Inconformismo. O termo, como se sabe, é a atitude de não seguir o que está social ou culturalmente estabelecido em determinada situação, ou coisa. Em outras palavras, de não seguir a norma – pela simples convicção de que a norma é apenas um valor escolhido por uma maioria, quase sempre em detrimento dos valores escolhidos pelas minorias.

O inconformista mantém as normas sob suspeita. Particularmente aquelas dogmáticas. A uma apática postura normal e conformista diante das coisas e dos fatos da vida e do mundo, ele sempre prefere um posicionamento mais aguerrido e natural, uma vez que estão na natureza e suas leis – e não nas frágeis e mutáveis cogitações humanas – os valores não perecíveis e mais próximos da “verdade”.

No quadro universal e atemporal do inconformismo, os últimos 40 anos foram particularmente pródigos. Na verdade, a grande efervescência inconformista começou logo depois da Segunda Grande Guerra, quando a mídia popularizou as informações e as imagens dos horrores nazifascistas. Na época, a Guerra Fria podia esquentar (e até mesmo torrar) a humanidade inteira no jogo de ameaças em que as fichas eram bombas atômicas.

Na França surgiu o movimento existencialista, uma espécie de inconformismo refinado e intelectual, capitaneado pelo filósofo Jean-Paul Sartre e sua mulher Simone de Beauvoir, com um séquito de personagens vestidos de preto, de expressão triste, a vagar pelos bares de Paris. Nos Estados Unidos, a mesma tendência assumiu contornos mais democráticos e populares. A beat generation dos anos 1950 influenciou o desenvolvimento da contracultura dos anos 1960, e o termo “beatnik” cedeu espaço ao termo “hippie”. O poeta Allen Ginsberg e o escritor Jack Kerouac, personagens centrais do movimento beatnik, permaneceram ícones dos primeiros hippies e dos movimentos liberais e contra a guerra.

A ideologia continuou substancialmente a mesma, mas o estilo dos beatniks – cores sóbrias, óculos escuros e barbas pontudas – foram substituídos por roupas coloridas, verdadeiras fantasias psicodélicas, cabelos longos, peito nu, bandanas e calças azuis terminadas em boca de sino. Os anos 1970 e 1980 viraram um estuário de questionamentos, transformações e mutações para o qual convergiram vários setores da contracultura. Na virada da década de 1950 para a de 1960, as questões ambientais, a prática de nudismo e a emancipação sexual já eram ideias respeitadas pelas novas correntes de pensamento.

Surgiram modos de vida comunitários, tendendo a uma espécie de socialismo libertário, ou nômade, e a vida em comunhão com a natureza. Negavam-se o nacionalismo e a Guerra do Vietnã, bem como todas as guerras, e buscavam-se novas percepções e religiões como budismo, hinduísmo ou culturas nativas norte-americanas, em desacordo com valores tradicionais da classe média e da economia capitalista. O patriarcalismo, o militarismo, as multinacionais, a massificação, o autoritarismo, o consumo e os valores tradicionais eram vistos como parte de uma instituição única – o assim chamado “sistema”, visto como intolerável e desprovido de legitimidade.

Curiosamente, a expressão “hippie” deriva da palavra inglesa hipster, cunhada pela comunidade afrodescendente para designar “pessoas brancas que se comportam como negros mais que os próprios negros”. Em 6 de setembro de 1965, o termo “hippie” foi utilizado pela primeira vez, em um jornal de São Francisco, num artigo do jornalista Michael Smith. Brincando com a palavra “beat”, John Lennon, um dos maiores porta-vozes pop do movimento hippie, criou o nome da sua banda: The Beatles.

Objeto de consumo

O amor livre e a não violência tornaram-se bandeiras fundamentais. O símbolo da paz, hoje entendido como ícone do movimento hippie, foi desenvolvido na Inglaterra no início dos anos 1960, como logotipo para a Campanha pelo Desarmamento Nuclear, e depois adotado nos protestos contra a guerra. O lema “Paz e Amor” sintetiza a postura política da contracultura da época: um movimento caracterizado pela defesa dos direitos civis, a igualdade sócioracial e o antimilitarismo, nos moldes da luta de Gandhi e Martin Luther King, embora não tão organizadamente. Uma postura mais anárquica do que anarquista. Muitos estudiosos, hoje, opinam que essa foi exatamente uma das falhas que geraram sua decadência.

Em 1968, quando a peça icônica Hair saiu do circuito nova-iorquino off-Broadway para ser produzida em um grande teatro da Broadway, a contracultura já estava se diversificando e saindo dos centros tradicionais. Surgiu, assim, o “hippie de butique”. A partir daí, seus valores passaram a ser digeridos pelo arqui-inimigo – a sociedade de consumo – e transformados numa miríade de objetos e produtos lançados no mercado para o consumo de massa. Entre eles, a indústria do rock: Beatles, Rolling Stones, The Who, Grateful Dead, Jefferson Airplane, Janis Joplin, Jimi Hendrix, Led Zeppelin, The Doors, Pink Floyd, Neil Young, e, no Brasil, Raul Seixas, Mutantes, Secos & Molhados, os tropicalistas (Caetano, Gil, etc.) e os Novos Baianos.

O hippismo chegou ao Brasil com um pouco de atraso, no início da década de 1970, no apogeu da repressão da ditadura militar (1964-1985). Foi, como se costuma dizer, colocar açúcar no mel. A contracultura descarregou as tensões acumuladas na juventude estudantil, privada de expressão política e ideológica, influenciando também os intelectuais e artistas. Amor livre, drogas e contestação tornaram-se atitudes e produtos de consumo cotidiano.

O radicalismo e seus excessos induziram à reação conservadora. Na Inglaterra e nos Estados Unidos, os governos de Margaret Thatcher (1979-1990) e de Ronald Reagan (1981-1989) desmobilizaram a influência hippie. A redução de impostos e a privatização dos serviços públicos impulsionaram o crescimento econômico e consagraram a ascensão conservadora dos yuppies (sigla em inglês para young urban professionals), o modelo oposto, dos jovens universitários ambiciosos, atentos à moda e às demandas do mercado financeiro – bem retratado pelo filme Clube da Luta (1999). Àqueles que não gostavam da moldura restava negá-la com veemência maior, como a juventude punk e seu rock raivoso fizeram.

Em 1989, a queda do Muro de Berlim escancarou a falência do comunismo e retraiu as ideologias coletivistas, estimulando a ascensão do individualismo e a hegemonia neoliberal na economia. Os impactos crescentes da produtividade e da globalização num mundo cada vez mais vulnerável induziram à divulgação da crítica dos ecologistas e à proliferação de partidos verdes, a partir da Alemanha. O economista inglês Kenneth Boulding, inventor da metáfora da Terra como astronave independente, dotada de recursos limitados, girando em torno do Sol, dizia: “Quem acredita em expansão económica permanente num planeta finito é louco ou economista.”

Influência duradoura

A herança do inconformismo dos últimos 40 anos é forte. Há mais consciência sobre os riscos e limites planetários. Manifestações políticas públicas são vistas como direitos legítimos à livre expressão. Casais não esposados estão livres para viajar e viver juntos sem desaprovação social. Mães ou pais solteiros podem criar seus filhos sem interferência judicial. As mulheres afirmam-se na sociedade, na política e nas empresas. Os estilos alternativos e as questões sobre comportamento e sexualidade fazem parte das conversas do dia a dia e não mais causam escândalo. Os direitos dos homossexuais e dos transexuais foram expandidos. A diversidade religiosa e cultural resulta em mais aceitação.

O interesse pela comida e pela medicina natural dos hippies está na moda. Particularmente, o desenvolvimento e a popularização da internet encontram raízes no etos antiautoritário da cultura hippie. Os inconformistas inspiram muitas mudanças, das quais um dos exemplos mais evidentes é a baixa popularidade da gravata. Outro é a mobilização de “indignados” deflagrada pelo movimento Occupy Wall Street, em Nova York, em 2011, em protesto contra a corrupção e a ganância que geraram a atual crise econômica mundial. A rebeldia contra o alto custo social da hegemonia financeira se espalhou pelo mundo como um novo movimento de desobediência civil não violenta.

Como sempre acontece, o inconformismo mudou de padrões e de roupagem. Hoje, é no campo das ciências da Terra – a ecologia e disciplinas afins – que se apresenta com maior vigor. Mas a energia daqueles que ambicionam uma vida mais saudável, mais digna, mais livre e mais responsável, não apenas para si próprios, mas também para as gerações que virão, pode ser considerada eterna.