O arquiteto e urbanista Lúcio Costa dizia que “o céu é o mar de Brasília”. A imensidão azul sobre a cidade que vê seus horizontes costuma chamar a atenção de moradores e visitantes. Conforme a estação do ano e a hora do dia, a dispersão da luz no ar pode mudar a cor do firmamento para amarelo, laranja, rosa, lilás e até violeta.

Pairam sob essa aquarela corujas, papagaios, araras, curicacas, tucanos, urubus e carcarás, além de uma fauna extensa de passarinhos. Nessa revoada brasiliense, os carcarás, com menos de um quilo de peso, altura de até 70 cm e 1,20 metro de envergadura com as asas abertas, são os reis. Estão no topo da cadeia alimentar do bando.

Vivem bem na capital federal, sem se preocupar com nenhum predador natural, como as jaguatiricas, e muito menos com disputas políticas, decisões econômicas ou questão sociais da agenda brasiliense. Sem estresse, não atacam nenhuma pessoa.

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Estão adaptados à condição urbana porque são onívoros, ou seja, comem de tudo: fruta no pé dos diversos pomares plantados na cidade, ovos de passarinho, espécies menores de aves como os abundantes pombos, ratos, carniças e até lixo doméstico.

Preguiçoso e oportunista

O Caracara plancus, nome científico, é o que os biólogos chamam de “generalista”: não tem qualquer refinamento de gosto nem talento apurado para caça como um predador especializado. “Eles são oportunistas e um pouco preguiçosos. Pegam presas fáceis como os filhotes ou animais feridos”, conta o biólogo Sergei Studart Quintas Filho.

A falta de rigor na dieta do carcará é uma vantagem para o bicho que vê há 60 anos seu habitat se modificar no quadrilátero que forma o Distrito Federal. Eles se acostumaram com facilidade. “Muitas alterações que os homens fazem na natureza são atrativos. Quanto mais destroem, mais eles se adaptam”, assinala o biólogo.

No caso de Brasília, a paisagem transformada ficou do seu agrado. As áreas verdes entre as quadras residenciais e nos eixos Monumental e Rodoviário, previstas no Plano Piloto de Lúcio Costa, são ótimas para pouso do carcará e servem como praça de alimentação. Em campos abertos é mais fácil localizar a refeição.

Banquete no crepúsculo

“Eles sabem voar, mas gostam de ficar no chão. No crepúsculo do entardecer, costumam estar pousados no Parque da Cidade esperando o seu banquete, quando os passarinhos começam a se recolher e os roedores começam a circular”, comenta a médica veterinária Gabriella Terra, especializada em tratar de animais silvestres e exóticos.

Ela observa nos últimos anos o crescimento da população de carcarás em Brasília. “Está aumentando porque a área urbana se expande e diminui o meio natural.” O mesmo raciocínio faz o geógrafo Aldo Paviani, um dos principais estudiosos da ocupação da cidade. “Nós ocupamos os espaços deles. Os bichos se sentem acuados, mas precisam se alimentar”, diz o especialista, que descreve a presença de carcarás e outros bichos próximos de sua casa.

Os carcarás já estavam na área de Brasília quando a cidade começou a ser construída. O Núcleo Urbano do Cruzeiro, oficialmente fundado em novembro de 1959, era chamado inicialmente de “Gavião” por causa do carcará. Um equívoco. Os carcarás não são gaviões. Na classificação científica, pertencem à família dos falcões. Há carcarás em boa parte do território brasileiro e de outros países sul-americanos. São como os brasilienses: seres de muitos lugares.