Mural de rua de Reykjavik, capital da Islândia, ironiza os “garotos gordos” do mercado financeiro que arruinaram a economia. Ao lado, rua sob impacto da crise econômica.

A Islândia é um país cheio de magia, com vastos campos repletos de plantas coloridas umedecidas por névoa constante, chuvas e ventos que sopram continuamente do Atlântico Norte. A ilha de 103.000 km2 de área, cuja temperatura média oscila entre 7 e 2 graus centígrados (chegando a -20ºC no inverno), é atravessada por uma falha tectônica de 250 quilômetros de comprimento, um lembrete perene da presença de atividades sísmicas e vulcânicas. Geleiras e vulcões ativos ocupam um terço do território. Não se trata de um país comum.

Os 318 mil islandeses se concentram em apenas 20% da área do país. Dois terços moram na região da capital, Reykjavik, fundada no século 19, que apresenta um belo conjunto de casas antigas e modernas. Ali, desde a chegada dos primeiros colonizadores vikings noruegueses e dinamarqueses, floresce uma riqueza cultural única. As sagas, a prosa e os poemas da Edda, as histórias, a literatura, o teatro, a ópera, a dança, a música e o canto, com sua beleza original – cuja maior representante atual é a compositora Björk -, espalham sementes por todo o mundo.

Muito perto do Polo Norte e longe do estresse comum de países com áreas densamente povoadas, a ilha evoluiu impulsionada por um povo pacífico, culto, abastado e dono de um elevado nível de educação. Os interessados têm à sua disposição nada menos do que oito universidades e faculdades para escolher.

Os bancos contraíram dívid as imensas e tentaram se livrar do risco vendendo os títulos A outras instituições financeiras

Reflexo dessas condições, em 2007 a Islândia era o país com o mais alto Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), medido pela ONU, o campeão do bem-estar social. Mas a crise econômica de 2008 quase derreteu as suas conquistas. Apesar da crise, o IDH islandês de 2010, de 0,869, ainda deixou a ilha na ótima 17ª posição, à frente de nações do Primeiro Mundo como Bélgica, Dinamarca e Itália (o Brasil é o 73º colocado entre 169 países).

No passado houve catástrofes naturais que causaram epidemias e escassez. Mas um islandês nunca se rende. A pesca, responsável por 40% das exportações, garante o alto padrão de vida. Ela é secundada pelo turismo internacional em busca do exótico, que inclui o acompanhamento de baleias e visitas a fontes termais e a vulcões ativos. Estes entram frequentemente em erupção e partes consideráveis da ilha ficam cobertas com cinzas e lava. A Islândia também é exportadora de alumínio e ferro, e a diversificação da sua economia, nas últimas décadas, estimulou o setor de tecnologia e serviços.

Durante a Segunda Guerra Mundial, as finanças islandesas se beneficiaram do impulso gerado pela presença da Força Aérea dos Estados Unidos na ilha. Os norte-americanos montaram uma base no porto de Keflavik, no sudoeste, perto de Reykjavik. Graças à guerra, Keflavik cresceu atendendo à frota dos aliados. A riqueza estimulou o comércio. Grandes carros fabricados no Japão passaram a percorrer a ilha, o ramo da construção teve um crescimento explosivo e o número de estudantes universitários disparou.

Em 1982, jovens e ambiciosos economistas decidiram criar uma agenda própria para trabalhar com o dinheiro dos seus compatriotas. Em sintonia com as reformas liberais em curso nos Estados Unidos e na Inglaterra, os controles contábeis foram afrouxados e o sistema financeiro desregulado. A Islândia passou a depositar poupanças em Nova York (EUA), Londres (Inglaterra), na Suíça, em Luxemburgo e em países escandinavos. O uso da língua local foi proibido nos bancos, obrigando os clientes a se comunicar em inglês. Aparentemente, o islandês não caía bem no mundo globalizado.

O desenvolvimento financeiro contribuiu, sem dúvida, para que em 2007 a Islândia se tornasse o quarto maior Produto Interno Bruto per capita do mundo. O islandês Kaupthing Bank cresceu a ponto de entrar para o time dos dez maiores bancos do planeta. Os executivos afortunados pelo boom econômico passavam luxuosas férias em outras ilhas bem mais quentes, no sul do Oceano Atlântico.

A euforia, porém, desmoronou em 2008. A crise econômica deflagrada em setembro pelo colapso das hipotecas subprime nos Estados Unidos levou o banco Lehman Brothers à falência e deixou o Kaupthing e os outros dois maiores bancos do país, o Glitnir e o Landsbanki, em situação extrema: a dívida somada das três instituições equivalia a seis vezes o Produto Interno Bruto (PIB) do país, de US$ 19 bilhões. Descobriu-se, tal como nos Estados Unidos, que os bancos operavam muito “alavancados”, ou seja, devendo muito mais do que podiam pagar e transferindo o risco por meio da venda das dívidas fragmentadas para outras instituições financeiras.

Os responsáveis – alguns dos quais estão hoje a caminho da prisão – haviam negligenciado os riscos, a boa contabilidade e as nuvens escuras no horizonte, uma vez que antes da crise a inflação já estava em crescimento acelerado na Islândia. Com a ruína da credibilidade bancária, a economia islandesa quase desintegrou. Quase todos os habitantes do país tinham conta nos três bancos.

Em 9 de outubro de 2008 a Islândia acordou com a notícia de que o governo havia estatizado os três maiores bancos nacionais para salvar a ilha do colapso. Isso não evitou, nos dias seguintes, uma brutal elevação dos juros (de 7%, em agosto, para 18%, em outubro) e a queda vertiginosa do valor da coroa islandesa, mesmo com empréstimos emergenciais de US$ 728 milhões da Suécia e de US$ 2,1 bilhões do FMI. Quando a moeda voltou a ser negociada no mercado, valia um terço de dois meses antes – uma coroa não conseguia comprar nem um chiclete.

Poucos islandeses suspeitavam que seus bancos modernos operassem com uma dívida externa gigantesca originária de investimentos especulativos. Mas todo mundo havia desfrutado dos dias de festa, com um governo leniente eleito para realizar o desejo óbvio de tornar os islandeses riquíssimos. Botaram um elefante na loja de cristais e, no meio da festa, descobriram que não era possível removê-lo.

Com o estoicismo de sempre a população voltou às termas para aquecer-se. Em toda a ilha, a água quente, presente da terra, irrompe com pressão regulada, preenchendo os banhos naturais. Com poucas braçadas, muita sensação apocalíptica se desfaz. Logo, o velho vigor viking, presente nos cafés culturais, teatros, galerias de arte, lojas, no turismo e na moda, começou a se fazer sentir.

O epicentro dessa resiliência pode ser visto hoje no Eden, um complexo especial, que só existe na Islândia, uma comunidade rural baseada em agricultura de estufa, com shoppings, residências, cafés e centros de recreação equipados com todos os confortos modernos.

A agricultura de estufa produz 200 mil toneladas de alimentos por ano – e muita banana. Abaixo, o Eden de Hveragerði.

Com apenas uma pequena parte das terras apropriadas para o cultivo de grãos e alimentos para a criação de ovelhas e de cavalos islandeses – uma raça única e protegida -, os islandeses decidiram construir sua versão particular do paraíso. No Eden, situado em Hveragerði, perto da capital, cresce de tudo: frutas tropicais, verduras e flores. O empreendimento ocupa uma área do tamanho de vários campos de futebol, cercada por um moderno conjunto de casas. No subsolo corre a água natural quente, que fornece 85% da energia e do calor que impede a ilha de se tornar um pedaço de gelo.

Com a colaboração das estufas do Eden e de outras fazendas, os islandeses produziram em 2010 cerca de 200 mil toneladas de alimentos. Por sua vez, a indústria de alumínio recuperouse e já produz 170 mil toneladas por ano, enquanto a pesca gera dois milhões de toneladas anuais de pescado.

Apesar de viver em isolamento e em condições climáticas para lá de desfavoráveis, não falta criatividade ao povo islandês. A expectativa de vida supera 80 anos. A população aumenta e os estatísticos alertam que o país terá mais de 400 mil bocas para alimentar em 50 anos.

A notícia anima o governo da primeiraministra Johanna Siguroardóttir que assumiu durante a crise econômica, após ganhar a eleição antecipada de 2009. Seu programa tem sido posto à prova por uma crise econômica duríssima. “Vamos pagar a nossa dívida!”, é o mantra das autoridades.

No Café Eden de Hveragerði, um desmancha- prazeres comenta, diante de uma jarra de cerveja, que, pela primeira vez desde 1889, a emigração reduziu a população da ilha – em 4.835 pessoas. Uma senhora responde: “Eles se foram no ano passado, após a 150ª intensa erupção de um vulcão subglacial em dois séculos.” Trata-se do impronunciável Eyjafjallajökull, cujas cinzas atrapalharam a aviação na Europa por várias semanas. “É sempre a mesma coisa”, ressalta a mulher: “Não sabem desfrutar a vida do nosso jeito!”

O que os islandeses têm na manga desta vez? A poetisa Birgitta Jónsdóttir, porta-voz da organização WikiLeaks, do super-hacker Julian Assange, foi eleita em 2009 para o Althing, o parlamento. Graças a um projeto de Birgitta, em breve a Islândia terá uma proteção oficial total para “denunciadores de segredos” (whistle blowers, em inglês), além de completa liberdade de informação.

Quem sabe não é esse o ovo de Colombo contra o oportunismo financeiro?

A islândia esbanja criatividade. a expectativa de vida supera 80 anos e a população de 318 mil habitantes está em pleno crescimento

Mais informações

O documentário norte-americano Inside Job (no Brasil, Trabalho Interno), do diretor Charles Ferguson, venceu o Oscar de 2011 para a categoria. O filme aborda em detalhes a crise econômica mundial de 2008, focando sobre o colapso da Islândia.

1. Sugestões de moda para islandeses endinheirados 2. Um dos três mil lagos, rios e cachoeiras glaciais do país. 3. Inúmeras nascentes oferecem água fervente em abundância 4. Um tocador de cítara alado mostra o sonho islandês de se integrar ao mundo pela música.