Em qualquer canto do mundo, as metrópoles são sinônimo de desenvolvimento. Se compararmos taxas de urbanização com indicadores sociais e renda per capita, veremos que as nações mais desenvolvidas são as que têm o maior percentual de habitantes morando nas cidades. Suécia, Dinamarca, França e Reino Unido têm mais de 80% de suas populações vivendo no meio urbano, enquanto Etiópia, Uganda e Camboja ficam abaixo dos 20%. A maioria dos países dos BRICS (o grupo de emergentes composto por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) se encontra no meio do caminho, variando entre 31% e 85% – com os brasileiros na frente e os indianos em último.

Dessa forma, não é de se espantar que, depois de se consolidar como potência mundial, a China anuncie, agora, uma nova obsessão: urbanizar 70% da sua população até 2025. A tarefa significa induzir 250 milhões de camponeses a migrar para as cidades, um contingente equivalente às populações inteiras do Brasil e do Reino Unido somadas. Nos anos 1980, 80% dos chineses viviam no campo. Atualmente, 53% vivem na cidade e 47%, no campo. Esses estão trocando, em ritmo acelerado, terras e lavouras por torres de apartamentos e cidades.

Historicamente, períodos de grande urbanização quase sempre resultaram em um “boom” na economia e no desenvolvimento. “Toda vez em que se move a população do campo para a cidade tem-se um aumento no crescimento econômico do país, porque as pessoas passam de uma área na qual a produtividade é baixa para outra na qual a produtividade é alta: o crescimento econômico rápido em geral está associado à urbanização”, explica Afonso Henrique Ferreira, professor titular da Faculdade de Economia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

A aceleração da urbanização foi uma das estratégias anunciadas, em março, pelo primeiro-ministro Li Keqiang, para reaquecer a economia que começa a desacelerar. Mas não é nada simples. Como convencer 250 milhões de pessoas a deixar o trabalho rural em terras comunais ou privadas por um futuro incerto na metrópole?

O maior incentivo é econômico: os chineses sabem que os trabalhadores urbanos ganham mais do que os rurais. Morar legalmente nas cidades é um privilégio restrito aos 35% dos 53% urbanizados que possuem, efetivamente, a autorização de residência, o hukou. O “passaporte interno” permite registro em escolas locais ou participação em programas de assistência médica. Sem o hukou, a vida é mais difícil. O documento funciona em duas mãos: quem tem autorização para morar no campo não pode migrar para as cidades e vice-versa.

Atualmente, o governo aposta na ampliação do benefício legal, na oferta de apartamentos grátis ou subsidiados para os camponeses que migrarem e no próprio dinamismo da vida urbana para sustentar a onda migratória.

No entanto, a escolha nem sempre cabe aos habitantes. Muito mais do que atrair camponeses para metrópoles, o governo está promovendo uma acelerada expansão dos centros urbanos no interior, muitas vezes destruindo vilarejos, fazendas e templos históricos para dar lugar a torres e arranha-céus. A China já tem 11 cidades com mais de 5 milhões de habitantes, entre as quais megalópoles como Xangai (15,8 milhões), Pequim (13,2 milhões), Cantão (11 milhões), Shenzhen (8,5 milhões) e Tianjin (8,2 milhões). Também já abriga 40 cidades com mais de 1 milhão de moradores.

 

A toque de caixa

Apesar de turbinar a economia e modernizar o país, nem todo processo de urbanização termina em riqueza e desenvolvimento social, principalmente quando acelerado. O Brasil é um bom exemplo. A migração do campo para a cidade, estimulada pela industrialização dos anos 1930, em meio século transformou o país. Embora indicadores sociais como a mortalidade infantil e a expectativa de vida tenham melhorado muito em 30 anos, a desigualdade social também aumentou. Dentro das cidades surgiram bolsões de miséria cuja população não tem acesso aos benefícios clássicos da urbanização, como saneamento, serviços de educação, saúde e transporte.

Se o caso brasileiro é considerado acelerado em comparação com os processos de urbanização registrados na Europa, as mudanças na China são um recorde avassalador. O Brasil passou de uma taxa de 30% de urbanização para 70% em 35 anos, levando 83 milhões para as cidades; a China quer fazer o mesmo em 31 anos, transferindo 540 milhões. Teoricamente, pelo menos, o caos existente nas cidades brasileiras poderia ser maior na China. Ou não Nesse caso, a competência e a natureza dos governos podem fazer diferença.

“É importante ressaltar uma característica da China que o Brasil não tem: planejamento central”, explica Luiza Niemeyer, pesquisadora do Instituto Brasileiro de Economia, da Fundação Getúlio Vargas, que estuda temas relacionados à China. “Esse fator faz com que os movimentos migratórios lá se deem de forma mais controlada e menos espontânea do que aqui. Essa característica ajuda os chineses a lidar mais facilmente com os problemas, tais como crescimento urbano desordenado e falta de infraestrutura adequada. Isso, porém, não os torna imunes a desafios como poluição, especulação imobiliária e congestionamentos, sem falar na adaptação dos migrantes.”

Se, por um lado, a decisão de um governo de partido único sem oposição facilita, a expansão concentrada das cidades faz o mercado de construção civil ferver. Tanto que também pode produzir uma “bolha imobiliária”. Na China, as famílias trocam de apartamento com frequência, sempre procurando um melhor. Milhões estão sempre se mudando, trocando bens, dívidas ou procurando crédito.

Angela Penalva Santos, professora da área de economia regional e urbana da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, destaca que a influência do mercado financeiro aumenta a instabilidade do processo. “A financeirização suscita mais riscos do que na época da industrialização. Há perigo de se construir cidades que podem se tornar obsoletas (como Detroit, nos Estados Unidos). É parte da dinâmica capitalista produzir ‘ondas’ de inovação e de ‘destruição criativa’”, explica.

 

Submundo

Como os camponeses entrarão no mercado de trabalho? Essa é uma das preocupações do governo. O escritor americano Tom Miller, residente em Pequim desde 2002, revela que muitas das novas cidades planejadas que estão surgindo no país já nascem com submundo.

“Muitos recém-chegados dos municípios rurais que circulam na metrópole de Chongqing, na região central do país, lutam para ganhar a vida. Não longe do centro, homens magricelas oferecem DVDs piratas em cantos engordurados da calçada, mulheres suam em máquinas de costura em porões úmidos e multidões de imigrantes desempregados se reúnem em mercados ao ar livre”, descreve no livro China’s Urban Billion: The Story Behind the Biggest Migration in Human History (“O Bilhão Urbano da China: A História por Trás da Maior Migração da História Humana”, em tradução livre).

Quem está acostumado à lide do campo, a plantar e a cuidar de animais domésticos está pouco preparado para disputar a concorrência por empregos urbanos. Diante da crescente urbanização em marcha, o governo acaba fazendo vista grossa para a migração fora-da-lei de pessoas desprovidas de hukou. “Para atingir um estágio de alto desenvolvimento urbano como é o planejado pelas lideranças chinesas, não há dúvida de que será necessário enfrentar desafios como a reforma do sistema de hukou e os custos que isso acarretará”, enfatiza Luiza Niemeyer.

Ainda é incerto se a grande onda de urbanização vai produzir um novo aumento da prosperidade na China, um grande contingente de marginais urbanos ou ambas as alternativas. De acordo com Tom Miller, se o governo conseguir realmente movimentar 250 milhões de pessoas até 2025, em 2030 o país poderá ter mais de 1 bilhão de habitantes urbanos. Com esses números, uma coisa é certa: o modo como eles viverão irá determinar o futuro da civilização.