Em 7 de setembro de 2011, o tenente da Marinha norte-americana Bradley Snyder, 24  anos, especialista em desarmamento de bombas baseado em Kandahar, no Afeganistão, recebeu a informação de que um grupo de compatriotas havia sido atingido por uma mina instalada pelos guerrilheiros talibans. Imediatamente, partiu para ajudar no resgate dos feridos, em uma zona repleta de dispositivos semelhantes. Bradley cruzou o terreno com cuidado, mas não foi feliz e pisou no gatilho de outra mina, que explodiu poucos metros à sua frente. “Senti o calor da bomba no meu rosto”, diz ele. A explosão o jogou no chão e o barulho o deixou momentaneamente surdo, mas ele não desmaiou. Dois colegas de patrulha chegaram para ampará-lo pouco depois. Foi então que a visão começou a escurecer. “Achei que era terra ou sangue”, diz.

Não era. Em 13 de setembro, na unidade de terapia intensiva (UTI) do hospital de Kandahar, veio a confirmação: Snyder estava cego. O que ele vira nos segundos que se seguiram à explosão foram as últimas imagens de toda a sua vida. E mais, teria de passar três semanas na UTI e outras cinco semanas em um quarto de hospital até se recuperar de todos os ferimentos. Posteriormente, seus olhos foram removidos numa cirurgia e substituídos por próteses, tamanho o estrago feito pelo explosivo.

Histórias como a de Snyder costumam acabar em tristeza e sofrimento, talvez amenizadas por medalhas e homenagens por bravura, mas esquecidas no baú de relatos trágicos de uma guerra. Ocasionalmente, porém, podem servir de trampolim para uma inesperada narrativa de superação.

Exatos 365 dias depois do acidente, em 7 de setembro de 2012, o mesmo tenente sem olhos subiu no topo do pódio das Paraolimpíadas de Londres para receber a medalha de ouro na prova dos 400 metros nado livre. “Foi uma jornada incrível”, disse à PLANETA após a premiação. “Quando lembro como estava há um ano, tenho dificuldade de acreditar que estou mesmo aqui.”

Foram 12 meses de esforço. Três meses depois do acidente, Snyder já estava na piscina, uma antiga paixão que decidiu não abandonar. Enquanto reaprendia a cozinhar, a caminhar, a se vestir e a arrumar a casa sem enxergar, continuou frequentando os treinos na água, onde sentia menos a deficiência visual. “Tirando um esbarrão ou outro na raia, pouco tinha mudado.” Daí virou campeão.

Desafio terapêutico

Não é de hoje que atletas vítimas de guerra disputam Paraolimpíadas. Os jogos Paraolímpicos foram criados especialmente para eles. Em 1948, três anos depois do fim da Segunda Guerra Mundial, o médico inglês Ludwig Guttmann, do Stoke Mandeville Hospital, foi procurado pelo governo britânico para encontrar uma maneira de estimular e engajar soldados feridos em guerra.

A solução proposta virou os Stoke Mandeville Games de 1948, um torneio esportivo realizado no jardim do centro de saúde com 16 atletas, todos ex-soldados e paraplégicos, que disputaram baterias de tiro com arco, o famoso arco e flecha.

Como que prevendo o potencial da ideia, Guttmann marcou a abertura do evento para 29 de julho, o mesmo dia em que começaram os Jogos Olímpicos de Verão de Londres, também em 1948. Na cerimônia de abertura de 2012, seu pioneirismo foi lembrado. “Essa noite celebra-se o espírito humano, a volta do Movimento Paraolímpico para casa e a realização de sonhos”, disse Sir Philip Craven, presidente do Comitê Paraolímpico Internacional.

Muita coisa mudou desde 1948. Hoje o paradesporte é um ímã que atrai patrocinadores e audiência rivais do esporte olímpico. O interesse rende bons frutos aos atletas feridos em guerra. Atualmente, organizações não governamentais e instituições ligadas às Forças Armadas de países tão diversos quanto a Líbia e a Bósnia obtêm apoio inédito para trazer feridos em conflito para os jogos e revelar talentos com potencial para o paradesporte de elite.

No Reino Unido, ONGs como a Help for Heroes (Ajuda para Heróis) e programas de governo como o Battle Back, financiado pelo Ministério da Defesa, trabalham para não só revelar talentos paraolímpicos entre soldados, mas também apresentar o esporte como terapia de recuperação de feridos em guerra. Nos Estados Unidos, na Austrália e em Israel, iniciativas semelhantes se multiplicam.

Ex-inimigos

Mesmo onde não há verba ou interesse para bancar projetos grandes como os dos países desenvolvidos, a visibilidade garantida pelos jogos internacionais, cada vez mais organizados e populares (os de Londres venderam 2,7 milhões de ingressos e foram os maiores da história), dissemina projetos em nações assoladas por conflitos, até há pouco isoladas do paradesporte. Um exemplo é Ruanda. Ainda que com pouco apoio, o Comitê Paraolímpico do país africano, que sofreu uma das guerras civis mais brutais do século 20, vem conseguindo levar atletas para as Paraolimpíadas desde 2000. Entre os 14 competidores que participaram da Londres-2012 estão Dominique Bizimania, 36 anos, e Jean Rokundo, 48, defensores da equipe ruandesa de vôlei sentado.

Nem sempre os dois atletas estiveram no mesmo time. “Foi o Rokundo que atirou em mim”, conta Bizimania, ao lado do amigo, em inglês carregado de sotaque, sem conter as risadas. “Se não foi ele, foi o irmão dele”, pondera, mostrando a lesão de guerra que lhe custou a parte inferior da perna esquerda. Durante o conflito étnico em Ruanda, na década de 1990, entre os povos tutsi e hutu, o tutsi Bizimania lutou do lado da Frente Patriótica de Ruanda, enquanto o hutu Rokundo entrincheirouse no Exército nacional. Rokundo também perdeu parte da perna direita em situação parecida, durante uma batalha contra insurgentes tutsis, mas parece pouco afeito às piadas. “Não gosto de lembrar dessa época porque é passado”, desconversa Bizimania.

Hoje, os dois não são apenas colegas de time. Eles têm a intimidade de amigos de muito tempo, fazem piadas constantemente um com o outro, alternando o idioma kinyarwanda e o francês, e andam sempre juntos. “Ele, a mulher e os filhos estavam na plateia da minha formatura”, lembra Rokundo, que só conseguiu completar o ensino médio recentemente. “Eu tenho o imenso prazer de receber a família de Rokundo na minha casa sempre que tenho alguma coisa para comemorar”, afirma Bizimania.

Ainda que a participação inaugural nas Paraolimpíadas do time de vôlei sentado não tenha sido marcada por um rendimento espetacular, Bizimania, que além de atleta é presidente do comitê Paraolímpico de seu país, avalia a temporada em Londres como um grande sucesso. “Achávamos que íamos perder de 25 a zero em todos os jogos, e chegamos a fazer dez pontos em algumas partidas”, explica. “Fomos bem e vamos melhorar.” Depois da última partida em Londres, Bizimania anunciou sua aposentadoria como atleta para se dedicar exclusivamente à administração do comitê. “Meu foco agora é trazer mais competidores não só de Ruanda, mas de toda a África Subsaariana, para o paradesporte”, diz ele, que promove reuniões com entusiastas por todo o continente.

Azar

Distante da realidade de Bizimania, mas com objetivos e problemas parecidos, o americano Scott Winkler, 39 anos, vem se desdobrando há cinco anos para cumprir as rotinas de atleta do time paraolímpico de lançamento de peso americano e a função administrativa de presidente da ONG Champions Made from Adversity (Campeões Feitos pela Adversidade). Winkler foi o primeiro veterano da Guerra do Iraque a disputar uma Paraolimpíada, em 2008, e carrega essa responsabilidade ao falar do trabalho à frente da ONG e da guerra. “Fui vítima de um acidente banal”, explica, como se a má sorte aumentasse a frustração.

Baseado na cidade de Tikrit, no nordeste do Iraque, em 2003, o americano, então com 30 anos, tinha a arriscada função de transportar munição em área de conflito. Numa manhã de maio, quatro meses após sua chegada, cumpriu uma rotina: carregou a munição no caminhão, dirigiu até uma base auxiliar e, com a pressa de quem trabalha sob fogo, correu para descarregar. Não foi uma bala que o paralisou da cintura para baixo. Enquanto descia uma caixa com 20 quilos de projéteis, algo enroscou em seu pé. Era uma fita usada para prender a munição ao veículo, que se soltara durante o transporte. Enquanto tentava se desvencilhar, desequilibrouse e caiu da caçamba. Seu torso chegou ao chão primeiro. A queda torceu sua coluna e o deixou paraplégico. Banal. Trágico. Terrível.

“Quem é soldado serve por amor”, diz ele, emocionado. “Não poder defender meu país me abateu.” Depois de três meses em hospitais no Iraque, em uma base na Espanha e nos Estados Unidos, Winkler foi enfim liberado para voltar para casa no fim de 2003. Imediatamente entrou em depressão. “O marasmo depois da volta é um grande problema”, diz. “Quando percebi o impacto que ele pode ter, resolvi criar uma ONG e estabelecer uma rede de apoio.”

Em algumas cidades, não havia locais que oferecessem opções de ocupação para soldados feridos em guerra. Com a Champions Made for Adversity, sediada na cidade de Augusta, na Geórgia, Winkler firmou parcerias com clubes militares para dar apoio no esporte aos soldados feridos. Em 2010, a ONG recebeu o título de Clube Esportivo Militar do Ano, disputado com outras 178 organizações. “Meu objetivo é dar ao soldado ferido em guerra a oportunidade que me foi dada: usar o uniforme de novo e defender o país em um novo tipo de batalha, a esportiva.”