A mina de ouro Zé do Vermelho, em atividade desde 2015 em Paranaíta, no norte de Mato Grosso, programa instalar até abril de 2021 um sistema de bio-oxidação que utiliza microrganismos no processo de tratamento do material extraído da jazida. O investimento no conjunto de reatores bioquímicos com capacidade de processar 60 toneladas de material mineral por dia é estimado em R$ 3 milhões. “O biotratamento permitirá uma economia significativa de insumos químicos e resultará numa mitigação enorme do risco ambiental”, prevê o empresário André Vienna, gestor da Tório Mineração, a controladora da unidade mato-grossense. A mina produz 120 quilos (kg) de ouro por ano e tem reserva medida de cerca de 8,2 toneladas (290 mil onças).

A separação do ouro do material mineral extraído de uma jazida é realizada primeiramente por peneiramento e, depois, por moagem por meio de métodos gravimétricos, utilizando centrífugas ou mesas vibratórias. Muitas vezes, porém, o ouro está envolto por enxofre, sulfetos e outras impurezas. É o chamado ouro refratário. A extração então exige um processo de lixiviação, isto é, a dissolução das impurezas em solução química.

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Momento do biotratamento: reator contendo as bactérias. Crédito: Léo Ramos Chaves
Rota específica

A bio-oxidação é realizada com a incorporação de uma etapa prévia à lixiviação. O processo é simples. “As bactérias dispostas em reatores, grandes tanques de aço revestidos de polipropileno, alimentam-se do enxofre contido no minério. Seu metabolismo produz ácido sulfúrico. As impurezas são separadas e dissolvidas na solução corrosiva”, explica Rafael Vicente de Pádua Ferreira, cofundador da Itatijuca Biotech. A startup é a responsável pelo desenvolvimento do sistema, feito com tecnologia nacional, que será implementado na mina Zé do Vermelho. As bactérias utilizadas, inofensivas aos seres humanos, são das espécies Acidithiobacillus ferrooxidans e Acidithiobacillus thiooxidans. A Itatijuca é residente na Incubadora de Empresas de Base Tecnológica do Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen) e da Universidade de São Paulo (USP), gerida pelo Centro de Inovação, Empreendedorismo e Tecnologia da Universidade de São Paulo (Cietec).

“A Tório será a primeira mineradora a adotar um sistema de biotratamento desenvolvido no país”, salienta a química especialista em biotecnologia Denise Bevilaqua, atual coordenadora do grupo de pesquisa Bioprocessos Aplicados à Mineração e ao Meio Ambiente do Instituto de Química na Universidade Estadual Paulista (IQ-Unesp), em Araraquara, no interior paulista. Segundo ela, embora os processos de biotratamento mineral sejam consolidados e conhecidos em nível acadêmico e na mineração mundial, é preciso estabelecer uma rota biotecnológica específica para cada corpo mineral conforme a composição de seus minérios e condições ambientais. Outro desafio é escolher a cepa de microrganismos mais adequada. “Não há receita de bolo. Cada operação mineral exige o estabelecimento de um processo biotecnológico próprio”, frisa.

Risco mais fácil de controlar

Após o biotratamento, diz Vienna, a lixiviação demanda uma menor quantidade de material químico. Segundo ele, testes em escala-piloto realizados pela Itatijuca indicam um potencial de redução em 70% na utilização de ácido e cianeto e uma diminuição de 50% no tempo de lixiviação. O custo total da lixiviação deverá ser reduzido em 35%. Ele prefere não divulgar a comparação em números absolutos, uma vez que o volume de material químico utilizado e o tempo de lixiviação são determinados pelas características do lote de material a ser tratado e depende de muitas variáveis.

A menor utilização de produtos químicos no processo e a total eliminação do enxofre consumido das bactérias resultam em menor quantidade de rejeitos líquidos ácidos na lixiviação, que precisam ser drenados e tratados. Reduzem também o risco de liberação dos resíduos químicos no lençol freático, em caso de acidentes ou de incidência extraordinária de chuvas. Os resíduos sólidos também carregam quantidade menor de químicos e impurezas minerais, permitindo uma disposição final mais segura. “O risco ambiental da lixiviação é mais fácil de ser controlado”, explica Ferreira. “Quando sistemas como esse são instalados antes do início da atividade mineral, o licenciamento ambiental, em tese, corre mais rápido.”

Outro momento do biotratamento: material mineral após a biolixiviação. Crédito: Léo Ramos Chaves
Aproveitamento melhor

Outra vantagem do pré-tratamento com a bio-oxidação é um melhor aproveitamento do minério refratário. “Muitas vezes os reagentes químicos na lixiviação tradicional não conseguem liberar o ouro encoberto pelas impurezas e todo o material acaba classificado como resíduo”, descreve Ferreira. “Durante os testes em escala-piloto, triplicamos a eficiência na recuperação do ouro do material refratário”, afirma.

Quando implementar o processo de bio-oxidação, a Tório se tornará a única mineradora brasileira a utilizar métodos biotecnológicos em seu processo produtivo. A bio-hidrometalurgia, o conjunto de técnicas que utiliza rotas com microrganismos para retirar impurezas que envolvem minérios, é conhecida desde os anos 1960. Sua aplicação ocorreu pela primeira vez em uma mina de ouro na África do Sul, a Fairview, em 1986. Hoje, o biotratamento é bastante usual em extração de cobre, ouro, níquel, ferro, urânio e outros metais em minas em diversos países.

A pesquisa brasileira esteve entre as pioneiras da bio-hidrometalurgia. Uma equipe coordenada pelo biólogo Oswaldo Garcia Júnior implementou no início dos anos 1980 uma planta-piloto inédita no mundo para o biotratamento de urânio, desenvolvida para a Empresas Nucleares Brasileiras (Nuclebrás), estatal responsável por projetos de energia nuclear. O processo foi bem-sucedido, mas acabou desativado quando a empresa foi extinta, em 1989. Em 1986, Garcia criou um núcleo de bio-hidrometalurgia no IQ-Unesp, onde se formou Maurício César Palmieri, cofundador da Itatijuca Biotech.

Barra de ouro obtida ao fim do processo. Crédito: Léo Ramos Chaves
Despertar brasileiro

Além das iniciativas experimentais, como a implementada pela companhia Vale no biotratamento de cobre na Mina do Sossego, no Pará (ver Pesquisa Fapesp nº 200), e a realização de projetos com vários minérios pelo Centro de Tecnologia Mineral (Cetem), unidade de pesquisa do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI), a única aplicação em escala industrial de bio-hidrometalurgia em uma mineradora no Brasil foi realizada pela São Bento Mineração. A operação de extração de ouro ocorreu em Santa Bárbara, em Minas Gerais, com tecnologia utilizada fornecida por sua controladora, a anglo-australiana BHP Billiton. A mineradora, no entanto, fechou as portas, por conta do declínio da atividade de produção do ouro, interrompendo o projeto.

A experiência da Tório, conforme Denise Bevilaqua, do IQ-Unesp, pode representar o despertar da mineração brasileira para a bio-hidrometalurgia. “A mineração é uma atividade muito tradicionalista. Ninguém quer ser o primeiro a incorporar uma inovação, mas, quando alguém adota e é bem-sucedido, todos querem fazer igual”, observa.

Potencial de expansão

O engenheiro de minas brasileiro Carlos Hoffmann Sampaio, um dos maiores especialistas no assunto e professor do Departamento de Engenharia Mineral e Industrial da Universidade Politécnica da Catalunha (Espanha), explica que a maior dificuldade da bio-hidrometalurgia é a baixa velocidade em que as bactérias agem. “Por isso, ela é normalmente usada para minas pequenas.” Apesar disso, ele defende que o uso do método possui um potencial de expansão expressivo, principalmente na mineração de minérios valorizados, como o ouro – em julho, sua cotação internacional estava em torno de US$ 58 (cerca de R$ 315) o grama. Uma cotação nesse patamar, avalia Sampaio, estimula a exploração, inclusive em reservas minerais com baixos teores de ouro.

Numa jazida hipotética, exemplifica Sampaio, em cada mil quilos de minério se extrai por volta de 5 gramas de ouro liberado, não coberto por sulfetos, que podem ser obtidos apenas com a lixiviação tradicional, com cianeto. No mesmo material, há também outros 15 gramas de ouro refratário, aquele recoberto por sulfetos. Nesse caso, utilizar o biotratamento antes da lixiviação com cianeto resulta em um total de 20 gramas de ouro para cada mil quilos de minério. “Trata-se de um ganho que não se pode desprezar”, afirma o especialista.

 

Para entender

Bio-hidrometalurgia: método conhecido desde os anos 1960 que emprega rotas com microrganismos para retirar impurezas de metais (ouro, cobre, urânio, etc.).

Bio-oxidação: também chamada de biolixiviação, usa microrganismos que se alimentam do enxofre presente no minério.

Lixiviação: dissolução das impurezas encontradas em minérios com uso de solução aquosa com cianeto ou ácido sulfúrico.

Ouro refratário: porção do metal envolto por enxofre, sulfetos e outras impurezas, como pirita, ferro, cobre e cobalto.