foi abandonado. Sem falar que os imigrantes começaram a viver em casas compartimentadas, com módulos fixos, diferente das residências japonesas, marcadas pela flexibilização e mobilidade dos ambientes”, conta o arquiteto Humberto Yamaki, da Universidade Estadual de Londrina (PR).

Da guenkan da sala da família Koguishi, no bairro rural do Palmital, pode ser observada outra forte tradição japonesa: a paixão pela jardinagem. Cuidar das plantas é uma das atividades herdadas e exercidas com afinco por Nair Yoko, que vive com o marido, Cairo, na propriedade.

“Mas não olha muito não que está feio. Com a seca deste ano, não sobraram muitas flores”, ela se apressa em dizer. A maneira de tirar a atenção dos visitantes que sempre pedem para ver as plantas coloridas é levá-los até a cozinha e oferecer toda a variedade de frutas ali cultivadas, além de alimentos típicos da culinária japonesa.

Em instantes sai o moti, o bolinho de arroz servido no Ano-Novo, e o hoshigaki, um caqui seco. E se alguém falar sashimi, pode apostar: se houver peixe na geladeira, ela irá fatiá-lo em instantes. “Mas tem coisa de japonesa que eu não tenho, não. Eu falo muito e todo mundo acha que japonês é quietinho. Também sempre fui muito curiosa. Queria saber tudo e tomei muita bronca dos meus pais por isso”, conta Nair, sempre falante, entre um telefonema ora atendido em português, ora em japonês.

Cairo e Nair estão em Assaí desde crianças e fazem parte da primeira geração de filhos de imigrantes nascidos em terras brasileiras. “Meu pai era carpinteiro profissional no Japão, mas veio para cá com o pensamento fixo de plantar café. Era por isso que todos vinham. A situação no Japão estava ruim e falavam que o dinheiro aqui dava em árvore (o pé de café). O objetivo era vir, juntar e voltar, mas isso nunca aconteceu. Ao chegar ao Brasil, a realidade era dura e fomos ficando. Eu e meus oito irmãos nascemos aqui”, recorda Cairo.

DA DURA REALIDADE da infância, o agricultor lembra de quando o pai chegou a Assaí. Na época, encontrou apenas mata virgem na seção do Palmital. Coube aos imigrantes, então, derrubar a mata, dar início ao plantio e percorrer dez quilômetros a pé para chegar ao comércio. O medo da onça e de outros animais selvagens era latente. Das doenças, uma das mais temidas era a difteria, que levou, ainda menino, um dos irmãos de Cairo.

“Eu também peguei difteria, mas consegui chegar ao médico em tempo. Por sua vez, a comida era outra dificuldade. Lá, no Japão, os pratos eram à base de peixe. Aqui, imperava a carne seca.” Para sentir o sabor dos pescados, o avô de Cairo fazia uma lata de sardinha render ao máximo. “Ele cozinhava a espinha da sardinha várias vezes com o arroz branco”, recorda.

Passada a primeira fase de adaptação dos japoneses no Paraná, já com as propriedades rurais conseguindo colher as primeiras safras de café, a vida em Assaí se tornou mais tranqüila. As famílias se organizaram para construir escolas em cada uma das propriedades rurais.

“A escola é uma das coisas mais importantes para a família japonesa. Eu tive sorte e fiz faculdade. Queria fazer arquitetura, mas acabei fazendo agronomia em Viçosa, para dar continuidade às atividades do meu pai por aqui”, diz Cairo. As escolas somente fecharam na época da Segunda Guerra Mundial, quando qualquer atividade japonesa em grupo era considerada crime pelo governo brasileiro, que se posicionou ao lado dos aliados no conflito.

A TRADIÇÃO DE PAI para filho se manteve na casa dos Koguishi. Lídio e Lincon, dois dos quatros filhos do casal, também seguem o ofício do campo e cursaram agronomia. Os tempos de universitário trazem outra boa recordação para Cairo. Apesar de morar perto, foi apenas na universidade que ele conheceu a eletrizante Nair. Ela cursava economia doméstica, também em Viçosa. “Ah, desde aquele tempo ela já era assim, espevitada. Não mudou nada”, afirma sorrindo.

Acima, no sentido horário, aula de taikô, uma das atividades praticadas por descendentes dos imigrantes japoneses em Assaí; o casal Cairo e Nair; e o moti, o bolinho de arroz, um prato típico da gastronomia do Japão.

Mas não é para todos os assaienses que o ritual de passar a atividade de sustento da casa para o filho mais velho se mantém. Nos anos 80, com o fenômeno dos dekasseguis, muitas famílias de Assaí ficaram “desfalcadas”. Seguindo um caminho parecido com o dos antepassados, de buscar uma vida melhor e juntar dinheiro em outro país, alguns não voltaram ou se desinteressaram pela terra. Foi por isso que a família Koghishi arrendou a terra do vizinho Noboru Okazaki, hoje com 94 anos.

A arte do shodo, a caligrafia japonesa escrita em sumi (tinta preta) e com pincel sobre papel de arroz.

Okazaki, que chegou ao Brasil no terceiro navio da imigração, o Wakasa Maru, não tem como cuidar de seu sítio. Seu único filho está no Japão e não dá esperanças de que pode voltar um dia. Também a sua única neta faz faculdade em Londrina. Para dificultar a situação, depois de um assalto, ele se viu obrigado a morar com a nora na cidade e a desmanchar a casa com varanda cerimonial e madeira rendilhada. Dos bonsais que cultivava no jardim, agora só resta a lembrança.

Mas nem tudo na memória é ruim. Algo que Okazaki gosta de lembrar é de quanto se empenhou para construir a primeira igreja do bairro do Palmital. Seu trabalho não se restringia só à edificação, mas também ao leva-etraz de pessoas da catequese para ensinar os preceitos do catolicismo às crianças. Ele também foi a primeira pessoa a ser batizada em Palmital.

Okazaki, assim como o dentista Kumata, rompeu outra tradição secular do Japão: os dois trocaram o budismo dos pais pelo catolicismo ocidental. Mas a cidade ainda abriga um centro budista que mostra a sua força quando um devoto falece. “A cerimônia fúnebre é um dos alicerces do budismo e são nessas datas que abrimos, quando há necessidade de atender alguém”, diz o monge Atsunori Imai, 35 anos.

IMAI CONFESSA que o templo foi se esvaziando com o tempo e considera o fato normal – afinal, aqui não é o Japão. “Fala-se bastante sobre budismo na mídia, mas o que praticamos, o Terra Pura, não é o mais citado. Nossa linha é a mais popular no Japão, com dez mil templos. No Brasil, porém, comentam muito do budismo esotérico, como o tibetano, o meditativo e o zen-budismo. Nossa linha prega a palavra”, explica o monge.

Mas, se o templo anda vazio, o toque do sino não foi esquecido. É ele quem anuncia a chegada do Ano-Novo oficialmente a Assaí todos os anos, com suas 108 badaladas. É um som que não perde a força, assim como o taikô tocado por Herik e os seus alunos de 7 a 70 anos de idade. O sino, por sinal, deve soar ainda mais forte no ano de aniversário da imigração.

Quando deixa o taikô de lado, Herik se diverte com os amigos ouvindo J-Pop, a música pop japonesa que é febre entre os adolescentes, e baixando da internet mangás e animês, os quadrinhos e desenhos animados do Japão que exibem personagens de olhos mais para arredondados que para rasgados, como os de Herik.

Modernidade que combina com a ancestralidade dos tambores. A terra do sol nascente ocidental, assim como a pátria oriental, sabe que não existe nada mais típico na cultura japonesa de hoje do que o encontro harmônico entre os hábitos milenares e a velocidade da vida moderna.