Os livros sempre tiveram o poder de enfeitiçar seus leitores – figurativamente.

Mas um livro que foi bastante popular dos séculos 15 a 17, e infame, é literalmente sobre feitiços: o que as bruxas fazem, como identificá-las, como fazê-las confessar e como puni-las rapidamente.

À medida que o medo das bruxas atingiu um pico febril na Europa, os caçadores de bruxas recorreram ao Malleus Maleficarum, ou “Martelo das Bruxas”, para orientação. As instruções do livro ajudaram a condenar algumas das dezenas de milhares de pessoas – quase todas mulheres – que foram executadas no período. Seu legado sangrento se estendeu à América do Norte, com 25 supostas “bruxas” mortas em Salem, Massachusetts, no final dos anos 1600.

Como bibliotecária de referência e professora adjunta do General Theological Seminary em Nova York, tenho a rara oportunidade de segurar uma cópia original do Malleus em minhas mãos e compartilhar esse pedaço de história com meus alunos e pesquisadores. Muito foi escrito sobre o conteúdo, mas o livro físico em si é um testemunho fascinante da história.

Capa da sétima edição do “Malleus Maleficarum”, feita em Colônia (Alemanha) em 1520 e hoje no acervo da Universidade de Sydney (Austrália). Crédito: Universidade de Sydney/Wikimedia Commons

Guia definitivo

O Malleus foi escrito por volta de 1486 por dois frades dominicanos, Johann Sprenger e Heinrich Kraemer, que apresentam seu guia em três partes.

A primeira argumenta que as bruxas de fato existem, feitiçaria é heresia, e não temer o poder das bruxas é em si um ato de heresia. A Parte Dois entra em detalhes gráficos sobre o desvio sexual das bruxas, com um capítulo dedicado ao “caminho pelo qual as bruxas copulam com os demônios conhecidos como íncubos”. Um íncubo era um demônio masculino que se acreditava fazer sexo com mulheres adormecidas.

Também descreve a capacidade das bruxas de transformar suas vítimas em animais e sua violência contra as crianças. A terceira e última parte fornece orientações sobre como interrogar uma bruxa, inclusive por meio de tortura; fazer com que ela confesse; e finalmente sentenciá-la.

Vinte e oito edições do Malleus foram publicadas entre 1486 e 1600, tornando-o o guia definitivo sobre feitiçaria e demonologia por muitos anos – e ajudando o processo de bruxas a decolar.

Segmentação de mulheres

Os autores do texto admitem com relutância que os homens podem ser agentes do diabo, mas argumentam que as mulheres são fracas e inerentemente mais pecaminosas, o que as torna seus alvos perfeitos.

As acusações eram muitas vezes baseadas na crença de que as mulheres, especialmente aquelas que não se submetiam aos ideais sobre esposas e mães cristãs obedientes, eram propensas a se aliar ao diabo.

Os autores detalham “quatro crimes horríveis que os demônios cometem contra bebês, tanto no ventre da mãe quanto depois”. Eles até acusam as bruxas de comer recém-nascidos e desconfiam especialmente das parteiras.

Mulheres à margem da sociedade, como curandeiras na Europa ou a escrava Tituba em Salem, eram bodes expiatórios convenientes para os males da sociedade.

História ao alcance da mão

No General Theological Seminary, qualquer pessoa interessada em examinar nosso exemplar do Malleus precisa agendar uma visita à sala de leitura das coleções especiais. Devido à fragilidade do livro, pede-se aos visitantes que lavem as mãos antes de tocá-lo.

Um aspecto marcante é o seu tamanho. O Malleus tem pouco menos de 20 centímetros de comprimento, com 190 páginas – esse livro foi feito para viajar com seu leitor e ser guardado em um casaco ou bolsa.

Nossa cópia é de 1492, e foi publicada pelo famoso encadernador Peter Drach, de Speyer, Alemanha. Isso o torna um exemplo raro de “incunábulos”, como os estudiosos chamam de livros europeus publicados antes de 1501 – o período mais antigo de impressão.

Depois de muito desgaste, esta cópia foi reencadernada em couro no século 19. Pequenas notas manuscritas cobrem a maior parte das páginas. Na página 48, por exemplo, um leitor contou três pontos e escreveu as palavras “deliciosa jornada religiosa” na página oposta. Numerosas páginas apresentam setas desenhadas à mão apontando para parágrafos.

Outro ponto a considerar ao olhar para esta edição é a sua proveniência, ou seja, quem a possuiu ao longo dos anos. Esta cópia é originariamente da coleção do reverendo Edwin A. Dalrymple, que foi o reitor de uma escola e igreja episcopal na Virgínia em meados do século 19. O livro foi transferido de suas prateleiras para a Biblioteca Diocesana de Maryland até entrar em nosso sistema de bibliotecas.

Talvez o aspecto mais interessante desse Malleus, além do próprio texto, seja um livrinho colado na contracapa. Este livreto declara: “Era o manual da Perseguição por Bruxaria dos séculos 15 e 16. Esta cópia possui o mesmo interesse que o machado de um chefe daquela data, na medida em que provavelmente foi a causa direta da morte de muitas pessoas acusadas de feitiçaria”.

Não está claro quem anexou essa declaração, mas seu sentimento soa muito verdadeiro: o Malleus representa o poder das ideias – para o bem ou para o mal.

* Melissa Chim é professora adjunta e bibliotecária de referência no General Theological Seminary (EUA).

** Este artigo foi republicado do site The Conversation sob uma licença Creative Commons. Leia o artigo original aqui.