Acordes de violão em modo menor, suaves, pulsantes. Sobre uma melodia tristonha, um homem e uma mulher falam de anseios não realizados, amor terminado em seco. “… que passou por meus sonhos sem dizer adeus, e fez dos olhos meus um chorar mais sem fim…” Vozes jovens, suaves, mas austeras, quase impessoais.

A canção “Meu coração vagabundo” abria Domingo, de 1967, estreia em LP de Maria da Graça Costa Penna Burgos – mais conhecida como Gal Costa – e Caetano (Emanuel Viana Teles) Veloso. Um melancólico idílio bossa nova – que não iria durar muito tempo.

Corte rápido para “Tropicália” ou “Panis et Circensis”: já em seu álbum do ano seguinte, em colaboração com outros músicos da vanguarda da MPB, Caetano provocava um big bang que iria abalar as bases da nação e seguir reverberando, décadas mais tarde. Seu nome já era um manifesto: “Tropicalismo” era a expressão de um Brasil entre a oca e a guitarra elétrica, entre o pau-de-arara e o homem na Lua.

Gilberto Gil, Tom Zé, Torquato Neto, Caetano e outros estavam pondo em prática a antropofagia postulada pelo pensador Oswald de Andrade. Aí, devoraram o baião e os Beatles da fase LSD, digeriram Stockhausen e música eletroacústica, metabolizaram o concretismo poético de Augusto e Haroldo de Campos. E puseram no mundo uma linguagem de transgressão de fronteiras artísticas e culturais.

Nunca se vira tal coisa na música popular brasileira: esse Caetano Veloso, então, era um vanguardista?

Personalidade caleidoscópica

O baiano de Santo Amaro da Purificação, filho de Dona Canô, irmão de Maria Bethânia e mais outros quatro, faz 80 anos neste domingo (07/08). E já completa mais de meio século de carreira musical, do samba-canção ao rock, do tango ao reggae, da experimentação mais radical ao sucesso brega.

Como definir esse monstro da MPB, com capacidade camaleônica de se apoderar de quase qualquer gênero musical, reinventá-lo – de reinventar-se? Na tentativa de torná-lo mais palpável, a crítica musical norte-americana o compara a Bob Dylan ou Paul Simon, o New York Times declara-o “Poeta Laureado inoficial” do Brasil.

Títulos lisonjeiros, sem dúvida. Mas, a sério: como fazer jus a tal biografia, descrever o caleidoscópio dessa personalidade?

Flash back: um aeroporto brasileiro em 1969. Caetano e o conterrâneo Gilberto Gil esgotaram a paciência da ditadura militar. Depois de ter várias de suas músicas censuradas e proibidas, os dois foram detidos, tiveram a cabeça raspada, acusados de subversão, desrespeito ao hino e à bandeira nacional.

A terra do AI-5 está tenebrosa para artistas de espírito crítico ou meramente “irreverentes”. Acompanhados das esposas, os baianos pegam o avião para Londres, no mesmo ano em que Chico Buarque se autoexila na Itália. Antes de retornar ao Brasil, três anos mais tarde, Caetano ainda fará escala em Madri e Tel Aviv.

Som e imagem

Corte rápido para 2007: esmerando-se no sotaque lusitano, Caetano interpreta “Estranha forma de vida”, de Amália Rodrigues. Apesar do cenário de gosto duvidoso e de ser acompanhada por um pas-de-deux piegas e supérfluo, a cena é um ponto alto do semidocumentário Fados, de Carlos Saura. Um homem e seu violão: aos 60 e poucos anos, o baiano emite um falsete angélico, contido e comovente até as lágrimas.

Fusão para: cena de festa, cinco anos antes. O distinto senhor de cabelos grisalhos ficara registrado na memória afetiva do público internacional ao entoar docemente o huapango mexicano “Cucurrucucú, paloma” – no filme Fale com ela, de seu amigo pessoal Pedro Almodóvar.

Caetano Veloso não era um novato das telas. Na produção Tabu, de 1982, incorporara o compositor Lamartine Babo; em Os Sermões – A história de Antônio Vieira, de 1989, fora o poeta colonial Gregório de Matos – ambos filmes de Júlio Bressane. Em 1983 fizera também uma aparição em O Rei da Vela, do selvagem diretor paulista José Celso Martinez Corrêa.

Tratava-se da adaptação cinematográfica da peça homônima de Oswald de Andrade, o próprio mentor do Movimento Antropofágico. Coincidência ou não, exatamente dez anos mais tarde Caetano se reuniria a Gil no CD Tropicália 2. Embora detratores diagnosticassem mero oportunismo, uma coisa pelo menos está registrada nos vídeos dos shows: a dupla baiana se divertiu demais com esse revival.

Corta para 1995. Gal se esgoela, debochada: “Flor do Lácio, sambódromo, Lusamérica latim em pó. O quer, o que pode esta língua?”; escande palavras de ordem: “A língua é minha pátria. E eu não tenho pátria, tenho mátria e quero frátria”.

“Cada macaco…”

Caetano rapper, virtuose dos jogos de palavras, das alusões oblíquas. O arranjo de Jaques Morelenbaum sublinha a anarquia de referências culturais, faz colagem, misturando cuíca e cordas sinfônicas, escola de samba com o Tristão e Isolda de Wagner.

A canção “Língua” já aparecera em Cinema falado – mais uma incursão do veterano da MPB ao mundo do cinema, dessa vez também como roteirista e diretor. Contudo, a ambiciosa reflexão audiovisual de 1986, sobre linguagem e cultura, justapondo citações de Thomas Mann, Guimarães Rosa, Gertrude Stein, resultara indigesta até para gente que se jurava caetaniano até a morte. Em algumas cabecinhas, o máximo que sobrou de toda a filosofia foi o lento nu frontal de Maurício Mattar – ousadia quase impensável naquela pós-ditadura recente.

Não seria a primeira nem a última vez que o baiano despertava polêmica de âmbito nacional. Será que “Caê” ficou megalomaníaco de vez? Será que está confundindo arte inteligente com chatice intelectualoide? Afinal, ele é poeta ou letrista? Ou o quê? E essa mania de dar palpite em tudo que é debate no país? Não é melhor ficar “cada macaco no seu galho” – como aconselhava “Chô chuá”, sucesso de Gilberto Gil de 1972, reeditado em Tropicália 2?

As graças do patriarca

Obviamente, o enfant terrible inveterado é a pessoa menos interessada nas respostas a questões do gênero. Ele já está ocupado o suficiente em “ser Caetano”, provocando até sem querer e prosseguindo sua trajetória original e intransferível.

Felizmente, essa rota é também ampla e generosa, dando espaço a variadas combinações, sinergias, parcerias. Espécie de patriarca, ele não cessa de apadrinhar os músicos iniciantes em que acredita – seja Virgínia Rodrigues, Chico César, Maria Gadú – nem de resgatar, da ignorância generalizada e do esquecimento, veteranos como Clementina de Jesus ou Elza Soares. Fato que não deixou de suscitar reações do tipo: “Agora, para fincar pé na MPB, só com a bênção do ‘Coroné Velô’…”. Pura inveja?

Fade out? Nem pensar – ao que tudo indica.