Homens trabalhando na construção do muro, sob a mira de metralhadoras, imagem que ilustra a fachada do Gedenkstätte Berliner Mauer (Centro de Documentação do Muro), na Rua Bernauer.

Este mês, a Alemanha comemora 20 anos da queda do Muro de Berlim. Passadas duas décadas da unificação, quem visita a capital do país ainda percebe viva a lembrança de uma cidade dividida não só pelo concreto, mas pelos erros de um mundo que impõe suas ideologias pela força. Mais que um momento de comemorar, talvez seja hora de refletir

Imagine que amanhã você acorde e descubra que há um muro que o impede de passar para o outro lado da cidade. Descubra que parte de sua família, que vive além desse muro, não poderá mais visitá-lo, que seu trabalho está num bairro fora desse domínio e que as pessoas que você ama estão separadas de você por cães-deguarda e homens com metralhadoras. Imagine. Reflita sobre todo o sofrimento que essa situação poderia lhe trazer. Agora, pense que isso tudo aconteceu em pleno século 20, há menos de 50 anos.

Conhecido como Muro de Berlim, esse grande pesadelo de concreto foi erguido na capital alemã na madrugada do dia 13 de agosto de 1961, 16 anos após o término da Segunda Guerra Mundial, quando a Alemanha, derrotada, foi dividida em duas partes – de um lado a República Federativa Alemã (capitalista) e, do outro, a República Democrática Alemã (socialista). Sua construção partiu da República Democrática Alemã (RDA), com o apoio soviético, justamente para impedir a fuga em massa dos cidadãos do lado socialista para o capitalista, o que vinha ocorrendo desde que as fronteiras entre as duas Alemanhas foram parcialmente fechadas, antes mesmo da existência do muro.

Na Praça Alexander, há uma grande exposição que reconta toda a história da criação do muro e os fatores que levaram à sua queda.

No alto, trecho remanescente do muro na Praça Potsdamer. No centro, jovens e artistas na Praça Alexander (Alexanderplatz), onde ocorreram inúmeras manifestações a favor da queda do muro. Hoje, é símbolo de livre manifestação. Na foto ao lado, em alguns lugares onde estava o muro, hoje há uma marcação de seu traçado.

Tornou-se um dos grandes símbolos do que se convencionou chamar Guerra Fria, resultado das tensões entre os dois blocos, que tinham à frente os Estados Unidos e a União Soviética. Ficou conhecido também como Muro da Vergonha. Media aproximadamente 155 quilômetros e dividiu a cidade por 28 anos. Durante esse período, a busca pela liberdade gerou inúmeras tentativas de fuga, muitas delas frustradas, que acabaram em morte. Até hoje não há uma estimativa exata de quantos sucumbiram durante essa travessia, pois a RDA nunca divulgou oficialmente seus dados, mas acredita-se que esse número ultrapasse 1.300 pessoas.

Apenas em 9 de novembro de 1989 a insana barreira veio abaixo, anunciando o fim da Guerra Fria e a derrocada do bloco soviético, o que mudou definitivamente a configuração política e ideológica do mundo. Duas décadas depois de sua queda, as máculas da história ainda se fazem presentes nas ruas berlinenses, mesmo ao mais distraído dos visitantes. Alguns pedaços do muro foram mantidos, alguns transformados em exposições de arte ou em memoriais e parte do seu traçado é representado hoje, felizmente, por uma simples linha de tijolos aparentes que corta a cidade.

Após a reunificação, os locais que haviam sido isolados pelo muro começaram a ser modernizados e ocupados com novas construções. Museus, praças e avenidas da antiga RDA foram incorporados à vida social, econômica e cultural da RFA, sob a égide de uma nova Berlim.

A partir do alto, no sentido horário, a guarita preservada no Checkpoint Charlie, no Muro de Berlim, local bastante fotografado por turistas; a Igreja Kaiser- Wilhelm-Gedächtnis, bombardeada durante a Segunda Guerra Mundial e mantida parcialmente destruída; e a East Side Gallery e seus 1.300 metros de muro pintados em prol da liberdade.

Acima, placas em homenagem às pessoas que morreram tentando atravessar o muro. Abaixo, jovens e artistas se reúnem todos os domingos no Mauer Park (Parque do Muro), um local que ficou isolado na época em que havia duas Alemanhas.

Um bom exemplo disso são as praças Alexander e Potsdamer. A primeira, que ficava totalmente no lado oriental, exibe hoje grandes símbolos do capitalismo, como galerias, shopping centers e um McDonald’s. Grande polo de manifestações populares, mesmo durante a existência do muro, ainda é um ponto de encontro de jovens artistas e de imigrantes de todas as partes do mundo. A Potsdamer, que foi cortada pelo muro e ficou praticamente inutilizada, também está coberta de arranha-céus de grandes companhias privadas e edifícios luxuosos.

Neste ano de comemorações, ambas se convertem em locais de exposição. Na Alexander, há uma grande (e emocionante) exposição que reconta toda a história da criação do muro e os fatores que levaram à sua queda. Na Potsdamer, algumas partes do concreto foram preservadas e transformadas em painéis com o mesmo intuito, contrapondo-se com outdoors e shopping centers.

A partir dali, uma linha de tijolos aparentes demarca o traçado do muro pela praça, atravessa a rua e nos leva a outro remanescente lugar da barreira de concreto, à Rua Niederkirchner. Nesse canto da cidade, a movimentação de tratores e trabalhadores indica que a reconstrução segue a todo vapor. No local, será construído um memorial que se chamará Topografia do Terror, dedicado às vítimas da Gestapo, a polícia nazista, outra mancha na história da Alemanha. Com seus tons acinzentados e suas pinturas já desbotadas, protegidas por uma grade, o muro ainda exibe um frase: “Save Our Planet” (Salve Nosso Planeta).

O traçado original

Uma grande dificuldade de quem chega a Berlim é entender qual foi o traçado original do muro, pois, ao contrário do que se costuma pensar, a cidade não foi dividida simplesmente ao meio. Antes de tudo, é preciso saber que, além de a Alemanha estar dividida em República Federativa (capitalista) e República Democrática (socialista), a própria cidade de Berlim também foi dividida em quatro setores – norteamericano, francês, britânico e soviético –, fruto da partilha do pós-guerra. A grande questão é que Berlim ficou totalmente na Alemanha Oriental, embora os três setores pertencentes aos países capitalistas tenham se mantido dentro dela. O muro, na verdade, circundava a parte capitalista de Berlim e impedia os cidadãos da República Democrática Alemã (RDA) de fugir para a pequena ilha capitalista dentro de seu país. Já os cidadãos do lado ocidental podiam sair da cidade por algumas rotas predeterminadas que davam acesso ao resto do mundo e tinham autorização (restrita) para visitar o lado socialista.

Ironicamente, as grades que cercam o concreto servem para impedir que as pessoas retirem pedaços do muro para vender, um comércio mantido pelos turistas, que querem levar para casa essa “relíquia” histórica. Podem ser comprados, por exemplo, no Museu do Muro, bem perto dali, numa região que ficou conhecida como Checkpoint Charlie, onde se preservou uma guarita que serviu como posto de controle entre os dois lados. Ali, dois rapaz sorridentes vestidos com uniformes militares cobram um euro por pessoa para posar com os turistas.

Dentro do Museu do Muro, não há tantas razões para sorrir. De forma nua e crua, são mostradas histórias de pessoas que tiveram suas vidas destruídas pelo concreto, famílias que foram divididas, mães que nunca mais viram seus filhos e muitos que sucumbiram tentando atravessá-lo. Logo na entrada, um boneco escondido num compartimento secreto do motor de um carro dá ideia das tentativas desesperadas de se romper a fronteira. Alguns tentaram em malas falsas, por túneis, com balões, com uniformes falsos e mais um grande número de saídas detalhadas nas paredes do museu. Hoje, do lado de fora, é consolador observar as pessoas que atravessam o Checkpoint Charlie livremente, a pé, de carro, de bicicleta.

Locais turísticos, como o Portal de Brandemburgo e o Reichstag (o Parlamento alemão), também fazem parte dessa triste memória. Bem próximo aos dois, há cruzes e placas em memória dos que morreram tentando atravessar o Rio Spree, que passa por ali e foi usado como barreira natural entre as duas Berlins. Outro local muito visitado é o East Side Gallery, onde a arte faz o contraponto à barbárie. Ali, um grande pedaço do muro foi transformado numa exposição de arte a céu aberto. Em seus mais de 1.300 metros de comprimento, 118 artistas, de 21 países, deixaram suas mensagens de paz e tolerância.

Na Rua Bernauer, há outro pedaço emocionante da história. Foi ali que os russos destruíram uma igreja (a Kaiser-Wilhelm-Gedächtnis) pelo simples fato de que sua torre estava atrapalhando a visão das torres de vigilância. Hoje, no lugar onde estava o templo foi construído um memorial, no qual se preservaram seus sinos em uma redoma de madeira. A poucos metros está o muro e mais um museu dedicado ao tema, o Gedenkstätte Berliner Mauer (Centro de Documentação do Muro), cuja fachada chama a atenção por trazer a imagem de homens trabalhando na construção do muro, sob a mira de metralhadoras.

Ironicamente, na Rua Bernauer, o caminho do muro demarcado no chão conduz ao Mauer Park (Parque do Muro), uma região que ficou isolada de tudo por conta de sua presença e hoje é sinônimo de juventude, de manifestações livres, de arte. Gente de todo tipo e tribo, numa verdadeira festa de liberdade. Certamente, este mês, vão se unir às grandes festas dos 20 anos da queda do muro. Muita coisa foi preparada para essa data, que merece ser comemorada. Mas também é preciso refletir e lembrar que há outras barreiras em nosso mundo. Não de concreto, mas sociais e econômicas. Basta olhar para a África, para o Oriente Médio, para as nossas favelas, que nos chocam com seus muros, ainda intransponíveis.