Um dos grandes nomes atuais da literatura brasileira, Milton Hatoum é o entrevistado da edição de maio da PLANETA. Aqui você lerá trechos inéditos da entrevista que não sairão na revista. Se quiser ver de perto o autor de quatro romances premiados com Jabuti, não perca o Primeira Página, encontro literário que acontece periodicamente em São Paulo. Dia 29 de abril (terça-feira), Hatoum conversará com o público a partir das 20 horas, no Teatro da Universidade Católica (TUCA).

Como foi sua estreia no mundo literário?
Levei cinco anos para escrever meu primeiro romance, Relatos de um Certo Oriente. Terminei em 1985 e só foi publicado dois anos depois. Quando acabei não fui atrás de editor. Um editor do Rio de Janeiro me ligou pra me pedir o texto. Alguém tinha contado pra ele. Ter ganhado o prêmio Jabuti foi uma surpresa, porque eu era um autor estreante, com romance de estreia e concorri com produções de João Ubaldo e Lígia Fagundes Telles. Relatos foi logo traduzido para várias línguas. Isso me surpreendeu também. Eu estava lá em Manaus, dando aula de francês, longe do mundo literário. Nem vim receber o prêmio Jabuti, era complicado aceitar esses convites. Fiquei lá ainda por algum tempo, dando muitas aulas e tentando escrever um segundo romance. Em 1997 decidi sair de Manaus, porque não tinha tempo pra me dedicar. Larguei a universidade e um emprego estável. Larguei tudo, e vim morar em São Paulo. A maioria dos leitores está aqui.

Além dos fatos históricos que servem de pano de fundo para os seus romances, os personagens também estão calcados no real ou são imaginários? Na crônica Segredos da Marquesa, do livro Um Solitário à Espreita, você fala da mãe de uma amiga que serviu de inspiração para um livro, mas que não se reconheceu na personagem. Até que ponto a sua própria história e de outras pessoas entram nos seus livros?
Tem tudo isso. Algumas personagens são inventadas, construídas a partir de uma concepção de personagem, que é o que importa, no fundo. ‘Como é que eu quero essa mãe?’ Minha mãe não foi como Zana, tampouco meu pai como Halim. Não há irmãos gêmeos na minha família. Nesse sentido, Dois Irmãos é muito pouco autobiográfico. A ideia inicial veio do Machado Assis. Depois de uma forte leitura de Esaú e Jacó, que tem gêmeos, pensei, muito modestamente, que eu poderia me inspirar nesse romance e escrever outro, contemporâneo, falando do Regime Militar como Machado falou da República Velha. Os dois irmãos do livro foram inventados e trabalhados para serem inventados também. Porque a invenção não é um estalo. Ela passa por um processo. Tudo é muito racional. A gente pensa que tudo é totalmente irracional. No inconsciente há muitos sinais da realidade da nossa vida, da nossa história. Agora, a história da rivalidade entre os irmãos isso sim é da minha família. Sempre houve isso, entre tios. Isso ajudou a compor os personagens. Chega um momento que você nem sabe direito os parâmetros que você usou. Do meu ponto de vista, o importante é você construir os seus personagens a partir da concepção que você faz deles e o que você quer deles no conflito. A história de vida do personagem passa pela concepção que você tem dele.

Você acredita o interesse pela literatura está diminuindo?
Acho que os leitores estão aí, eles existem, existem vários tipos de leitores. A maioria, é de bestseller. Sempre foi assim. A maioria lê 50 Tons de Cinza e essas besteiras da lista de mais vendidos. Mas este é um senso comum. Georgio Agamben, um dos maiores filósofos italianos vivos, disse numa palestra na Feira da Pequena Editora de Roma, em 2012: “Parem de olhar para os infames. Sim, infames classificações de livros mais vendidos e, presume-se, mais lidos. Procurem construir, em vez disso, na mente de vocês, a classificação dos livros que exigem ser lidos”. Os livros infames da lista dos mais vendidos são logo esquecidos. O tempo é muito cruel com a literatura. Daqui a três anos, 50 Tons de Cinza vai virar cinzas. Ninguém mais vai ler essa besteira ou O Crepúsculo, sei lá. Já São Bernardo, Vidas Secas, Grandes Sertões Veredas ou Perto do Coração Selvagem são clássicos contemporâneos que já têm uma vida de mais de 50 anos de leitura. Você lê esses livros, hoje, e eles continuam sendo extraordinários. Há leitores e esses leitores muitas vezes são formados nas escolas. Às vezes, em casa, no ambiente familiar. Já fui há dezenas de escolas, no Brasil. São os professores competentes que estimulam os alunos. Nesse sentido, não sou pessimista.

Você acha que as mídias digitais, onde tudo é muito mais curto, rápido e visual, afasta as pessoas da leitura?
Acho que a grande maioria desses textos da internet é como se fossem livros péssimos publicados, o que existe também. Existe um lixão na internet e um lixão também na produção impressa. Uma coisa não exclui a outra. O destino do bom texto da mídia eletrônica é o livro. O suporte não é a questão. A questão não é o fim do livro, mas o baixo nível dos textos. O Kafka será sempre o Kafka, numa holografia. Ou pra ser mais radical, no chip que você puser na cabeça, no futuro.

A PLANETA entrevistou em Paris o crítico literário Tzvetan Todorov que criticou o excesso de formalismo e os textos obscuros e ininteligíveis como uma tendência moderna. Também se vê isso nas artes plásticas. Você acredita que o discurso sobre a arte está tomando o lugar da arte?
O Todorov foi um formalista. Acho que ele fez uma autocrítica, porque o estruturalismo não deu em nada. A crítica estruturalista naufragou por completo, porque era ilegível. E também gerou romances também ilegíveis. Não contextualizava a obra, não conseguia estabelecer nenhuma relação com o meio social e histórico. É como se eles tivessem abolido os personagens, por exemplo. É uma coisa muito fria. Hoje, quem gosta de literatura vai ler Celine, Proust, Balzac, Flaubert, mas será que lê Alan de Botton? Será que faz sentido?