A chef Ana Luiza Trajano inova a gastronomia com uma antropologia intuitiva. Sem medir esforços, viaja pelo Brasil para descobrir cardápios que incluem comunidades, histórias, técnicas e ingredientes

Desvendar e entender a cozinha que existe nos locais mais remotos do Brasil é um plano a longo prazo ao qual Ana Luiza Trajano se dedica há vários anos. Entre 2003 e 2013, ela fez 28 expedições de pesquisa com o intuito de mapear o país de norte a sul. O que se come numa pequena comunidade do Acre? Como é feita a farofa de sururu no Maranhão? Para responder a essas perguntas, viajou por estradas tortuosas, andou a pé ou de lancha voadeira, tomou banho de cuia e provou tudo o que encontrou pela frente.

No lado B da vida de Ana Luiza não falta conforto. Formada em administração e herdeira das 743 lojas da rede de varejo Magazine Luiza em 16 Estados, mora em São Paulo, onde comanda o restaurante Brasil a Gosto, um sofisticado endereço no bairro dos Jardins. Ali, além de pratos mais conhecidos, oferece cardápios regionais que trazem de frutas do Cerrado a peixes da Amazônia. Para preparar essas receitas, recebe até produtos por Sedex enviados por uma rede de fornecedores criada nas comunidades que visitou.

Uma síntese dessas viagens está no livro Cardápios do Brasil, lançado pela editora Senac, no qual lista 167 ingredientes típicos e interpreta 47 receitas, do Amapá ao Rio Grande do Sul. A obra percorre os mais diferentes paladares e “mistura tudo numa grande receita”, como diz, no prefácio, a antropóloga Paula Pinto e Silva. Como muitos produtos e frutas são pouco conhecidos, no final, há um glossário que especifica a origem regional e os possíveis usos. Nesta entrevista, a autora conta por que decidiu pesquisar a diversidade brasileira à mesa.

Por que pesquisar o Brasil?
Minha mãe sempre disse que a gente tem que ter paixão pelo que faz e deixar um legado. Por isso, escolhi a cozinha. Aí, quando fui morar na Itália, vi que cada cidadezinha tinha suas receitas, achava sua comida melhor e brigava por conta disso. Sabe o orgulho de ter e de pertencer? Então pensei: quero contribuir para que a gente aprenda a valorizar o que tem aqui. Não para os estrangeiros, para a gente. Para que essa comida saia da coxia e vá para a mesa dos grandes restaurantes. Sempre fiquei indignada ao ver que nos eventos não se oferecia nada do que a gente comia, mas massa, risoto, comidas consideradas finas.

Na sua casa também?
Na minha, a gente era mais simplão, porque nossa origem é humilde. Então, quando via isso, eu achava incabível, era como se tivesse a comida do rico e a do pobre. Para receber, era a do rico.

Quando você nasceu, a família ainda era humilde?
Não, nasci numa situação melhor, mas não tão boa como a de hoje. Quando era pequena, minha mãe era gerente na loja do Magazine Luiza e meu pai, comerciante, tinha posto de gasolina. A gente morava no centro de Franca (SP), numa casa em frente ao museu. Mas eu estudei em escola pública, no grupo escolar. Não porque a família não tinha condições de pagar uma escola particular, mas porque ali estava a melhor professora.

Essa separação entre comida chique e popular era comum?
Sim, nas casas quem cozinhava era a mãe, com ajuda de uma empregada. Eu fi cava na cozinha, fazia pães rústicos, pães de queijo, mas quando iam receber, compravam coisas industrializadas. Eu não entendia e dizia: “Mas isso que vocês fazem é maravilhoso, muito melhor”. Não via o porquê da dissociação. Também não entendia por que se desvalorizavam certas comidas. Por que o arroz caipira ia para a mesa em panelão feio?

Você sempre teve essa ligação com a estética da comida?
Sim, eu pegava todas as louças boas pra levar para a mesa e pegava flores no jardim para enfeitar. Eu era chata. Queria tomar água e suco em copos que não fossem de geleia. Por que tinha que haver uma coisa para o convidado e outra para a gente? O ato da refeição, para mim, é sagrado. Aí eu ia lá e pegava a travessa para servir. Escolhia uma toalha bonita. Repaginava. Acho que isso veio comigo. Mais tarde, quando vinha a São Paulo, minha mãe sempre levava a gente nessas festas da Brastemp, dos fornecedores das lojas, que só serviam coisas francesas. Nada contra cozinha francesa ou italiana, que eu amo. Mas a gente está no Brasil.

No fim, sua grande mentora na cozinha foi a avó paterna?
Sim. Ela me contava como era feita a goma, o cerimonial que havia por trás da carne de sol. Esse meu desejo de conhecer os rituais dos processos vem muito dela. A Vó Zuleide (nasceu em Acopiara, no interior do Ceará) veio como retirante para São Paulo, naqueles navios antigos. Ela viveu uma ascensão social, mas na mesa sempre manteve a tradição. Tinha o senso do que é bom, e achava que não era por ter enriquecido que ia mudar. Ela fazia pirão de tutano, carne de sol, paçoca, biju de tapioca.

Como surgiram as expedições?
Se hoje tem pouca bibliografia sobre a comida do Brasil, 12 anos atrás tinha muito menos. Eu sou uma pessoa que aprende vivenciando. Tenho necessidade de conhecer. Acho que a experiência vivida é muito mais profunda do que a lida. Sempre gostei de entender os processos da comida: como era feita, de onde vinha. Viajar e explorar sempre foram da minha natureza. Sou uma estranha perto dos meus irmãos. Enquanto eles gostavam de ficar na cidade, eu preferia ir para o mato. Tirava leite de vaca, essa coisa de roceira, sabe? Nas férias ia para Mirante do Paranapanema (SP), na casa de minha tia, que não tinha eletricidade. Sempre gostei de programa de índio, como diz minha irmã.

Qual foi a viagem mais difícil?
Para a Terra Indígena Anawa, no Acre. Foi difícil de chegar, levei dois dias. Fui para Rio Branco, depois peguei um ônibus, depois um frete até a aldeia.

Você estava com quantas pessoas?
Trinta. Eu queria entender a etnia. Foi a primeira vez que fiquei numa comunidade indígena. É que já sou toda “fora da caixa”. Acho isso natural. Vou para o Amapá, tomo banho de cuia, durmo na rede, isso para mim é corriqueiro. Uma vez, levei minha família pra assistir à procissão e passar meu aniversário na Festa do Divino em Pirenópolis (Goiás). Meu irmão estranhou e achou que estava num superprograma off road (ri). Como assim, se a gente está numa pousada, com eletricidade, água, aquecimento? Muitas das comunidades que visito no Norte e Nordeste não têm nada disso.

Alguma viagem foi perigosa?
Teve uma viagem em que eu estava grávida de oito meses do Pedro (filho mais velho, hoje com 6 anos). Meu médico disse que eu não podia viajar. Mas não liguei e fomos para o interior do Maranhão. Aí a gente pegou uns caminhos, umas estradas de terra, eu juro, achei que ia ter o bebê no meio da viagem. Quando cheguei, sentia tanta cólica que fiquei com culpa e medo de que tivesse acontecido alguma coisa.

O que você busca nessas viagens?
Ingredientes, processos novos, as receitas, as cozinheiras, as histórias e os mercados. Eu fui ver como é feito o queijo de Marajó. Acho importante ver como é o processo, de ponta a ponta. Mais do que para reproduzir, para entender e perceber o significado de cada comida em determinada comunidade.

Qual será a próxima?
Rio Grande do Sul. Lá tem um grupo de mulheres que, com ajuda do governador, pesquisa a culinária do Estado. É o único Estado brasileiro onde o governo investe em pesquisa gastronômica. Quero ver de que forma a gente pode replicar isso para o restante do país. É uma experiência que vale a pena.

Quais lugares são mais inexplorados do ponto de vista gastronômico?
Acre, Rondônia e Roraima.

O chef espanhol Ferran Adrià disse que a Amazônia é uma das próximas fronteiras para a descoberta de ingredientes no mundo.
Concordo. Mas acho que ele também precisa conhecer o Cerrado. Lá tem uma biodiversidade tão grande ou maior do que a da Amazônia. E muito mais inexplorada. Você conhece cagaita? Conhece as frutas de lá?

Os estrangeiros adoram feijoada, mas o Brasil tem várias cozinhas.
Era o que eu ia dizer. E não existe uma mais marcante do que outra. Cada cozinha tem o seu interesse. O que é comum em qualquer lugar do Brasil são as preparações com arroz: arroz de carreteiro, baião de dois, arroz de forno, galinhada, arroz de pato, uma coisa em cada canto.

E como fica a sustentabilidade?
Nunca usei produtos que não fossem certificados. Tartaruga, só com o selo do Ibama. Faço parte do movimento Slow food, me preocupo em não só mostrar cultura, mas oferecer um alimento limpo, justo e sustentável.

Seu restaurante também tem muitos fornecedores. Como você faz?
Tem coisas que vêm por avião, outras que chegam por Sedex, como as polpas e os secos do Pará. O custo é alto. Não dá para repassar. Os menus regionais não são pratos que valem a pena do ponto de vista financeiro. Faço porque fazem sentido. Para mim, são como expedições.

Quais ingredientes são difíceis?
Os dos menus regionais. Estou sempre abrindo caminho, trazendo ingredientes não desenvolvidos comercialmente. Vou lá e convenço o fornecedor a me mandar. Desenvolvo uma cadeia. Não tem muita regra. Sinto um senso de pertencimento quando estou no lugar. Parece que sou de lá. Viro “local” e as portas se abrem. Começa que eu pareço “local” em qualquer lugar. Mesmo no Sul, tenho cara de brasileira. Sou meio brejeira, meio cabocla. Faço trabalho de formiguinha. Não fico tirando iPhone, que é estranho para eles. Tento ser igual, por isso trago tantas informações. Minha preocupação é absorver. Para mim, é natural contemplar, observar e respeitar. Já tive dificuldades ao ir a campo com grupos. As pessoas ficam desconectadas, pensam na foto, não na experiência. Querem registrar que estão lá. Mas o que sabem daquele lugar?

Você acha que a origem simples da sua família ajuda a pesquisa?
Sim, porque no interior as pessoas são simples, mas não simplórias. Meu pai conviveu com muita riqueza, mas nunca deixou o lado simples. O simples essencial é muito mais difícil. Entendi muito de mim mesma quando fui paro o interior do Ceará, onde minha avó nasceu, no meio da seca do Nordeste. Aquilo estava dentro de mim.