Sem nunca ter tido a pandemia sob controle, país atinge trágica marca com mortes novamente em alta, imerso em caos sanitário e com brasileiros tendo que lutar com negacionismo científico e desinformação.Meio milhão de mortos por covid-19. A trágica marca foi superada no Brasil neste sábado (19/06). No mundo, é o segundo país com mais vítimas do novo coronavírus, atrás apenas dos Estados Unidos, que têm uma população 55% maior e 600 mil mortos.

Ao contrário dos americanos, porém, que veem a pandemia retroceder após uma grande campanha de vacinação, o Brasil está no seu segundo maior patamar de casos e mortes diárias, superado apenas pela crise de março e abril, e a dinâmica do coronavírus é de estabilidade ou aceleração na maioria dos estados.

Na última quarta, o número de novas mortes diárias, pela média móvel de sete dias, voltou superar as 2 mil, o que não ocorria desde 10 de maio. O número de novos caso diários, pelo mesmo critério, está em 70 mil, próximo ao pico do final de março de março, quando estava em 77 mil.

Desde o início de maio, a taxa de reprodução do vírus no Brasil é igual ou maior que 1, o que indica persistência ou aceleração da contaminação. Esse número havia ficado abaixo de 1 durante a maior parte do mês de abril. Foi naquela época que governadores e prefeitos começaram a relaxar as regras que restringiam a circulação de pessoas, um dos motivos apontados por especialistas para a atual alta.

Esses dados se refletem na ocupação dos leitos de UTI, que nesta semana era superior a 90% em dez capitais e no Distrito Federal. No interior de São Paulo, havia no último domingo 5.206 pessoas em leitos de terapia intensiva para covid-19, número mais alto do que pico anterior, de 6 de abril.

A situação da pandemia no momento é “extremamente delicada” no país, diz a epidemiologista Carolina Coutinho, pesquisadora da EAESP/FGV.

As variantes mais transmissíveis do coronavírus, que têm maior capacidade de contaminar pessoas ou reinfectar as que já haviam se recuperado da doença, também contribuem para a resiliência da pandemia.

Um estudo realizado pelo Instituto Butantã com casos identificados até o dia 29 de maio, identificou a variante Gamma (ou P1, encontrada inicialmente em Manaus), em 89,9% das infecções no estado de São Paulo. A Alfa, originada no Reino Unido, representou 4,2% das infecções, e a Beta, da África do Sul, 3,5% Não foram identificadas amostras da Delta, da Índia. Em âmbito nacional, o país tem baixa capacidade de fazer a vigilância genômica, que identifica as novas variantes, diz Coutinho.

Presidente contra ciência

Como pano de fundo do caos sanitário, os brasileiros acompanham desde o início de maio os depoimentos da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Senado, que apura responsabilidades e omissões do governo federal em relação à pandemia.

Os depoimentos revelaram detalhes e organizaram informações que já vinham sendo apresentadas pela imprensa desde o ano passado. Eles mostraram que o presidente Jair Bolsonaro impediu ministros da saúde de seguirem as recomendações científicas, promoveu remédios comprovadamente ineficazes, entrou em conflito com governadores e prefeitos que defendiam o isolamento social e recusou diversas ofertas de vacinas.

Em meados de 2020, por exemplo, o Ministério da Saúde negou uma oferta de 70 milhões de doses da Pfizer, e outra de 60 milhões feita pelo Instituto Butantã.

Com o agravamento da pandemia neste ano, o presidente fechou novos acordos de compra de vacinas e agora pede a antecipação da entrega de doses que haviam sido rejeitadas em 2020, e prometeu no início de junho que todo brasileiro que quiser será vacinado até o final do ano.

Mas ele segue promovendo aglomerações, criticando medidas de isolamento social, questionando o uso de máscaras e promovendo teorias conspiratórias. Na quinta, em sua live semanal, Bolsonaro disse que a máscara reduz a oxigenação de quem a está usando, o que é mentira. Em 10 de junho, o presidente propôs o fim da obrigatoriedade da proteção facial para vacinados ou pessoas que já superaram uma infecção pelo coronavírus, ideia considerada “absurda” e “temerária” por especialistas neste momento da pandemia.

Vacina escassa

A recusa de ofertas de doses de vacina pelo governo no ano passado e obstáculos para importar da China o Insumo Farmacêutico Ativo usado para preparar a Coronavac e a vacina da AstraZeneca no Brasil impediram que o país estruturasse a partir do início do ano um ritmo de imunização compatível com a capacidade do Sistema Único de Saúde.

Segundo pesquisas feitas por epidemiologistas e cientistas de dados, o ritmo adequado para o enfrentamento da pandemia seria de pelo menos 2 milhões de doses diárias. Com vacinação lenta e contaminação em alta, o vírus acaba saindo vitorioso nessa corrida.

Em abril, o país aplicou uma média de 730 mil doses por dia, o número recuou para 599 mil por dia em maio, e até quarta, 709 mil por dia em junho, segundo painel mantido pelo Ministério da Saúde. Somente na última quinta, o país superou pela primeira vez a marca das 2 milhões de doses por dia, aplicando 2,2 milhões delas.

O Brasil completou a vacinação de 11% de sua população de 211 milhões. Nos Estados Unidos, essa taxa é 44%, e na Alemanha, 29%. Especialistas estimam que a imunidade coletiva contra a covid-19 só será alcançada com cerca de 80% da população vacinada. Até lá, os países terão que manter medidas de controle como testagem continuada e uso de máscaras e restrição a aglomerações onde as taxas de contágio são altas.

Subnotificação esconde tragédia maior

O biólogo Marcelo Bragatte, um dos coordenadores da Rede Análise Covid-19, afirma que a marca simbólica dos 500 mil mortos já havia sido rompida há alguns meses, e que o Brasil, na realidade, teria no momento cerca de 600 mil óbitos pela doença, considerando a notificação.

Sua projeção considera o excesso de óbitos por síndrome aguda respiratória grave (SRAG) desde o início da pandemia, comparado com os dados de anos anteriores. “Há muitos casos em que a pessoa falece, não confirma que foi covid, e ela fica no limbo como SRAG”, diz. Essa estimativa colocaria o Brasil empatado com os Estados Unidos na liderança do número de mortes.

Mantido o atual ritmo de vacinação, ele projeta que o país seguirá com números elevados de novos casos e óbitos. Isso só será revertido se a população adotar os comportamentos recomendados para evitar a disseminação do vírus, como uso de máscaras, distanciamento social e evitar reuniões em espaços fechados. “Como não temos as medidas sanitárias por parte do governo, recai sobre o cidadão tomar as medidas que ele puder”, afirma.

O problema é que não é somente a contaminação pelo vírus que não recua. “A desinformação no país não desce. Ela está em um platô. E, com isso, as ações das pessoas não melhoram”, diz Bragatte.