Centenário de João Guimarães Rosa Para comemorar o centenário de Guimarães Rosa, João Correia Filho conta algumas de suas aventuras pelo sertão rosiano e nos apresenta a dois sertanejos que inspiraram o escritor brasileiro

Violeiro durante uma Folia de Reis, festa religiosa que não é citada na maioria dos livros de Guimarães Rosa, mas é símbolo da união entre o sagrado e o profano, muito presente em sua obra.

onheci Manuel Nardy em 1993, quando ele acabara de completar 91 anos. Parti para o norte de Minas Gerais depois de ler uma pequena reportagem de um jornal mineiro, que trazia uma entrevista com o ilustre vaqueiro que havia inspirado Guimarães Rosa a criar um de seus personagens mais conhecidos, um dos protagonistas do livro Manuelzão e Miguilim. Manuel Nardy tinha sido o capataz de uma viagem que o escritor fizera pelo sertão mineiro em 1952, acompanhando uma comitiva composta de oito vaqueiros e 300 cabeças de gado, na qual ele recolheu os elementos que utilizou em suas obras.

Rosa tinha naquela época 44 anos. E, em 1956, apenas quatro anos mais tarde, faria nascer o personagem Manuelzão, da novela “Uma Estória de Amor”, presente no livro Corpo de Baile. Mais tarde, esse livro seria desmembrado em três volumes, sendo que o primeiro passou a se chamar Manuelzão e Miguilim. Tanto a narrativa de Rosa quanto o fato de o vaqueiro ainda estar vivo me encantaram, a tal ponto que resolvi conhecêlo pessoalmente.

Aos 21 anos, finalizava meu curso de jornalismo. Sem pestanejar, peguei uma câmera e fui para o sertão descrito na literatura rosiana. Segui até o vilarejo de Andrequicé, onde Manuelzão vivia, a 255 quilômetros de Belo Horizonte, em Minas Gerais, com o intuito de entrevistá- lo para um documentário que contaria a sua história.

Além do vídeo sobre a vida do vaqueiro, que se chamou O Torto Encanto de Manuelzão, voltei para São Paulo com uma grande amizade, dessas regadas a horas e horas de conversa, de uma boa cachaça, de ouvir e contar “causos”. Muito mais ouvir, claro, pois Manuelzão trazia a sabedoria dos grandes narradores, acumulada em nove décadas como tropeiro, sertão adentro.

Foram justamente essas histórias que também encantaram o escritor. Quando teve a idéia de percorrer o sertão mineiro, Rosa entrou em contato com seu primo Francisco Moreira, dono de uma fazenda próxima à cidade de Três Marias, nas margens do rio São Francisco. Sairia de lá acompanhando os vaqueiros até Araçaí, vizinha à sua cidade natal, Cordisburgo, percorrendo um total de 240 quilômetros. Manuelzão, na época com 48 anos, seguia como capataz da viagem, planejando e coordenando a estadia do escritor, já famoso naquele tempo – em 1946, tinha lançado Sagarana, que teve grande repercussão no meio literário.

Pouco a pouco, a vida de Manuelzão foi chamando a atenção de Rosa. Hoje, ao analisar sua obra, é fácil perceber uma dezena de referências diretas e indiretas à vida do vaqueiro e à viagem de 1952. Manuel Nardy aparece transfigurado no personagem de Manuel Jesus Rodrigues, o Manuelzão, e as semelhanças não estão somente no nome, mas também em acontecimentos marcantes da vida do vaqueiro.

Centenário de João Guimarães Rosa

A realização de uma festa em homenagem à sua falecida mãe e que já havia se tornado uma tradição na região é um desses fatos. A pedido do escritor, dias antes de a comitiva partir, chamaram contadores de histórias, músicos e dançarinos de fazendas vizinhas e fizeram uma grande festa, aos moldes das realizadas por Manuel Nardy todos os anos. Tal comemoração tornou-se o eixo central da novela de Rosa, que ganhou o subtítulo “Festa de Manuelzão”.

Rosa relata, durante a festa, a angústia de um homem que já estava cansado da vida de tropeiro, sempre longe de casa, desgostoso da vida. Toda a narrativa é entremeada com “causos” de outros contadores de histórias que compareceram à festa. Aliás, reside aí uma grande força da obra rosiana: a oralidade. Toda a sua obra é permeada pela fala e pelas histórias do sertanejo, algo que carrega desde sua infância.

Conta-se que, quando criança, o escritor vivia na venda de seu pai, Florduardo Pinto Rosa. O menino parava para ouvir a conversa de tropeiros viajantes e clientes locais que entravam na loja para comprar alimentos, ferramentas, roupas, utensílios e uma centena de outros produtos.

Joãozito, como era chamado, gostava de ficar ouvindo as histórias dos adultos, quando a pequena cidade mineira de Cordisburgo, a 115 quilômetros de Belo Horizonte, onde nascera, era ainda menor – tinha praticamente apenas a estação de trem e a rua que a abrigava. Por sinal, a mesma rua onde ficava a venda do pai do escritor.

Cem anos depois, é fato que as coisas mudaram: a venda de seu Flô tornou- se o Museu Casa João Guimarães Rosa e o menino Joãozito tornou-se um dos maiores mestres da nossa literatura, um grande contador de histórias. Entre elas, a história desse ilustre vaqueiro das Gerais, meu amigo, Manuelzão.

Outra dessas pessoas especiais que a obra de Rosa me apresentou foi o velho Zito, João Henrique Ribeiro, vaqueiro que também viajou com o escritor em 1952 e que, em 2000, encontrei morando em Três Marias. Zito não ficou tão famoso quanto Manuel Nardy, mas o que pouca gente sabe é era ele quem seguia o tempo todo ao lado do escritor.

Assumia as funções de guia e de cozinheiro da tropa e era com ele que Rosa tirava quase todas as suas dúvidas: “Ele queria saber de tudo. Se visse aquele pau ali, queria saber o nome dele. Se ouvisse uma conversa, queria saber do que a gente falava. E ia escrevendo tudo nas cadernetas que levava penduradas no pescoço”, confidenciou certa vez o vaqueiro, em uma de nossas conversas.

O escritor viajante

Nascido em Cordisburgo, numa área de fazendas de gado, João Guimarães Rosa sempre viajou muito. Antes de completar 10 anos, foi levado para Belo Horizonte pelo avô e se dedicou de início à medicina, depois à diplomacia e à literatura. Quando ainda era médico, atendia pacientes da zona rural e vivia seguindo por estradas do velho cerrado mineiro. Anos mais tarde, morou como diplomata em muitos países, com destaque para a Alemanha, onde viveu muitos anos na cidade de Hamburgo, no norte do país. Isso sem contar algumas viagens que fez pelo Brasil, a fim de recolher elementos para suas obras.

Nasceu no dia 27 de junho de 1908 e, por volta de 1925, escreveu seus primeiros contos, que foram publicados na revista O Cruzeiro. Em 1936, com o volume de poesias Magma, concorreu ao Prêmio da Academia Brasileira de Letras e, embora o seu livro fosse o vencedor, não o publicou. Em 1946, lançou Sagarana. O livro foi aclamado como uma das mais importantes obras de ficção surgidas no Brasil naqueles anos. Em 1956, o escritor retornou com toda a força, publicando Corpo de Baile e Grande Sertão: Veredas. Em 1962, foi a vez de Primeiras Estórias. Em julho de 1967, publicou Tutaméia e entrou para a Academia Brasileira de Letras.

Foram seus últimos feitos, pois faleceu nesse mesmo ano. João Guimarães Rosa foi um profundo conhecedor do universo sertanejo, e era capaz de descrever cada espécie, cada utensílio, cada tipo de gente, cada animal, cada tudo. Mais que isso: foi um profundo conhecedor da alma sertaneja e deu vida a personagens que indagam sobre a condição humana, sobre as grandes dúvidas da humanidade, sobre o bem, o mal, sobre Deus, o diabo e tudo mais que nos torna humanos.

Zito faleceu em 2002, aos 65 anos, na mesma cidade onde morava com a esposa, Elzi. Em sua casa, Zito recebia a visita de dezenas de pessoas, entre estudiosos da obra de Rosa, escritores, pesquisadores, fotógrafos e curiosos, que se encantavam com o velho contador de “causos”. Era um grande folgazão, desses que brincam o tempo inteiro, inventam apelidos e divertem a todos, como se isso o remoçasse. Foi, sem dúvida, uma das pessoas mais inteligentes e perspicazes que já conheci, dono de uma memória fenomenal, de um humor invejável. Um homem cheio de histórias para contar.

Centenário de João Guimarães Rosa

Seu Zito em sua casa na cidade de

Três Marias, norte de MInas Gerais.

Vestia, no momento da foto, o

mesmo sobretudo que usou durante

a viagem com Guimarães Rosa.

O vaqueiro Manuel Nardy, que inspirou o personagem Manuelzão. Na página oposta, acima, violão e vela, simbolos da Folia de Reis e da religiosidade mineira; abaixo, o Museu João Guimarães Rosa, em Cordisburgo; por último, as veredas, paisagem típica do sertão mineiro; no canto da página, um menino da região, como o que aparece nesta foto, que inspirou o personagem infantil Miguilim.

Uma das mais conhecidas aconteceu com o escritor Fernando Granatto, numa de suas idas à cidade de Três Marias, em busca de elementos para seu livro Nas Trilhas do Rosa. Ao chegar em frente à casa do vaqueiro, perguntou a um senhor que estava sentado na varanda:

– Por favor, o seu Zito está?

– O Zito foi viajar – foi a resposta.

Indignado e percebendo a viagem perdida, o escritor soltou um suspiro de cansaço e desânimo e insistiu.

– Mas quando é que o seu Zito vai voltar? – indagou.

– Ah! O Zito volta apenas daqui a dez dias – disse o sério senhor.

– O senhor é parente do seu Zito?

– Não, eu só estou tomando conta da casa para ele.

Consciente da sua derrota, Granatto, antes de se despedir, pediu um copo de água.

– Tudo bem, mas só tem quente – retruca. – É que o Zito não deixou a chave e só posso pegar água da torneira de fora.

Beberam a água e se colocaram em marcha. Quando o escritor já estava na esquina, indo embora, o velho senhor abre um sorriso maroto e grita:

– Hei, eu sou o seu Zito.

Durante todo o tempo estava pregando uma pequena peça no escritor.

Talvez tenha sido esse o espírito que Guimarães Rosa tanto prezou em Zito. Até porque fazia questão de ter a ironia e a anedota, elementos sempre presentes em sua obra. Numa conversa ao pé do fogão a lenha, Zito me contou que o escritor quis levá-lo para estudar no Rio de Janeiro, pois via nele um homem com grande potencial. “Não aceitei, queria mesmo é ser vaqueiro”, explica.

Zito ficou imortalizado nas cadernetas de Rosa, hoje pertencentes ao arquivo do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB), da USP, como o mais inteligente vaqueiro que conhecera. Mais tarde, em seu livro Tutaméia, lançado em 1967, narra uma conversa com o vaqueiro em tom de elogios e de muito bom humor.

Centenário de João Guimarães Rosa

Da viagem, Zito deixou como legado um pequeno caderno escolar, que também se encontra hoje no acervo do IEB, junto com as cadernetas de Rosa. Nos dez dias em que esteve com o escritor, tempo que durou a viagem, todas as noites, já quase na hora de dormir, o vaqueiro sentava-se próximo à fogueira e escrevia versos que contavam o que havia se passado durante o duro dia de trabalho. Em frases simples e uma caligrafia arrastada, Zito registrava tudo. E transformava a vida real em poesia, tal como o fez João Guimarães Rosa, tal como fazem os seus personagens, imortais.

SERVIÇO

Cordisburgo

Se você quer conhecer um pouco mais o universo de João Guimarães Rosa, a dica é seguir até a cidade de Cordisburgo. Durante o mês de julho, de 20 a 27, acontece a principal festa da cidade dedicada ao escritor: a Semana Roseana, que reúne apaixonados por sua obra e oferece uma extensa programação artística. A cidade também tem várias cachoeiras e alguns pontos onde as veredas (e o cerrado) ainda resistem. De Belo Horizonte são 93 quilômetros pela BR- 040 (no sentido Brasília) e mais 22 quilômetros pela MG-231, até Cordisburgo.

Museu Casa João Guimarães Rosa

Museu Guimarães Rosa

Av. Padre João, 744

Cordisburgo – MG – Brasil

Mais informações: fone (31) 3715-1378

Memorial Manuelzão

No vilarejo de Andrequicé, onde o vaqueiro Manuel Nardy viveu até sua morte, foi construído o Memorial Manuelzão, em sua antiga casa, onde estão expostos seus pertences e um pouco de sua história. Andrequicé fica a 30 quilômetros da cidade de Três Marias, seguindo pela Rodovia BR-040. De Belo Horizonte são 255 quilômetros.