Brincar de geografia, brincar de pensar, brincar de criar, brincar de olhar, brincar de colecionar, brincar de sensações e brincar de segredo eram as sete artes do brincar segundo João Guimarães Rosa. Inspirada na vida e na obra do escritor, a arte-educadora Selma Maria resgata brinquedos e brincadeiras do sertão mineiro e encontra na infância e nos personagens de Guimarães Rosa um outro olhar sobre a infância.

…Vale a imaginação

Animal feito de semente de jatobá.

Desde criança, Selma Maria gostava de inventar brinquedos. Quando cresceu, virou professora e não largou mais a brincadeira: trabalha como arte-educadora e, desde 1996, há mais de uma década, coleciona tudo que diz respeito a essa atividade que marca o homem para sempre, o brincar.

Foi também por conta desse trabalho que Selma conheceu a obra de um dos maiores escritores brasileiros: João Guimarães Rosa. Em 1956, dez anos antes de Selma nascer, ele lançava a novela Campo Geral, na qual o tema central era a infância de um menino chamado Miguelim. Paixão à primeira vista.

Telefone de lata, bastante comum nas brincadeiras que são realizadas em todo o Brasil.

Em 2000, ela seguiu para o sertão rosiano e começou a recolher brinquedos e brincadeiras de vilarejos da região de Cordisburgo, pequena cidade a 120 quilômetros de Belo Horizonte (MG), terra natal de Rosa e onde ele viveu parte de sua infância. Recolheu mais de 200 brinquedos e centenas de brincadeiras, ora presentes no jeito espontâneo das crianças, ora guardados na sabedoria e na memória dos idosos.

Reuniu sabugos que viram bonecas, latas que se transformam em telefone, sementes que passam a ser bois, cabaças que se convertem em piões, caixas que se transmutam em carros, madeiras que se metamorfoseiam em ônibus, cascas de árvore que viram máscaras e mais uma infinidade de cantos e poemas repetidos onde quer que haja crianças brincando.

…Boneca e pião

Boneca de espiga de milho e pequenos trapos

“Fui encontrando muitas pessoas que poderiam facilmente figurar na obra de Rosa, como o menino Paulinho, de Morro da Garça, que tem 10 anos e é um grande criador de brinquedos, muito talentoso. É um menino quieto, que gosta de conversar com adultos, como Rosa”, explica Selma.

No município de Três Marias, em um centenário armazém da zona rural, Selma encontrou um brinquedo cuja genialidade a impressionou: “Sobre o balcão, um trator de madeira feito com restos de pneu e pedaços de material de construção me chamou a atenção.”

Resolveu ir atrás de seu criador e encontrou Gecismar, garoto de 10 anos que mora numa casa às margens do Rio De-Janeiro, afluente do São Francisco. “Quando vi, estava bem no local citado em Grande Sertão: Veredas, onde ocorre o primeiro encontro entre os personagens Riobaldo e Diadorim, quando crianças. Coincidência?”, indaga Selma.

Pião feito com cabaça e barbante.

Os meninos quietos

Enquanto ia mais a fundo em sua pesquisa, foi descobrindo o quanto a infância de João Guimarães Rosa tinha moldado o artista libertário presente em suas obras. Desde criança, adorava armar alçapões apenas para ter o prazer de soltar os pássaros logo em seguida. Outra diversão era colocar formiguinhas em ilhas feitas de pedras, empilhadas em poças de água, só para fazer pontes com gravetos e vê-las atravessar.

Como ele mesmo confidenciou em uma de suas entrevistas, também gostava de “imaginar histórias, poemas, romances, botando todo mundo conhecido como personagem, misturando as melhores coisas vistas e ouvidas”. Deu no que deu: o menino Joãozito, como era conhecido na infância, virou João Guimarães Rosa, um dos maiores escritores da literatura brasileira.

…De carros a violões

Carrinho de corrida construído com caixas de fósforo encontrado próximo a Cordisburgo.

Avançando em sua pesquisa, Selma descobriu uma entrevista dada pelo escritor em 1946, na ocasião do lançamento de seu primeiro livro, Sagarana: “Um dia, hei de escrever um pequeno tratado de brinquedos para meninos quietos”, disse ao jornalista paraibano Ascendino Leite. Seria, quem sabe, uma forma de entender o universo de crianças que, como ele, preferiam as brincadeiras com mais concentração, silêncio e paciência.

Conta-se que Rosa nunca foi de fazer estripulias, de subir em árvore, de falar muito, mas que se refugiava nos livros, nas histórias dos mais velhos, no brincar quieto nos cantinhos do quintal. Embora a infância seja um tema recorrente em sua obra, o “pequeno tratado” nunca chegou a ser escrito.

No entanto, a frase dita pelo escritor serviu de inspiração para que Selma desenvolvesse um projeto com o tema. A partir de algumas pistas deixadas por Rosa em declarações e em sua própria obra, ela reuniu brinquedos e brincadeiras que diziam respeito a tais “meninos quietos”.

Ônibus de resto de construção. Abaixo, violão feito com cabaça e cordas de náilon. Na parte inferior, menino da zona rural de Cordisburgo brinca com seu filhotinho; Cristiane, de 12 anos, se banha no rio do quintal; e crianças do vilarejo de Mascarenhas brincam de roda.

Sua idéia e sua coleção de brinquedos tornaram-se então a exposição Meninos Quietos, realizada em 2006, no Sesc Pinheiros, em São Paulo, e também estão se transformando num livro, no qual Selma conta suas experiências ao adentrar o universo infantil do escritor. O lançamento deve ocorrer ainda este ano.

Com base em sua pesquisa, Selma divide o universo rosiano em sete brincares: brincar de geografia, brincar de pensar, brincar de criar, brincar de olhar, brincar de colecionar, brincar de sensações e brincar de segredo.

O brincar de geografia, que tanto encantava o escritor brasileiro, foi levado para a vida toda – cruzaria o sertão como médico rural no interior de Minas Gerais e depois se tornaria diplomata, vivendo em diferentes países.

O brincar de pensar está explícito nas páginas do livro Campo Geral, quando Miguelim sobe nas árvores com seu irmão Dito para observar a vida lá de cima. Em Grande Sertão: Veredas, a narrativa de Riobaldo Tatarana transfigura-se num grande repensar de toda a sua trajetória como jagunço e herói do sertão, em mais de 500 páginas de um monólogo intenso, repleto de grandes reflexões.

No terceiro, brincar de criar, tal como um menino que inventa brinquedos juntando pedaços de coisas sem valor, temos Rosa como um grande criador de palavras, que fez do neologismo uma arma poderosa na renovação da própria língua e no nascimento de um idioma próprio. Já o quarto brincar traz o olhar atento do menino de Cordisburgo, que se tornaria um escritor capaz de descrever cada lugar, cada pessoa com minúcias que impressionam até os mais vorazes leitores.

Menino da zona rural de Cordisburgo brinca com seu filhotinho; Cristiane, de 12 anos, se banha no rio do quintal; e crianças do vilarejo de Mascarenhas brincam de roda.

O quinto brincar resgata o Joãozito que gostava de colecionar insetos em caixas de papelão, pregando-os delicadamente com alfinetes de costura e decorando seus nomes. “Há quem diga que, já nessa época, sabia de cor o nome científico de cada bichinho guardado”, completa Selma. O brincar de sensações aflora em cada descoberta de Miguelim, de seu irmão Dito, de sua irmã Drelina e de tantos outros personagens que cruzam as veredas do sertão rosiano.

Por fim, estão os segredos, tão presentes nas narrativas de Guimarães Rosa e que tiveram o seu ápice em Grande Sertão: Veredas, no qual reside o grande mistério de Diadorim, o segredo maior de sua vida, que se revela apenas nas últimas páginas do livro. Aliás, um segredo que não se deve contar, para que você também entre nessa grande brincadeira.

…Menina inquieta

À esquerda, a presença constante dos rios nas brincadeiras das crianças do sertão mineiro. À direita, a arte-educadora Selma Maria.

Histórias do velho Rosa

João Guimarães Rosa nasceu em 27 de junho de 1908, em Cordisburgo, Minas Gerais. Foi ali que também nasceu seu prazer por ouvir e contar histórias. O menino Joãozito vivia na venda de seu pai, Florduardo Pinto Rosa, sempre a ouvir histórias dos tropeiros que por ali passavam. O fato é que Joãozito se tornou um grande contador de histórias e um exímio artesão da palavra.

Em 1946, aos 38 anos, lança o seu primeiro livro – Sagarana que, por muitos, é aclamado como uma das mais importantes obras surgidas na segunda metade do século 20. Em 1956, publica duas grandes obras: em janeiro, Corpo de Baile (que mais tarde seria dividido em três volumes: Manuelzão e Miguelim, No Urubuquaquá, no Pinhém, e Noites do Sertão), e Grande Sertão: Veredas, em maio.

Em 1962, lança Primeiras Estórias, uma união de contos que fascina críticos e público. Narrativas como “A Terceira Margem do Rio” e “Soroco sua Mãe sua Filha” ganham projeção mundial e traduções em vários idiomas. Em 1967, publica Tutaméia, seu último livro ainda em vida.

Nessa ocasião, a sua paixão por idiomas chega a extremos – contase que ele tinha fluência em português, espanhol, francês, inglês, alemão e italiano, além de bons conhecimentos de latim, grego, sueco, dinamarquês, servo-croata, russo, húngaro, persa, chinês, japonês, hindu, árabe e malaio.

Místico e muito religioso, Rosa acumulou uma série de histórias acerca de sua personalidade. Uma delas diz que a paixão por idiomas o teria levado a seguir alguns ciganos para aprender o idioma deles. Nessa oportunidade, uma cigana teria lhe dito que morreria assim que alcançasse algo que desejava muito. Verdade ou mera invencionice, o fato é que no dia 16 de novembro toma posse da Academia Brasileira de Letras. No dia 19 do mesmo mês, falece vítima de um enfarto no escritório de sua casa, enquanto escrevia.

Após a sua morte, ainda são lançados Estas Estórias e Ave, Palavra, que reúne contos e outros textos publicados pelo escritor na imprensa, ainda em vida, além de algumas narrativas inéditas.

Serviço Mais informações sobre o projeto “Meninos Quietos”: meninosquietos@terra.com.br Telefone (11) 5181 3497, com Selma Maria.